Pequim é uma cidade indefinida, não tem um traço de
personalidade vincado, ao contrário de Xangai. Do ponto vista urbanístico e
arquitectónico, Xangai é única. De qualquer sítio desta megametrópole de cerca
de 30 milhões de habitantes, vê-se um edifício icónico, seja a torre das telecomunicações,
a Xangai Tower (a babel chinesa, o edifício mais alto da China) ou o
celebérrimo abre-latas, entre muitos outros. Além disso, Xangai é policêntrica,
tem diversas zonas marcantes como o óbvio centro financeiro de Pudong ou o
Bund, na margem direita do rio Huang Po, a People Square ou ainda Nanjin Road.
Pequim não é assim. À excepção de Tianamen, tem muitas zonas
indistintas que podiam estar em qualquer outra cidade global, com os seus
prédios de verticalidade anónima. Deste ponto de vista, Pequim está mais
próxima de Madrid ao passo que Xangai faz lembrar Barcelona, mais icónica e
distinta (traduzo, simplificadamente, para a minha própria escala familiar a
incomensurabilidade das dimensões chinesas).
Tianamen é o verdadeiro coração de Pequim. A célebre praça
dos massacres de 1991 é um símbolo chinês (não por aquela razão,
confortavelmente atirada para debaixo do tapete da memória colectiva chinesa
recente, vantagens de não haver Google na China…), mas não um ícone cosmopolita,
como os edifícios de Xangai. No seu lado Este encontra-se a magnífica Cidade
Proibida, local de peregrinação de milhões de visitantes, na sua esmagadora
maioria, chineses, parecem-me habitantes do interior que fazem a viagem das
suas vidas e se emocionam com toda a iconografia que levaram uma vida a
venerar, um pouco como a malta das excursões em Portugal que vai visitar os
Jerónimos ou o Mosteiro da Batalha com a emoção de quem vai a Roma ver o Papa.
A Cidade Proibida é um local magnífico, sem dúvida, e dou graças aos deuses comunistas
por terem inspirado Mao a poupá-la em vez de, como seria natural nele, mandar
destrui-la em nome da obsessão comunista com o apagamento dos vestígios da china
imperial. Muitas outras maravilhas do passado, como a muralha histórica de
Pequim, por exemplo, que foi praticamente destruída, não tiveram a mesma sorte.
Muitos pagodes, templos, túmulos antigos e estátuas foram destruídos.
Saquearam-se museus e bibliotecas, queimaram-se livros - tudo o que cheirava a
«antigo» foi pilhado. Mas a Cidade Proibida talvez fosse suficientemente poderosa,
demasiado imponente e admirável, para que os comunistas sonhassem sequer
destruí-la. E mesmo assim só sobreviveu à voracidade predadora da Revolução
Cultural graças à lucidez do primeiro ministro Zhou Enlai que mandou o exército
guardá-la.
Aquilo é impressionante, mesmo para um comunista supostamente animado
de ódio à civilização imperial: a sua escala, a sua dimensão impressionante, os
seus pátios gigantescos, as suas esculturas e pavilhões, a sua lógica simbólica
(a água, a terra, o ar, o fogo, a madeira - os elementos fundamentais para os
chineses), os seus estandartes imperiais (rara excepção na ânsia reset da revolução comunista), os seus
pedaços de paisagens metodicamente recortados nos portões enormes, quando
passamos de um pátio para outro… E só depois de passarmos pela experiência de
deslumbramento que é passear pela Cidade Proibida é que nos apercebemos da
imensidão provocadora do retrato de Mao à entrada. O ditador, ao menos tinha
sentido de humor... Deixar a sua fotografia na fachada do mais reservado e
exclusivo (como se sabe apenas o imperador e o seu séquito podiam transpor os
portões da Cidade Proibida) de todos os espaços da milenar China, é uma
verdadeira heresia, um escarro na solenidade imperial. O maior apologeta da
igualdade faz-se retratar na fachada do mais exclusivo espaço de toda a
história da China, Charlot no Olimpo, Bucha e Estica em Vaalhala…
Ou então, pensando melhor, Mao não tinha sentido de humor
rigorosamente nenhum e simplesmente levava-se a sério (é sabido que levar-se
muito a sério é marca distintiva das pessoas que não têm sentido de humor)...
Arauto da igualdade radical entre todos os homens, a verdade é que acabou por
se tornar, ele próprio, no senhor absoluto e omnipotente de toda a China,um quase Deus. Mao
impôs o culto da personalidade em todo o país: a fidelidade ao Grande Líder
tornou-se mais importante que a fidelidade à própria família; preconizou a
despersonalização total do indivíduo e a sua fidelidade total ao chefe; impôs
um regime de vigilância totalitarista, até aos mais profundos meandros da consciência
individual de cada habitante da China, um regime tão panóptico que nem Michel
Foucault ousou conceber algo de tão radical nas páginas mais radicais de Vigiar e Punir. Implantou um culto da
personalidade (da sua), cujo reverso foi a despersonalização de cada indivíduo
(em nome da fidelidade a Mao, deixa de pensar, faz o que te ordenam, morre se
preciso for, não existas)… No fundo o regime maoista não foi mais que a
continuidade da tradição chinesa do despotismo e do absolutismo que vem
das profundezas das dinastias imperiais.
E, por isso, talvez não seja assim tão incoerente, a fotografia de Mao à entrada
da Cidade Proibida. No fundo existiram dois Maos: o líder comunista e o
imperador, sendo que o segundo acabou sempre por se impor ao primeiro. O último
imperador, afinal, não foi Pu-Yi, mas o Grande Timoneiro: sua Majestade
Imperial, o Divino Mao Tse Tung.
Em Xangai, um grupo de ocidentais como nós, passa
perfeitamente despercebido e ninguém estranha a nossa presença. Percebe-se – é uma
cidade cosmopolita. Mas em Pequim, as pessoas entusiasmam-se e vibram connosco,
como se fôssemos espécimes raros vindos de outro mundo. Pedem-nos constantemente
para que tiremos fotos com eles, são extremamente afáveis e premeiam-nos com
sorrisos e gritinhos depois de conseguirem a almejada foto. Nós sentimo-nos um
pouco como Marco Polo se deve ter sentido há 800 anos atrás. Os pais trazem os
filhos para nos verem, as famílias reúnem-se apressadamente para capturarem a
imagem de um de nós entre eles e, quando há um indivíduo a tirar-nos uma foto,
olhamos melhor e já estão mais dez atrás a aproveitar a boleia.
Nada disto passa pela cabeça aos habitantes de Xangai para
quem somos só mais meia dúzia de estrangeiros entre os muitos que por ali
passam. Xangai parece-me uma outra China, mais moderna, mais aberta que a
ortodoxa Pequim. E talvez não seja por acaso que a nossa guia em Xangai, Cati
(nome ocidental para o podermos fixar melhor que o original chinês) seja
notoriamente mais desenvolta e urbana que a sua colega de Pequim, Marta. Esta
não só fala um castelhano mais ou menos ininteligível, como, sobretudo, é mais
obtusa: tem dificuldade em ouvir-nos e descamba, invariavelmente, em
verborreias exasperantes. Tem uma fixação em histórias de doenças e hospitais,
mostra-se obcecada com as dificuldades sofridas no passado recente por si e
pelos seus pais «camponeses», como faz questão de sublinhar. As suas histórias
não são destituídas de interesse, mas tornam-se repetitivas, obsessivas,
maçadoras. Marta ignora o humor e respeita a ortodoxia comunista, dela não se
ouve uma sílaba crítica da ideologia e do poder dominantes.
Mas Cati, percebi-o imediatamente, assim que nos deu as boas
vindas e começou a falar, é mais crítica. Goza com os tiques do regime, tem um
sentido de humor e uma ironia que a distanciam da seriedade e da rigidez da sua
colega de Pequim. Marta achava natural que o facebook estivesse bloqueado na China, claro, trata-se de uma
república socialista; mas Cati falou-nos logo de uma app chinesa que permite desbloquear o FB e o Google e aceder, como
ela diz, «à civilização». Fala um excelente castelhano, vivo e fluído –viveu na
argentina – tem umas noções de português-brasileiro e, sobretudo, sabe ouvir e
passar informação nas doses certas, sem nos assoberbar com excessos. Para mim, ambas as guias passaram a representar as duas chinas,
Marta, a China tradicional, comunista, rígida e fechada; Cati, a china moderna
e cosmopolita. Um país, dois sistemas, na fórmula de Deng Xiao Ping: Xangai e
Pequim, o capitalismo fervilhante e a atrofia comunista.