31/05/04

A Minha Caravela, por Tinónela

E agora vou contar uma história mesmo infantil. Começa assim: Era uma vez era eu pequenino e desenhava caravelas. Tinham por baixo um mar ligeiramente encapelado, por cima gaivotas, facílimas, as gaivotas, com dois riscos curvos se faz uma gaivota canónica, e tinha o barco propriamente dito: um casco em forma de tetraedro (um gajo descobre mais tarde estas coisas horríveis); depois os mastros, três, um maior no meio e os outros em alinhamento mais ou menos perfeito (depois fui ficando intelectual e pus os três mastros cada um com o seu tamanho) e as velas, em forma de mais ou menos. Ah, e tinha mais dois pequeninos mastros, cada um com sua velinha, um à popa e outro à proa. Não sei agora onde fica uma e outra, mas estou certo do que digo. Nunca me arrisquei a desenhar os marinheiros. Iriam sair-me concerteza uns pauzinhos ridículos espetados uns nos outros e eu cá tinha o meu orgulho. Então digamos que estavam os marinheiros todos no porão a fazer qualquer coisa. Em reunião ou a comer, talvez. De qualquer forma o mar estava calmo e eu tinha o cuidado de não desenhar barcos piratas em redor e por isso não era preciso ninguém no convés. Bom, mas o que interessa é que nada do que fiz depois teve tanto êxito como estes barquitos. Ainda hoje é um mistério para mim. Não me lembro já bem, mas imagino que a sequência tenha sido esta: a professora mandou os miúdos fazer um desenho (“façam barcos, meninos, e deixem-me agora descansar um bocadinho que estou com dor de cabeça”) e saiu-me esse. E viu a professora que era bom, gostou e mostrou aos outros meninos. Eu acho que os outros meninos só sabiam fazer aqueles barquitos que também servem de chapéu. Vocês sabem. Bom, do que me recordo é que num certo período da minha vida todos os meninos me pediam para lhes fazer caravelas iguais nos seus caderninhos. E eu, parvo, quando as meninas me pediam a coisa, mal olhava para elas e limitava-me a fazer o que me pediam. É que toda a gente sabe que quando as meninas nos pedem para lhes fazermos barquitos, estão a pedir beijinhos na bochecha. Eu lá punha a língua de fora (é o que os putos fazem, lembro-me lá eu), apertava com força a caneta de feltro e desenhava as caravelas. O seguinte tinha sempre mais cor e mais pormenores que o anterior. Começou por ser só uma vela por cada mastro, depois duas, três, quatro, por aí fora, e punha bandeirinhas em cima dos mastros e postos de vigia e arriscava um homenzito no posto de vigia, de telescópio (eu explico: um bracito curvo a agarrar num pau espetado na cabeça) e janelinhas redondas, muitas, e lá saia uma caravela digna de descobrir o caminho marítimo para as nossas fantasias. E assim durou ainda algum tempo a minha glória. Que o meu desenho era também muito aplaudido na Sociedade, se era, que eu bem ouvia os ooohs espantados das vizinhas. Acho que a minha Mãe as convidava para beber chá só para lhes mostrar o desenho das minhas caravelas, benzadeus. Ainda agora fico espantado quando olho para aqueles barquitos (ainda tenho uma pequena esquadra deles em caderninhos e papelitos avulsos). Mas agora já não faço caravelas. A modos que numa altura da vida surge a maré baixa e um gajo vai encalhando em terra. De vez em quando surge uma onda maior sei lá de onde, um gajo balança e desatina um bocadinho e põe-se a escrever histórias trágico-cómicas sobre viagens passadas em caravelas de papel. Mas é tal o lastro de metáforas e outras figuras de estilo com que enchemos as caravelas que não desencalhamos. E quando um gajo descobre que aquela caravela é afinal um tetraedro, então, é como se lançasse uma âncora. Bom, mas um dia conto de uma história de ficção científica que fiz em papel de linhas com o glorioso título “A Invasão dos Marcianos” e de um projecto fantástico de uma máquina de tradução automática que incluía o chinês para português e volta. Pronto, é isto. Fim.

O caso da moral da porca, por El Perro

O meu vizinho tem uma porca que escapou à morte por causa do cio. Foi ele, não ela, quem mo disse. E eu acreditei e acredito. Acredito mas penso. Várias coisas.
Penso que, afinal, o sexo não é a porcaria que dizem. Pelo menos a partir de sábado passado, dia de matança que não foi de matança.
Reparei há muito no facto português de as quatro letras da palavra “amor” serem as quatro primeiras, também, de “a morte”. Mas isso é ortografia nacional. Este caso da porca ciosa (que se chama Ruça mas é branca e rósea como uma solteirona involuntária) levou-me para outros aléns pensativos. Mesmo. Muito.
Perguntei ao meu vizinho como é que ele sabia. Que ela, enfim, estava “saída”. Ele respondeu: “Anda distraída. E despreza o comer.” Fiquei maravilhado. O povo é deveras o maior sábio. Porque eu quis ver a Ruça. E vi: estava distraída. No olhar, aquela ausência mística de actriz de telenovela. No grunhir, aquela surdina que nasce das trompas do sul do corpo. No mexer, aquela preguiça enérgica de quem iria mas não vai porque só ia se fosse. Na hora, aquele instante de quem, estando ali, estava acolá, perfumando de alma uma essência de corpo, tendo “corpo”, por outra ordem, as mesmas letras de “porco”.
A Ruça não foi abatida no sábado passado. E não o será enquanto estiver como está. O que é bom para os porcos, penso ainda, também há-de ser bom para as pessoas. Sobretudo a moral. Que é esta: se sentirmos a morte por perto, o melhor é comer pouco. Comer pouco e distrairmo-nos muito. O mais possível.

25/05/04

Viva o Olhanense, por Le Chien

Aguentei o que pude. Todos estes anos, aguentei o que pude e como pude. E agora não posso mais, por isso vou desabafar. Aqui vai: eu também gosto de futebol. Mais: e até pratiquei futebol, federado e tudo. Eu sei que é uma vergonha. Peço-vos perdão por todos estes anos de disfarce. Perdão por tantas e tão embrulhadas crónicas intelectualóides. Perdão por tanto umbigo. Perdão por tanta fractura exposta. Perdão por tantas e tão estapafúrdias historietas (d)existenciais. Perdão pelo que fiz com a língua. Era tudo a armar ao cuco literário.
Há, no entanto, um problema: um ex-futebólico não existe. Futebólico uma vez, futebólico para sempre. Nunca pode ser “ex” como um marido, um comunista, um travagante, um voto ou um libris. Ou como um alcoólico, verdade seja dita e à saúde.
De facto, O Processo de Kafka nunca me interessou tanto como o do Valentim Loureiro. E que valem os Cem Anos de Solidão ao pé dos cem anos da FIFA? A ligação aberta do Sartre com a Beauvoir teve muito menos piri-piri do que a das autarquias com os clubes.
Mas vós também deveríeis penitenciar-vos. Yes, vós. Eu sozinho porquê? Vós gostais do Santanaláxia Lopes por causa do Sporting Municipal de Lisboa. E do Benfica porque o Benfica livrou o Eusébio da guerra colonial em Moçambique. E do Belenenses por causa do Américo Thomaz, essa abóbora contumaz de nula memória que foi almirante num país naufragado. E admirais o Pinto da Costa porque nunca o apanharam, nem apanharão. Mas quem se lembra do Olhanense? Na época em que foi primodivisionária, a garbosa equipa algarvia deu 1-0 ao Sporting e foi empatar a duas bolas à Luz logo a seguir. Para minha vergonha, lembro-me eu do Olhanense. Ainda desabafo mais: tenho pena de não ter um filho macho. Se tivesse, inscrevê-lo-ia nas camadas jovens. Nem que fossem de caspa.
Bem tento não ser assim. Mas é que também eu estou entre os que aproveitam não ter TV por cabo em casa para irem ao café ver a bola. Abro um livro e finjo que não ligo. Mas ligo. Pelo periscópio periférico, gosto de ver o Saviola a liquefazer os rins ao Naybet com um tornozelo digital. Gosto da heteronímia babélica das equipas. Se me distraio, esqueço o livro e ponho-me a grunhir GOLO como os meus colegas de chávena e bancada. E já me aconteceu sorrir quando o Rui Jorge, que tem três pés esquerdos (cabeça incluída), consegue finalmente centrar uma de jeito para o Pauleta, esse grande açoriano que nunca jogou num dos três ditos grandes porque não é parvo. Mas não é isto o que aqui me traz hoje.
Vai começar o Euro. Quando o Euro acabar, o País vai ficar com um euro, se tanto. O resto foi derretido nos dez estádios novos. Leiria, por exemplo. Ainda há dois anos a cidade esteve dias a fio sem fio de água potável nas torneiras. Agora, empenhou na banca o futuro de vinte anos. Por causa da bola, claro. Por causa de dois jogos da bola. Quando os holofotes se desligarem, quero ver o saneamento, o ambiente, as estradas, as escolas. Quero ver o futuro dos miúdos que não foram seleccionados para os sub-9, ou sub-13, ou sub-21. Ou sub-10 milhões, que é o que somos todos: sub.
Ah, uma coisa: naquele ano, o Olhanense desceu de divisão. E nunca mais subiu.

22/05/04

Maldito Pioné, por Tinoné

Eu juro que o que vou contar é verdade. Não tenho provas, mas é verdade. Estava eu um dia na Biblioteca da Universidade a ler jornais antigos, que eu gosto de ler jornais velhos e leio-os de cabo a rabo, incluindo os anúncios e a necrologia, e descubro uma pequena nota num exemplar do Diário de Notícias de 192equalquercoisa que dizia mais ou menos assim: “chegou ontem de Newcastle, no paquete tantos, o senhor engenheiro naval Álvaro de Campos, a fim de passar uma temporada em Lisboa. Ao ilustre engenheiro os nossos votos de uma boa estadia”. Fiquei siderado! Mas será mesmo o Alvaro de Campos, o tal, o heterónimo, engenheiro naval e tudo, que vivia em Newcastle, de acordo com a sua biografia oficial? Só pode! Ora uma destas, pensei eu. O Pessoa está a gozar com o pagode. Foi decilitrar ao Abel Pereira da Fonseca com um redactorzeco qualquer do DN e convenceu-o a meter o anúncio por galhofa. Foi de certeza isto. Fiquei a sentir-me como se tivesse descoberto o túmulo do Tutankhamon. Será que já alguém tinha descoberto isto? Para confirmar, que fiz eu? Descobri o telefone da Professora Teresa Rita Lopes, especialista no poeta, e liguei-lhe, meio a tremer. Senhora professora, eu peço desculpa de a incomodar, a senhora não me conhece e tal, mas eu só lhe queria dizer que descobri isto e isto. E a senhora ficou espantada! Ficou mesmo! Disse-me assim, a ver se me lembro: mas isso é espantoso. Lá me pediu as referências do jornal, apontou, agradeceu muito e ainda disse que gostava de me conhecer. E eu que seria um prazer e tal, e lá foram passando os anos e nunca mais falei com a senhora. O pior é que entretanto perdi o papelito onde tinha apontado a data do jornal. Como ainda tinha uma ideia do ano, voltei à biblioteca, estive lá horas, acabei por descobrir outra vez o anúncio e voltei a apontar. Que isto são coisas com que se impressiona a malta! E não é que voltei a perder outra vez o apontamento? Dessa vez, foi assim: eu tenho um placard de cortiça em casa onde espeto papelitos com interesse. Lá afixei o meu tesouro e um dia, imagino eu, o pioné despegou-se, foi tudo ao chão, e varreu-se para o lixo. Mas eu juro que isto é tudo verdade!

15/05/04

Fulham 0 -1 Arsenal (9 Maio 2004), por Repórter Alves

10 minutos para o embate. Os últimos adeptos arrumam-se ordeiramente em assentos modestos, mas devidamente numerados. Enquanto isso a maioria entretem-se há algum tempo a entoar cânticos festivos ou a brincar com grandes bolas insufladas que acabam invariavelmente dentro do relvado: entre este e a arquibancada apenas existe um muro de cerca de 80 cm de altura a separá-los. Os stewards, sempre prestativos, vão devolvendo pacientemente as bolas para a multidão, reforçando a boa disposição geral. É o último jogo da época em casa, mas não é por isso que o estádio está a abarrotar. Foi assim toda a época, apesar do clube jogar em casa emprestada, enquanto aguarda pela conclusão das obras dum novo e novo e moderníssimo complexo. A expectativa essa sim é particularmente elevada: recebe-se o Arsenal, virtual campeão ainda invicto depois de 37 jogos, e está em jogo nada mais nada menos que um lugar nas competições europeias da próxima temporada. Ambas equipas, e a de arbitragem, entram lado a lado num campo transformado num autêntico caldeirão musical. A ovação é unânime e estrondosa. Todos os jogadores acenam, indiferenciadamente, para uma e outra claque, num gesto ostensivo de reconhecimento pelo caloroso acolhimento. O árbitro dialoga animadamente com os capitães. Mais parece um reencontro de velhos amigos. Escolhe-se campo e bola e logo de seguida começa a partida. São neste momento exactamente 16 horas e 5 minutos. Olho para o meu bilhete à procura do time of the match, lá está, em bold: 4,05h pm. Os primeiros lances podem definir-se como uma disputa frenética pela posse de bola. Anfitriões e forasteiros apresentam esquemas tácticos similares, 4-1-4-1, com defesa em linha, um trinco, dois médios centrais pressionantes e alas muito colados às linhas. O modelo de jogo acusa porém diferentes abordagens o jogo; enquanto na equipa da casa os jogadores têm posições mais rígidas e o futebol é mais rectílineo e previsível - insistindo em passes por alto para um desamparado ponta de lança - os supercampeões, por seu turno, parecem confiar mais na técnica individual, com gestos simples, recepção-passe, toque de primeira, triangulações fáceis em situações de dois para um, e apostar na movimentação atacante - um sistema elástico que começa com nove jogadores atrás da linha da bola e se desenvolve através duma imediata reposição ofensiva, circulação de bola a toda a largura do terreno e desdobramento dos alas e laterais ao longo das faixas. Mais ou menos 15 minutos de jogo. O guardião da equipa da casa, internacional de grande prestígio e que estará no EURO 2004 a defender as redes de uma das selecções favoritas, recebe junto à marca do penalti, um atraso, seguro, dum colega da defensiva. O avançado da equipe adversária aproxima-se, cumprindo a obrigação de estorvar. Teria sido mais fácil, definitivamente mais fácil, um chute para a galera. Mas não, o keeper da casa tentou um bonito, ousando a simulação. O avançado, talvez adivinhando-lhe os pensamentos, foi mais lesto e interceptou o drible. Estava consumado o desastre. Feito o corte, limpo, ao feliz atacante bastou empurrar a bola para dentro de uma baliza deserta. Surreal. Ao desastrado keeper, coube depois ir buscar a bola ao fundo das malhas, não suficientemente fundo para esconder a suprema humilhação que deveria estar a sofrer. Um golo patético, um falha ridícula, como lhe chamaria, no day after, um afamado cronista local. Um golo que acabaria por ser o único do jogo ditando assim a enésima vitória da equipe invencível e a derrota da equipa da casa, que viu desmoronar-se, num deslize imperdoável, o sonho europeu de um temporada.
Minuto 40 da primeira parte, já com o Arsenal na frente do marcador Lundberg leva um toque e cai junto ao muro onde está encostada a claque do Fulham; não não foi cuspido, não, não levou nenhum soco ou pontapé e ao que pude observar à distância também não apanhou com nenhum rádio ou telemóvel ou cabeça de leitão na cabeça. Um corpulento adepto da equipe da casa estendeu-lhe o vigoroso braço e ajudou-o a erguer-se para marcar a falta e prosseguir o jogo. O árbitro apita para o final do jogo. A claque local está de consciência tranquila. Tal como os jogadores no campo, haviam dado o seu melhor, pois nem o golo surreal havia impedido que tivessem apoiado os seus ídolos um só instante os 90 minutos. Os jogadores trocam camisolas e cumprimentam-se, entre todos, longamente. A partir daqui torna-se quase impossível distinguir quem são companheiros de equipa e quem são oponentes. Alguns começam a dirigir-se para as bancadas, onde todos os adeptos, de pé, prolongam cerimoniosamente o último aplauso. Já não se ouvem cânticos, nem ovações, apenas palmas. Em uníssono. De forma menos ordenada, os jogadores aproximam-se então ainda mais do público para retribuir com aplausos os aplausos recebidos. O guarda-redes da triste figura é dos mais aplaudidos: havia feito um grande época na qual salvara a equipa em diversas ocasiões, e por isso já estava perdoado antes de ter pecado. Multiplicam-se os sorrisos, cúmmplices, entre jogadores e público. Só o muro, que na verdade tanto faz lá estar como não (uma linha no chão teria o mesmo efeito prático), separa assistência e futebolistas, pois no mais já estão equiparados: ambos foram igualmente protagonistas de mais uma tarde inesquecível. Instala-se, em poucos segundos, uma indesmentível nostalgia, própria de final de época, e que só desaparecerá lá para o final do Verão, quando por fim regressar a Premier League.
Foi assim que vi, ao vivo, Fulham X Arsenal, em Loftus Road, no Qeens Park Stadium, propriedade do Queens Park Rangers, localizado no coração dum bairro residencial londrino. Não esquecerei nunca. Porque foi lindo. Só por isso. E também porque descobri que enquanto houver pessoas que amem verdadeiramente o futebol o futebol é possível. Não referi, porque não ouvi, porque não houve, um assobiadela. Apupos, apenas um ou dois, dirigidos ao árbitro, que foi respeitado por todos os jogadores como se de um colega mais velho de equipa se tratasse. Sem alternativa possível vi o jogo junto aos adeptos do Arsenal, concentrados atrás de uma das balizas. Havia velhos, crianças, ladies, old ladies, gente pintada,fantasiada, travestida e até um orangotango. Tanto a entrada - feita cautelosamente num ponto oposto do estádio - como a saída - feita em conjunto - decorreu sem nenhum tipo de problema. E nem sequer fomos insultados, apesar da euforia dos Gunners, depois de estar mais perto de igualar um recorde histórico de terminar o campeonato sem derrotas. Só aconteceu antes um única vez, em 1889...
Como dizia o saudoso Vítor Santos, assistir ao futebol em Inglaterra é como beber vinho na adega e directamente do pipo.

14/05/04

O Nariz. História Infantil, por Tinóni

Era uma vez, num reino distante, um Príncipe Quase Perfeito. Só tinha um defeito: um nariz enorme, um senhor nariz, uma penca que só parou de crescer meia légua depois de nascer. Os pequeninos que não sabem o que é meia légua, imaginem uma légua e tirem-lhe metade. De qualquer forma, a légua é a medida oficial de comprimento das histórias infantis e vocês já deviam saber isso. Bom, mas aquele nariz era um sério entrave ao casamento do príncipe e consequente descendência, factos que numa história infantil como esta andam necessariamente ligados. Nem sequer servia ao príncipe o facto de um nariz assim grande, como os meninos sabem, ser um poderoso símbolo fálico, motivando a admiração geral da populaça e infindas lendas e anedotas sobre a virilidade do seu propriedade.
Era também dessa vez, no mesmo reino distante, uma filha de um pobre sapateiro que, não lhe bastando ser filha de um pobre sapateiro, tinha uns pés de dois quartos de légua. Mais ou menos, enfim, dependendo da estação do ano, pois é sabido que os pés incham quando no Verão. A única consolação da sapateirinha era ter em casa quem lhe fizesse os sapatos pela medida certa. Em casa é modo de dizer, pois toda a família era obrigada a viver no telhado, por causa do espaço ocupado naquela choupana pelo único par sapatos da rapariga. Todo o tempo? Não propriamente. Quando a moça saia à rua para ir buscar água a fonte, levando com ela os seus sapatos, os seus pobres e envergonhados pais aproveitavam para descer e aquecer-se um pouco à lareira da velha choupana.
Aqui chegando, já os pequenos leitores mais perspicazes terão adivinhado o final da estória. De qualquer forma, saibam que não há meio de manter o enredo em suspense, colocadas as coisas como, necessariamente, aqui foram já colocadas. Tirem proveito do (pouco) estilo da prosa e é um pau. Mas para os menos perspicazes, continuemos então.
Um certo dia, decidiram as côrtes do reino que o príncipe se casava, desse por onde desse, mais nariz menos nariz. Coloca-se o príncipe à janela a perguntar quem com ele se queria casar, como se tinha visto fazer a um certo insecto do reino, e está feito. Mas o resultado não foi famoso: mal aquele real nariz assomava à rua, tropeçavam os aldeões e assustavam-se os animais. Que fazer? A solução foi enviar pregoeiros por todo o reino, na esperança de se encontrar uma moça que não se importasse de partilhar o resto da vida com um nariz a que se encontrava agarrado um príncipe de tamanho médio.
E no dia combinado, lá acorreram muitas raparigas. Enfim, sempre se tratava de um príncipe, uma boa vida castelã, pequeno-almoço certo e instalações sanitárias com saneamento básico. Reuniram-se todas num salão e fez-se o teste da valsa. A que se sentisse menos constrangida dançando com o príncipe, seria a escolhida. A primeira esticou os braços o mais que pôde, contornando o apêndice nasal, fez um sorriso amarelo, deitando olhares de lado aos cortesãos, e foi expulsa. A segunda, terceira e quarta levaram o mesmo caminho. Até que chegou a sapateirinha. Ohhh, que grandes pés, pensou o príncipe, sorrindo. Oh que grande pés, exclamou a multidão. E dançaram a noite toda, braços esticados, narizes e pés numa simetria perfeita, duas almas gémeas. E casaram. Algum tempo depois, nasceu um lindo menino com o nariz da mãe e os pés do pai. E passados vinte anos nasceu uma menina com o nariz do avô e os pés da avó, o príncipe e a princesa da nossa estória. E então tudo recomeçou, para gáudio e felicidade dos habitantes daquele reino, que tão poucos motivos de divertimento tinham. Mas esta é outra história, que depois conto se me apetecer. Gostaram desta, petizes?

10/05/04

ROMERIJO, RIBERA DEL MARISCO, EL PUERTO DE SANTA MARIA,por AnimalDeEstimação

Se há uma coisa que detesto é o desporto motorizado! Este é um ódio de estimação que me vem de pequeno, dos Rallyes de Portugal, em que me obrigavam a subir a penantes a Serra da Lousã. Duas horas de Automotora nojenta, quatro horas de penantes Serra acima, pra ver a Michelle Mouton a curvar a 100 à hora durante precisamente meio segundo.
Mas há ainda pior que isto, na pessoa dos fanáticos dos carros e motores. Gajos que falam e discutem as bielas, os platinados, os carters, os segmentos e as barras de direcção. Temos por cá dois desses espécimes na Confraria, o que até nem é muito em 17 porcos imundos, mas temos a sorte de se calarem com as bielas e os platinados logo à primeira arrochada.
Mas ainda pior que tudo isto, é a Fórmula 1. Meu Deus! Que coisa atroz. Mas qual é o interesse de ver uma série de carros todos iguais, que fazem no mesmo sitio 100 voltas em redondo. A grande emoção, é que, às vezes, numa das cem voltas, um deles ultrapassa outro. Parece que tal acontece umas duas ou três vezes, por corrida.
Daí que, quando aqui há uns anos dei por mim a parar num artigo sobre Formula 1, quando en passant passava os olhos pelo Público, estranhei! É que, não obstante a tradicional carripana de F1 na foto cimeira, as gordas falavam era de marisco! Bogavantes? Langostinos? Eh lá, destes bólides de F1, já eu gosto!
E vai de ler a coisa em pormenor. Em pormenor e com direito a imediato recorte e religiosa guarda, que com estas coisas não se brinca. Foi a primeira vez que ouvi falar do Romerijo. E a coisa resume-se em três penadas. O artigo era sobre o Grande Prémio de Espanha de F1, que pela primeira vez se disputava no novel Autódromo de Jerez de La Frontera. O Jornalista enviado à última da hora pelo “Público”, além de não conseguir já qualquer acreditação para o tourel, onde não pôs sequer os pés, só veio a conseguir alojamento numa pensão manhosa de Puerto de Santa Maria, cerca de 20 km a sul. E como não pôde falar de F1, a não ser dos resultados que viu na televisão, falou em pormenor do que descobriu na desembocadura do Rio Guadalete: a Ribera del Marisco e o Romerijo.
Aí, no maior porto marisqueiro de Espanha e da Europa, encontra-se o Romerijo. Que é nem mais nem menos que o maior mayorista y minorista de marisco y pescados de España, e que ali na Ribera del Marisco, alimenta diariamente, com frescura, cozedura e fritura inigualáveis, dois estabelecimentos tamanho-gigante, que frente a frente na rua e mano a mano na lide, alimentam a horda insaciável.
De um lado da rua, temos o Cocedero e do outro, a Freiduria, sendo que pelo meio, em esplanadas, arcadas, jardins, pérgolas e salas intermináveis, se abanca na Cervecería.
O mastigante depois de passar pela caça à mesa (a pior critica que fazem ao Romerijo, com sites de discussão na net) vai de Cocedero e dali traz para a mesa a preços catitas em cartuchos de papel, raciones de gramas ou kilos, de tudo quanto seja marisco cozido, inteiro ou partido, grande ou pequeno, raro ou comum, às cores ou às riscas.
Ali me apresentei eu às Galeras de Peníscola, às Nécoras Galegas, aos Percebes Gigantes da Mujía, aos menos gigantes de Marrocos, às Patitas de Santola, às Coñetas, aos Canaíllas, às Patas Rusas e aos Bigaros. Ali travei cerrados duelos florais com Bueys de Mar, Cigalas Gordas, Bocas Chicas, e Quisquillas. Ali prestei honras aos Langostinos, Bogavantes, Langostas e Camarões Tigres como Bengalas. Ali confraternizei com Camarões de toda a áfrica de Madagáscar aos Camarões. Ali se me embaciaram de comoção estes olhos gulosos, perante tantos tamanhos e proveniências de búzios, burriés, ameijoas e ostras, conquilhas e caranguejos, gambas e cabra-cegas. De certeza que metia dó olhar para a beiçaria gulosa deste lambão. E nem digo mais, que a alembradura é dolorosa.
Logo que abastecido de cocidos, o mastigante atravessa a rua e vai à Freiduria. Ah, a Freiduria! Um regalo, de sabor e de preços. Abastecimento completo: Chipirones, Puntillitas, Ovas Adobadas, Huevas de Atún, Acedias, Gambas Rebozadas, Sardinhas tamanho petinga, Cazón, Merluza, Calamares, Pijotas, Rabas, etc, etc, tudo fritinho e quentinho. As Puntillitas que estalam na boca, as Gambas crestantes de sabor adocicado, o Cazón exquisito que corta o adocicado. Tudo à bruta e à fartazana. Fresco que até doi. Bem frito, num polme inigualável como só os nuestros hermanos sabem fazer.
Prá mesa traz-se tudo em cartuchos de papel. De pratiduras, só os copos da cervejola Cruzcampo, que garçãos atenciosos trazem a toda a hora. Como o pessoal que ali vai não facilita e abanca e afinfa como se aquela fosse a última ceia, a garçonage traz também para a mesa um Balde, grande, tamanho-famelga, destinado a servir de caixote de lixo. Talheres não há e Guaranás, por mais que peçam, também não. E convém não insistir, que os garçãos aturam tudo, mas há limites!
No mais, resta avisar a trupe ecologista de que é melhor nem se aproximar da Ribera del Marisco ou do Romerijo. Até a mim, alambazante empedernido, aquilo por vezes dói. E o mais engraçado, é que quanto mais me dói no cérebro, melhor me sabe no estômago. Imagino que ali, um defensor de bichinhos, pura e simplesmente, cai pró lado fulminado. É que muito do que por ali se come é do tamanho com que o espécime saiu da gravidez materna. Ilegal, portantos. Criminoso, mesmo. Em qualquer mesa de Portugal ia logo tudo pá Esquadra. Mas em España, essa coisa dos tamanhos são pormenores, minudências legais de Bruxelas, que não afectam a mastigação e só melhoram o sabor apimentado da bicharada.
Perdoai-lhes Senhor, porque eles sabem o que fazem!

07/05/04

A LIÇÃO DE GUITARRA, de BALTHUS, por BeloZebu

[ver quadro em tamanho maior: click aqui]Na senda da discussão sobre a Arte e a Pornografia e o que é uma e outra, eis aqui A LIÇÃO DE GUITARRA, (Óleo sobre Linho, 1,61x1,38cm, Colecção de Thomas Ammann, de Zurich, pintado em 1934, por Balthus - Balthasar Klossowski de Rola; Francês, 1908–2001).
E antes de mais cumpre relembrar aqui o Mefistófeles, que há tempos aqui trouxe um outro Balthus, e admirado ficou de eu ter levantado a questão da sexualidade e da perversidade imanente ao quadro por ele apresentado. E admirado fiquei eu com a admiração dele.
Balthus é também um dos meus pintores modernos preferidos, mas a obra dele, o grosso dela, é hoje quase maldita. A coisa não se encaixa no politicamente correcto reinante e nem as palavras de profunda admiração do Albert Camus o safam da fogueira que à volta dele vão ateando.
O quadro anexo é o mais polémico de Balthus. Nele como em nenhum outro ele se afirma como um pintor de sexualidades e perversidades. Há até um critico que o classificou como “pintor de lolitas com luz”.
Se em muitos dos quadros de Balthus a teens e pré-teens (estas duas palavrinhas vão-nos render 2 milhões de visitantes a partir das pesquisas do Google), são retratadas em posições de equivoco e mistério, a meio caminho entre a inocência e a perversidade, aqui a coisa é clarinha e a perversidade é plena. Este quadro levanta-nos desde logo uma interrogação fundamental: Arte ou Pornografia?

06/05/04

TINÓ, TINÓ, TINÓNINÓNINÓ, TINÓ, TINÓ, TINÓNINÓNINÓ...A música da minha vida, por Derviche Rodopiante

O Apartamento era magnífico. Um quarto andar a 50 metros da praia e a 150 do mar imenso. Carote, como se impõe a um prédio de avenida marginal ao mar em pleno Reino dos Ingleses e dos Algarves. Varandim contínuo e aberto, a lamber directamente da maresia contagiante. Uma delícia, acordar de manhã com o barulho da rebentação e o cheiro da espuma das ondas. O adormecer, era sobre o mais longo e prateado luar de mar de que há memória.
Mas não há rosa sem espinho, nem bela sem senão. E o senão, o zenão, o zangão e o caralho que a foda e a puta que a pariu, era aqui personificado por uma sacana de uma máquina caça níquel, daquelas de abanar o cú a criancinhas, que ao nível do chão e colocada na esplanada de um café, fazia sempre a mesma música simples e irritante: tinó, tinó, tinóninóninó, tinó, tinó, tinóninóninó....
A coisa fazia chaminé de som até ao 4º andar e se no primeiro dia era ligeiramente irritante, no segundo dia era infernal. Ao terceiro dia, já lá ia às 4 da matina enfiar-lhe chiclets na goela. Mas não resultou, e logo de manhã, um cabrão dum fedelho saca uma moedinha ao merdas do avô e saca de um pauzito nojento, limpa a chiclet e zás, a maldita a azucrinar: tinó, tinó, tinóninóninó, tinó, tinó, tinóninóninó....
Nesse dia – Domingo – a coisa má, não mais parou, acordou-me, irritou-me o pequeno almoço, estragou-me o almoço, a sesta e o jantar. A puta da maquineta, uma espécie de burro do oeste onde os rebentos que me rebentavam as timpaneiras se sentavam, era incansável: tinó, tinó, tinóninóninó, tinó, tinó, tinóninóninó....
E de madrugada, pior ainda, quando já me preparava para novos assaltos de chave de fendas, lá vinham das discotecas a corja de jovemzarros que achava muito impressionante para as teenagers fazer a cavalgadela na maquineta infame. As namoradinhas queriam certamente outra coisa, que não a nojice que me abrasava a mioleira, mas qual quê: tinó, tinó, tinóninóninó, tinó, tinó, tinóninóninó....
Foram quinze dias de martírio. Para evitar o delírio, já ficava na praia a ler até ser de noite e a mulher telefonar prá janta. Mas à hora da janta a coisa era ainda pior. As putas das criancinhas faziam bicha e zás: tinó, tinó, tinóninóninó, tinó, tinó, tinóninóninó....
Fiz de tudo àquele martírio em forma de far-west, chiclets, patadas, chave de fendas na ranhura, água pró dentro e até areia trouxe da praia e cheguei a obrigar a minha filha a andar naquela merda só pra poder judiar daquilo, enquanto supostamente procurava meter a moeda. Népias. A máquina do demo nunca abrandou: tinó, tinó, tinóninóninó, tinó, tinó, tinóninóninó....
E o pior de tudo, é que a nojenta, a infame melodia encasquetou-se-me no subsconsciente e ainda hoje, anos depois, meia volta distraio-me e dou por mim a cantarolar: tinó, tinó, tinóninóninó, tinó, tinó, tinóninóninó....
Fico fodido e pior do que isso praguejo e dá-me prá asneira o que me torna incompreensível e demente para quem está ao lado.
Não sei se é a puta da máquina a vingar-se das tropelias que lhe fiz, se é o meu subconsciente a avisar-me que não me vai dar descanso enquanto não puser pés ao caminho e não voltar a Monte Gordo de propósito, numa noite fria e escura de inverno, foder o cabrão do: tinó, tinó, tinóninóninó, tinó, tinó, tinóninóninó....