28/08/08

Devo ser eu que não vejo um boi de espanhol, por Infante Santo

José Enrique Ruiz-Domènec é o autor do livro que ando a ler, Isabel La Católica, O El Yugo del Poder, Ediciones Península, Barcelona, 2006. A biografia do autor ,indicada no livro, informa-me que se trata de um professor catedrático de História Medieval na Universidade autónoma de Barcelona, membro da Real Academia de Buenas Letras de Barcelona, conferencista em numerosas universidades da Europa e da América, para além de uma notável obra publicada na sua área. Até estou a gostar do livro, mas expliquem-me lá como é que é possível esta afirmação que leio na página 20 e que reproduzo ipsis verbis no original castelhano sem mais comentários:

«Estas tres mujeres portuguesas le inculcaran la fascinacion por Enrique el Navegante, hermano del abuelo materno, el primer rey que controló la ruta del oro de Guinea y que tuvo noticias de hombres asilvestrados.»

E, já agora, na página 21:

«El abuelo castellano Enrique III era tan gran hombre como el tío abuelo português Enrique el Navegante. Ambos fueron buenos reyes porque antes que nada fueron hombres de cultura literaria.»

27/08/08

Galinhos, Rio Grande do Norte, Brasil, por Potiguar



A primeira foto foi tirada ao longe para se perceber um pouco das dimensões daquele sítio. A segunda retrata a euforia de quem se descobre a nadar no meio de um postal turísitco, subitamente tornado real.Em que outro país é que é possível alugarmos um barco por um dia inteiro a preço mais que razoável e passar horas a descobrir sítios como esse que aí vai nas fotos?



É esmagador e, acreditem, as fotos mostram pouco: falta a amplitude, faltam os cheiros, falta o calor, a imensidão do espaço, as dentadas do sol, falta a luz, a humidade, a tepidez da água, falta o sal no corpo, falta a sombra das nuvens que vão e vêm, faltam os sons e os silêncios... Falta quase tudo e, no entanto, aposto que estas fotos fazem inveja. A mim fazem e estive lá...

26/08/08

Tesourinhos Deprimentes das Minhas Férias, por Turista Fedorento

...E no entanto nem tudo no Brasil é fantástico... Há muita coisa que é mesmo deplorável. Por exemplo o Jurandy do Sax. Aposto que ninguém ouviu falar do Jurandy, mas o que é certo é que o homem é um caso sério de popularidade em João Pessoa, capital da Paraíba, referenciado até nos mais insuspeitos guias do Brasil, mesmo no American Express.
E quem é o Jurandy do sax, perguntam vocês? Ninguém, não é ninguém. É um gajo assim pó anafado que teve um dia uma ideia que resultou e com a qual ganha a vida. O Jurandy, ou alguém por ele, lembrou-se um dia de ir tocar o bolero de Ravel pra a praia fluvial do Jacaré, mesmo na foz do rio Paraíba, em João Pessoa, enquanto as pessoas apreciam o excelente pôr do sol que se pode ver dali. E vai daí, de há muitos anos para cá, aos fins da tarde, o Jurandy sobe para cima de um barquito a remos conduzido por um mulato e vai de tocar o bolero de ravel em versão saxofone. É bizarro não é? Um gajo gordo, de cabelo comprido e túnica branca, em pé em cima de um barquito a saxofonar o bolero, enquanto resmas de turistas reformados do Rio Grande do Sul e de S. Paulo bebem caipirinhas falsificadas ao pôr do sol? Ainda por cima aquilo é um vergonhoso play back a sair de colunas pornográficas com o volume insuportavelmente no máximo. Note-se que não falamos de arte mas de um ritual diário e repetitivo levado a cabo por um gajo que macaqueia a mesma música ano após ano, pôr do sol após pôr do sol, infatigavelmente. É bizarro sim, mas resultou. A praia do Jacaré está sempre cheia de reformados ao lusco fusco.

Bem, eu também estive lá numa terça ao fim da tarde na praia do Jacaré e fartei-me de rir. Aquilo é meio surrealista, tem um encanto kitch, meio bizarro... E o homem é um personagem. O problema agora é que desde que vi o Jurandy ao vivo nunca mais preguei olho. Ele aparece-me nos piores pesadelos. O jurandy é o freddy krueger dos trópicos, o papão dos fins de tarde, a piranha do rio Paraiba, o dengue das minhas férias... o Jurandy é feio, veste mal,toca horrivelmente e ainda por cima em play back, o jurandy é o carrasco do bolero de ravel. Aquele homem não faz mais que estragar o excelente pôr do sol que se avista dali. Deviam proibi-lo de poluir o ambiente. Se eu mandasse no Brasil mandava-o implodir como se fosse o prédio Coutinho lá deles. Mas não mando e é pena.

Para quem for um dia a João Pessoa deixo aqui um conselho: se vos falarem no Jurandy (e falam, de certeza que, vá-se lá saber porquê, o homem é uma atracção turística) digam que não querem, muito obrigado. E fiquem a saber que ele toca o bolero todas as terças, quintas e fins de semana ao pôr do sol. Pensam que podem lá ir, sem riscos, às segundas, quartas e sextas? Desenganem-se. Eles pensarem em tudo: nesses dias toca o Arnaud do Sax...

21/08/08

É Natal!, por Potiguar


Só para meter um bocado de nojo aqui ficam duas fotos de uma das viagens mais fantásticas que alguma vez realizei: o passeio de buggie (em brasileiro «bugue») de Natal, no Rio Grande do Norte, Brasil, até Maracajaú por entre dunas de 100 metros, lagoas móveis e permanentes, rios e desertos de areia e praias de sonho. Foram só 60 kilómetros, mas a cada segundo tive a consciência clara de estar a ver, a sentir e a viver momentos de absoluta excepção na minha vida. E no dia dessas fotos que aí estão em baixo, só andámos 60 kilómetros... Porém, de Natal a Fortaleza, capital do Ceará, sõa cerca de 1000 kilómetros por sítios assim (por estrada são 500 e picos), num total de 4 dias de viagem. Até Jericoacoara, um pouco mais acima são 7 dias de viagem.

Não imagino o que será uma semana a viver num bugue a voar por entre sítios tão fantásticos. Há um gajo que sabe o que é isso: o Miguel Sousa Tavares. N´O Sul, o seu livro-relato de viagens ele descreve, precisamente, esta rota de bugue Natal-Fortaleza, vão lá ler. Se ganhasse tanto como ele, partia já no mês de Setembro e só parava em Jeri. Ou não parava mais, sei lá...

20/08/08

A Cigarra e a Formiga, por Soneca

Um gajo vai de férias para o exterior, chega aqui à santa terrinha donde não tem notícias faz duas semanas, abre o Porco e o que é que vê? Que o último post foi postado (pelo Mangas, saravá!) faz uma eternidade. Malandros. Langões. E é que nem de propósito. Recém chegado, percebo que o país se entreteve durante o tempo em que estive ausente com as polémicas declarações de um atleta portuga, Marco Fortes de seu nome, que terá justificado a sua fraca performance nos Jogos da China, com a sua inaptidão para trabalhar de manhã. Disse o bom do Marco que, com a mudança de fusos horários, a competição calhava-lhe a uma hora matinal em que lhe apetecia era estar na caminha. Foi sincero, eu de manhã, também gosto é de cama, tou com ele.

Por isso não percebi muito bem, o escândalo nacional que se levantou com as declarações do nosso Marco que já terá sido recambiado para a pátria e tudo como castigo pela sua ingenuidade. Ou melhor, percebo, o pessoal queria medalhas e, não as havendo, malhou-se no pobre do Marco que se pôs com os costados mesmo a jeito. Eu volto a dizer: simpatizo com o Marco que foi prós Jogos imbuído do mais puro espírito Cobertin ( «O que importa è competir» de preferência depois do almoço).

O Marco é a cigarra desta história e a formiga é a Vanessa Fernandes. A Vanessa mostrou ser a melhor atleta portuguesa nos Jogos, até ao momento, mas, do meu ponto de vista, as suas declarações acerca dos seus colegas olímpicos foram dignas de uma medalha de lata. Ela criticou os outros atletas que foram para a China com a filosofia Cobertin do Marco, demarcou-se da manada ao afirmar que aquilo era para pessoas com espírito de sacríficio - como ela - e não para a maltosa diletante que foi para Pequim passar umas férias. Até pode ter razão, mas não está em posição de declarar uma coisa destas, ainda por cima depois de ter ganho uma medalha. É horripilante que em plena euforia com a sua medalha de prata, ela se venha distinguir dos colegas publicamente, apontando-se, ainda que indirectamente, como exemplo por contraste com os bardinas dos Marcos. A Vanessa portou-se como a formiga da história que deixou morrer a pobre da cigarra à fome quando tinha a dispensa cheia de comidinha. Para não fazer o triste papel da formiga, bastava-lhe estar caladinha. Mas não foi capaz e tratou logo de empurrar o caixão dos colegas mais para baixo. Mortos? Vocês estão é mal enterrados.

Pode não haver comparação entre o atleta(?) Marco e a atleta Vanessa. Mas, mesmo sem os conhecer, simpatizo muito mais com o Marco. Para destoar do estranho coro dos ofendidos da pátria eu nomeio o Marco, Herói Nacional do Tapornumporco e de um dos seus desportos favoritos: a siesta. É ou não é, Mangas?

12/08/08

elBulli, o Quim dos Ossos e a Terminação do Anjo, por Mangas

Recentemente a revista inglesa Restaurant elegeu os 50 melhores restaurantes de todo o mundo. A votação é à escala global com o mundo dividido em 22 regiões podendo cada um dos 651 jurados – chefs, críticos de gastronomia, jornalistas, gestores de restauração - votar em dois restaurantes da mesma região, num total de cinco escolhas. Estamos pois perante a nata da cozinha vanguardista, dos pratos mirabolantes e tendências desde a nitrocaipirinha, até à gastronomia molecular ou de fusão, passando pelas espumas, gelatinas e gelificações instantâneas com azoto líquido. Basicamente: o estado-da-arte gastronómico pelas mãos de verdadeiros artistas e criadores da alambazança. O espanhol El Bulli, cujo maestro de orquestra é o catalão Ferran Adrià, repetiu a vitória do ano passado e de 2002, fortalecendo ainda mais o estatuto de catedral primus inter pares. Nuestros hermanos meteram seis restaurantes na lista. Os franceses foram os mais votados, com doze restaurantes no total, logo atrás os EUA com oito, e os ingleses com sete, tendo o Fat Duck, situado num antigo pub de Londres, ficado em segundo lugar. O basco Arzak (10º), por exemplo, foi o primeiro três estrelas espanhol e o nova-iorquino Per Se (9º) serve o sal à parte, numa bandeja de prata, a fazer lembrar cocaína-sirvam-se; o francês Bras (6º), serve o famoso coulant de chocolat, um biscoito recheado de chocolate fundido que passou à história da gastronomia, criado e patenteado pelo chef Michel Bras. E por aí fora…

Eu gosto de tascas. Daquele cheiro avinagrado a peixes de rio em escabeche, iscas de cebolada e vinho cor de amora em copos pequenos de vidro grosso ainda a pingar depois de esvaziados. Gosto de pão de côdea pardacenta e pratos de dobrada onde a molhar. De moelas consumadas há três dias pelo menos, pois só assim o molho estaciona espesso e confiável. De rins afogados naquele puré castanho que se separa do azeite onde foram salteados de assalto. O meu amigo Quim dos Ossos tem uma tasca. Quando é Verão passo por lá, e sento-me, e ele vem sentar-se ao meu lado, e é sempre sombra, mesmo sendo Agosto.

O Daniel Abrunheiro não é Chef de cozinha, mas escreve como se confeccionasse iguarias raras com as palavras, sentidos de paladares e ritmos temperados como especialidades marinadas de entristecimentos e euforias – daquelas que um condenado deve levar da última ceia para a forca e esquecer que o mundo acaba amanhã. O seu último livro, Terminação do Anjo, é uma refeição completa. Podia-lhe acontecer como ao Alain Fournier depois de editar O Grande Meaulnes: desaparecer para sempre. Quer dizer, o legado de um imenso talento ficava cá. Nada mais lhe seria necessário escrever, criar, alinhar entre parágrafos ou biografar. Só que o Daniel não se ia assim como assim, de malas feitas e viagem antecipada. Era bem capaz de lançar ancora às asas de Camilo Ardenas e flutuar para onde nunca mais fosse visto. Mais tarde dir-se-ia que um livro os engolira aos dois.

«Chegou a cervejaria-marisqueira ao quarto para a uma e ofereceu-se aquele que só não era o seu maior prazer literário por ser, de facto e deveras, o único. A leitura, em verso livre, da ementa.
A primeira estrofe abria caldos, açordas e cremes. Um fio de ervas aromáticas doía uma dor fina través essas águas que ressumavam a higiene visceral do pescado. A ideia de moles moluscos partilhando a piscina quente da malga com fibra de peixes caldeirados tornava-se-lhe todo um cerrado monoideísmo de que só lograva largar-se a muito custo.
A segunda estância do cardápio alinhava uma tábua constitucional cujos artigos teriam nadado muito e muito antes de o poeta da ementa e de o cozinheiro seu declamador os terem fixado para sempre em substantivos de uma suculência inelutável: tamboril, robalo, linguado, cherne, dourada, salmão, salmonete, rodovalho, congro, safio, choco.
Já a este ponto da decifração da carta se tornara impossível a António Tomás pôr sopremo ao fervilhar das papilas gustativas, esse campo de morangos para sempre a que ele, desencabrestado de todo, propunha já a terceira canção. Posto que a apoteose marinha não era solipsista, o poemenu descambava em carnificina: um rosbife túmido e mal passado como um beijo, uma região de vaca afrancesada o suficiente para que lhe chamassem chateaubriand, as costeletinhas de borrego escovado por uma caspa de limoeiro, o honestíssimo e jucundo lombo assado, o bife à Casa que era prego por cravar o cristão céu-da-boca e o agnóstico palato ao lenho da eternidade, o bife tártaro em hordas corredoras de estepes e a sempre moranga costeleta de novilho que, pelo cravo do vacum, muito ajudava a exilar a rosa porcum do poemário de cervejarias forradas por dentro a azulejo fresco como coração de viúva nova.
António Tomás abençoou, comendo durante, os bons préstimo de Jesus Duque e seus candelabros de prata e sua margem de lucro e seus candelabros de lucro e seu lucro que em prata davam tão boa margem de cervejaria-marisqueira. Os cubos de pão torrado bebiam sozinhos o creme de frutos-do-mar, permitindo-lhe para sempre a introspecção rápida do espumante gelado e a consequente extracção do cérebro pelo nariz como na técnica balsâmica dos faraós.
Finíssimas fatias de presunto, bêbedas da poesia pura do puro sumo de melão, lavavam a boca entre as atrocidades dentais, das que menor não foi a ingestão, sem guarnições tolas de acréscimo, de um linguado de longitudinal fractura exposta à manteiga e à salsa, sentido o humílimo parentesco desta com o trevo-mijão.
A toalha, branca de neve, dispunha anões solícitos e sete: a tacinha de estanho com o detergente digital ungido de limão químico; o recebedouro de caroços cuspidos sem banda sonora; o cinzeiro terminal para o cubano filosófico; o pratito quase proletário de manteigas de alho e queijitos de cabra em série; o guardanapo de linho pesado como um dote de arca ou um cinzeiro de grés; a chapa perfurada com o número da mesa; e a mão esquerda de António Tomás, que, sufocada até à gangrena pelo anel matrimonial, ourejava em vão o prol de um amor extinto.»

em, Terminação do Anjo, de Daniel Abrunheiro.


foto: Wing of Death, de EUHAU