12/09/13

E Posso Respirar?, por Mau Mé Mé

Nos outros países onde já estive tenho, geralmente, a sensação de ser do mundo e do mundo ser uma extensão de mim próprio. A alegria da viagem tem muito a ver com essa sensação de descoberta do mundo que é, ao mesmo tempo, a descoberta de mim próprio ou, dito de outro modo, de como sou muito mais do que pensava ser. Pessoa já dizia que somos do tamanho do que vemos e não da nossa altura e assim é.

Mas nos países muçulmanos, como agora o Dubai, tenho a sensação contrária: a de não ser do mundo  e do mundo não ser meu. Num país muçulmano sinto-me a pisar solo que não devia, a respirar ar dos outros, a mover-me para a esquerda quando devia mover-me para a direita, a olhar em frente quando devia estar de olhos postos no chão, a dizer sim quando devia ter dito não e vice versa, a correr quando devia andar... Eu sei sempre que, seja o que for que faça estou certamente a fazer algo proibido (e para uma mulher ainda é pior). A negação deve ser a ideia mais cara aos muçulmanos: «não» é a palavra preferida desta gente.

11/09/13

Iconoclastia Vegetal, por Bruce

Ito Jakuchu (1716-1800) é um dos grandes pintores japoneses do século XVIII. Este quadro parece, aos olhos apressados de um ocidental, uma natureza morta:

Nada mais falso. O título do quadro, uma das jóias da coroa do Museu Nacional de Quioto, é Vegetable Parinirvana. O termo Parinirvana designa o momento em que o Buda Shakyamuni, à data com cerca de 80 anos, anuncia aos seus discípulos que sentindo a aproximação da sua própria morte física, se irá retirar para atingir o estado de nirvana. O Buda deitou-se e aguardou serenamente a chegada da morte física atingindo, então, a libertação ou parinirvana. Existem milhares de representações em todo o Oriente, desde a escultura à pintura, que representam este momento. É o caso do enorme Buda Deitado, o ícone mais famoso do templo Wat Pho em Banguecoque na Tailândia:



Apesar do parinirvana não dever ser considerado um momento negativo - muito pelo contrário - os díscipulos de Buda sentiram-no profundamente e choraram a morte do mestre. Segundo alguma literatura até os deuses, os animais e as próprias plantas choraram a morte de Buda. A dor e o sofrimento de humanos, deuses, animais e plantas é representado muitas vezes, por exemplo neste quadro:



E compreendemos assim melhor o significado do quadro de Jakuchu que está longe de ser uma simples natureza morta: ele é a própria representação do Parinirvana. No centro do quadro Buda é representado na forma de um rabanete gigante estendido numa esteira, precisamente, na posição de parinirvana. Os restantes vegetais à sua volta, aparentemente colocados ao acaso, formam um círculo  e a atmosfera desolada, o caos, o desenraizamento dos legumes sublinham a dor que todos sentem. Na parte superior do quadro, a mãe do Buda, a Rainha Maya, é representada como um marmelo que desce do céu.

Embora o humor não seja estranho à tradição Zen, da qual Jakuchu é um eminente representante, a intenção do pintor não foi, longe disso, brincar com coisas sérias. Ao representar um dos momentos mais importantes da religião budista recorrendo a vegetais e a legumes, o pintor quis exprimir de um modo extraordinariamente simples a noção de que a presença de buda está em todo o ser, até naqueles que consideramos irrelevantes. Um rabanete deitado ou uma alface desolada não são menos importantes que um ser humano magnífico ou que um Deus. O quadro é, assim, um manifesto de humildade e simplicidade que dificilmente encontramos noutras religiões: alguém imagina a paixão de Cristo pintada em versão leguminosa com os carrascos romanos pintados como tomates podres e Barrabás como uma couve galega? Ou a subida de Maomé aos Céus montado numa beterraba voadora em vez de no imponente corcel branco, Buraq?

04/09/13

Porque é que não pegam em todos os vossos biliões de dirhams e compram um sítio melhor para lá montarem a vossa cidade? por Mau Mé Mé

O Dubai é uma cidade virtual, uma ficção absurda construída contra a natureza. De um lado a teimosia do homem aliada à força do dinheiro, do outro a implacabilidade da natureza. De um lado o skyline da Marina Dubai, do outro a água do golfo pérsico a 40 graus às onze da noite, os relógios Rolex de 10 em 10 metros num dos maiores aeroportos do mundo e as marcas do tempo a remoerem os arranha céus, a névoa plúmbea que envolve a cidade a contrastar com o azul foto-shop da publicidade, a pequenez sofrida dos trabalhadores africanos, paquistaneses, indianos, filipinos em guerra atroz com o calor insuportável das três da tarde. Se não fosse a aparência high-tech desta cidade sentir-nos-íamos em pleno deserto que é o que, no fundo, é este sítio: um prolongamento das areias ferventes da arábia saudita  até ao mar. O Dubai é uma espécie de bruxa disfarçada de bela donzela - se olharmos bem conseguimos ver as rugas da mulher velha por detrás da sua beleza aparente.