04/06/13

O Meu Braço de Ferro Com os Grandes Escritores que Não Usam Pontuação no Caraças dos Livros, por Crítico Literário



Há cerca de um ano, aproveitando a visita de um amigo que habitualmente reside em Paris e gosta, como eu, destas coisas da leitura, pedi-lhe uma sugestão. Um novo autor, algo que valha a pena e que aqui desconheçamos. O meu amigo não me faltou (como nunca falta um amigo) e levou-me imediatamente à livraria mais próxima, onde, da estante da letra E, tirou Zone do francês Mathias Énard. Compra-o à confiança. É o melhor escritor francês actual e vai ser o maior nome das letras francesas. Comprei-o, pois.

Mas mais valia estar quieto. Logo ao desfolhar o livro verifiquei que se tratava de mais um exemplar daquela corrente estética (?) que defende que os livros devem ser escritos sem pontuação, sem distinção entre maiúsculas e minúsculas e, sobretudo, sem jamais usar um singelo ponto final. Parece que o autor, segundo li numa entrevista, tentou reproduzir o ritmo de uma viagem de comboio – a história é narrada a partir dessa perspectiva – e como o comboio não para, nós também não podemos ter apeadeiros…

Convém esclarecer que tenho uma espécie de posição de princípio em relação a esse tipo de escrita, que pode resumir-se assim: não leio! Pode tratar-se do mais genial escritor do mundo, não discuto. Simplesmente não leio porque este estilo faz-me sempre sentir gozado pelo autor. Estou a perder Saramago, certa partes de Joyce, algum Lobo Antunes. Talvez, mas felizmente existem muitos outros autores igualmente geniais que usam pontuação. É verdade que digo isto e que depois acabo sempre por dar uma chance (salvo seja)a certos autores. E, por isso, não desisti logo de Mathias Énard e também tentei ler Zone. Tentei, até ao momento de irritação fatal em que, simplesmente, atingi um ponto de saturação tal, que corri à livraria e troquei o livro por outro (por um bom velho e conservador Dostoievsky, se não estou em erro).

Na semana passada, porém, voltei a ouvir falar de Mathias Énard a propósito do  lançamento no nosso país de Fala-lhes de Batalhas, de Reis e de Elefantes (D. Quixote). A história interessou-me – fala de um convite que foi dirigido ao grande Miguel Ângelo pelo sultão Otomano para que construísse uma ponte em Istambul, projecto já anteriormente tentado, mas não concretizado, por da Vinci. Por curiosidade peguei no livro e desfolhei-o. Primeira surpresa: não está escrito como Zone, Énard escreve respeitando as regras elementares de pontuação! Grande vantagem. Fui entrando no livro e, confesso, pasmei! Quando dei por mim tinha lido 100 páginas de um fôlego. Trata-se de  um livro fabuloso e Énard é, afinal, tão genial como o meu amigo «francês» me tinha dito. A sua escrita é de um lirismo arrepiante, a narrativa, a caracterização (Énard passou três anos a recolher informação sobre o império otomano),a força persuasiva do argumento, é a melhor edição do ano no nosso país… Achei brilhante a  metafísica inerente: tudo é efémero na passagem de Miguel Ângelo por Istambul – da qual nem sequer temos a certeza absoluta de que tenha ocorrido, de facto. Até a sua ponte que terá ruído num terramoto, tal como a sua funesta paixão andrógina e a sua amizade equívoca com o poeta e calígrafo turco que o acolhe… Restou uma ferida de uma adaga a Miguel Ângelo da sua efémera passagem por Istambul – uma ferida que rivaliza para ele com as suas imortais criações. Vou ficar atento à espera do próximo livro de Énard, autor de quem espero grandes feitos literários.

O caso deste autor é um exemplo flagrante de como um pré-conceito estético/estilístico/ideológico pode, facilmente, matar um grande livro e um grande autor. Acredito que, escrito de outra maneira, Zone também poderia ser um grande livro. Ou melhor, acredito que o leria com o mesmo entusiasmo – porque a genialidade do autor ainda lá deve estar - e que poderia retirar dele tanto prazer como retirei de «Fala-lhes de Batalhas». O contraste entre os dois Énards é chocante e, sinceramente, não vejo o que é que se ganha em obrigar o leitor a colocar-se na pele do revisor do texto do autor, obrigando-o a colocar a pontuação que já devia vir feita. Na arte como na vida o preconceito – mesmo quando é assumido com a melhor das intenções – pode ser um defeito terrível. E, não, não conto voltar a reler Zone. Mas espero ansiosamente pelo próximo Énard.