A propósito de listas de filmes, preferências e da subjectividade que lhes é inerente, não resisti a publicar o texto que João Bénard da Costa escreveu para “100 Dias 100 Filmes”, catálogo publicado pela Cinemateca Portuguesa e integrado no programa de “Lisboa 94 – Capital Europeia da Cultura”.
«PRELÚDIO E POST SCRIPTUM AOS MEUS 100 MELHORES FILMES EUROPEUS.
“Um peru” - disse um gourmet célebre – “é um animal execrável. Pequeno demais para dois, grande demais para um”. Cem é um número igualmente execrável, quando se trata de uma lista destas. Parece que nos vamos poder servir à vontade e no fim verifica-se que ficamos cheios de fome. Não dá para o rigor mortal da escolha de “10” ou “20” ou “50”, mas também não permite qualquer esbanjamento. Dá-nos uma falsa ilusão de abundância, mas depressa lhe descobrimos a escassez.
A minha primeira lista (feita “à vontade”) quadruplicou o número de possibilidades. Na segunda, comecei a economizar e cheguei aos 200 títulos. Reduzi-os a 100, demorou-me meses e obrigou-me a opções penosas. Para o conseguir, tive de estabelecer uma regra para o meu jogo. Essa regra veio direitinha da “politique des auteurs” e da minha velha fidelidade a ela.
Na primeira jogada, perguntei-me quem eram, indiscutivelmente, os gigantes do cinema europeu, os maiores dos maiores. Dreyer, Godard, Lang, Renoir e Rossellini foi a resposta que ouvi no meu espelho mágico. Perguntei-lhe por Hitchcock e o espelho respondeu-me que Hitchcock só é Hitchcock por causa da sua fase americana. Com má consciência - miséria a quanto obrigas – deixei-me convencer. Obediente à hierarquia, escolhi cinco filmes de cada um desses cinco. Descobri, no fim de mais uma lista, que ainda ultrapassava os 100. Reduzi para quatro, o que me obrigou a sacrificar Mikael de Dreyer, À Bout de Souffle de Godard, Das Testament des Dr. Mabuse de Lang e La Bête Humaine de Renoir. Arranquei esses filmes – cinco dos meus filmes preferidos – como arranquei alguns dentes.
Depois, perguntei-me (segunda jogada), quem eram, indiscutivelmente, os autores que, além dos cinco citados, eu mais amava. Obtive 12 nomes, a que não podia fugir sem renegar pai e mãe: Bergman, Bresson, Buñuel, Demy, Murnau, Oliveira, Ophuls, Powell, Rohmer, Schroeter, Syberberg e Visconti. Escolhi, em primeira instância, quatro filmes de cada um. A consequência dessa verdade, fez-me ultrapassar, de novo, os 100. E reduzi para três, o que me obrigava a sacrificar Vargtimmen de Bergman, Les Dames de Bois de Boulogne de Bresson, La Voie Lactée de Buñuel, Trois Places pour le 26 de Demy, Der Letzte Mann de Murnau, Amor de Perdição de Oliveira, La Signora di Tutti de Ophuls, The Thief of Bagdad de Powell, Ma Muit Chez Maud de Rohmer, Der Tod des Maria Malibran de Schroeder, Ludwig de Syberberg e Vaghe Stelle dell`Orse de Visconti. Ou seja, menos doze dentes.
Com a boca tão desdentada, tinha já 56 filmes. Ficavam-me menos de 50 (menos de 50%) para as apostas simples, ou seja as não obrigadas a autor. Pelo caminho, foram desaparecendo os dezanove dentes que me restavam: Amphytrion de Schunzel, Fortini-Cani e Nicht Versohnt dos Straub, Aerograd de Dovjenko, Repulsion de Polanski, Desiré de Sacha Guitry, Le Rideau Cramoisi de Astruc, Un Soir... Un Train... de Delvaux, La Tête Contre les Murs de Franju, 1860 de Blasetti, L`Amour Fou de Rivette, Muriel de Resnais, Et La Lumière Fut de Iosseliani, La Chute de la Mison de Usher de Epstein, Hintertreppe de Jessner, Aguiree de Herzog, Die Buchse der Pandora de Pabst, San Toit ni Loi de Agnés Varda, Dorogoi Tsenoi de Donskoi, El Sur de Victor Erice e Poema o More de Yulia Solntseva.
Com as gengivas descarnadas, já engoli que Under Capricorn de Hitchcock e Pandora de Lewin eram filmes americanos, que Douglas Sirk nunca se chamou Detlef Sierk e que Muratova ainda está por provar.
Só no fim reparei – lapsus calami – que na minha lista não figura nenhum filme de Tati. Mas é verdade que me esqueci dele e, com tanta penúria e tanta miséria, aceitei a voz do meu inconsciente.
Se me tivessem deixado escolher 150 filmes, ainda tinha juntado aos 42 a menos (Tati figuraria com Playtime e Mon Oncle), Le Peti Théatre de Jean Renoir, Vredens Dag de Dreyer, Ansikte mit Ansikte de Bergman, Frenzy de Hitchcock, Madame De... de Ophuls, Der Tod des Empedokles de Straub-Huillet, Une Sale Histoire de Eustache, Les Enfants Désaccordés de Garrel, e Frankenstein Created Woman de Terence Fisher.
Mas o facto é que não deixaram e os cinquenta filmes que cito aqui são a homenagem que o vício presta à virtude. Demais se eu que para efeitos de contas, e para contas de efeitos, de nada me serve citá-los.
Os 100 são os 100. E, de acordo com os critérios explicados, vão a seguir.»
Bénard da Costa termina com uma lista de 100 filmes dividida em três partes:
I. Os Gigantes
II. Os Muito Amados
III. Alguns dos Outros
Confesso que nunca vi muitos dos títulos escolhidos pelo autor. E o que me ocorre de imediato, após ler esta catalogada incursão pelos filmes de uma vida, é a complexidade da escolha, a dor decorrente do sacrifício e a vastíssima celebração que o cinema pode proporcionar a quem o contempla. Amanhã vou ver o Episódio III da Saga. O fim de um ciclo que começou há 28 anos atrás. Amanhã vai ser dia de celebração.
«PRELÚDIO E POST SCRIPTUM AOS MEUS 100 MELHORES FILMES EUROPEUS.
“Um peru” - disse um gourmet célebre – “é um animal execrável. Pequeno demais para dois, grande demais para um”. Cem é um número igualmente execrável, quando se trata de uma lista destas. Parece que nos vamos poder servir à vontade e no fim verifica-se que ficamos cheios de fome. Não dá para o rigor mortal da escolha de “10” ou “20” ou “50”, mas também não permite qualquer esbanjamento. Dá-nos uma falsa ilusão de abundância, mas depressa lhe descobrimos a escassez.
A minha primeira lista (feita “à vontade”) quadruplicou o número de possibilidades. Na segunda, comecei a economizar e cheguei aos 200 títulos. Reduzi-os a 100, demorou-me meses e obrigou-me a opções penosas. Para o conseguir, tive de estabelecer uma regra para o meu jogo. Essa regra veio direitinha da “politique des auteurs” e da minha velha fidelidade a ela.
Na primeira jogada, perguntei-me quem eram, indiscutivelmente, os gigantes do cinema europeu, os maiores dos maiores. Dreyer, Godard, Lang, Renoir e Rossellini foi a resposta que ouvi no meu espelho mágico. Perguntei-lhe por Hitchcock e o espelho respondeu-me que Hitchcock só é Hitchcock por causa da sua fase americana. Com má consciência - miséria a quanto obrigas – deixei-me convencer. Obediente à hierarquia, escolhi cinco filmes de cada um desses cinco. Descobri, no fim de mais uma lista, que ainda ultrapassava os 100. Reduzi para quatro, o que me obrigou a sacrificar Mikael de Dreyer, À Bout de Souffle de Godard, Das Testament des Dr. Mabuse de Lang e La Bête Humaine de Renoir. Arranquei esses filmes – cinco dos meus filmes preferidos – como arranquei alguns dentes.
Depois, perguntei-me (segunda jogada), quem eram, indiscutivelmente, os autores que, além dos cinco citados, eu mais amava. Obtive 12 nomes, a que não podia fugir sem renegar pai e mãe: Bergman, Bresson, Buñuel, Demy, Murnau, Oliveira, Ophuls, Powell, Rohmer, Schroeter, Syberberg e Visconti. Escolhi, em primeira instância, quatro filmes de cada um. A consequência dessa verdade, fez-me ultrapassar, de novo, os 100. E reduzi para três, o que me obrigava a sacrificar Vargtimmen de Bergman, Les Dames de Bois de Boulogne de Bresson, La Voie Lactée de Buñuel, Trois Places pour le 26 de Demy, Der Letzte Mann de Murnau, Amor de Perdição de Oliveira, La Signora di Tutti de Ophuls, The Thief of Bagdad de Powell, Ma Muit Chez Maud de Rohmer, Der Tod des Maria Malibran de Schroeder, Ludwig de Syberberg e Vaghe Stelle dell`Orse de Visconti. Ou seja, menos doze dentes.
Com a boca tão desdentada, tinha já 56 filmes. Ficavam-me menos de 50 (menos de 50%) para as apostas simples, ou seja as não obrigadas a autor. Pelo caminho, foram desaparecendo os dezanove dentes que me restavam: Amphytrion de Schunzel, Fortini-Cani e Nicht Versohnt dos Straub, Aerograd de Dovjenko, Repulsion de Polanski, Desiré de Sacha Guitry, Le Rideau Cramoisi de Astruc, Un Soir... Un Train... de Delvaux, La Tête Contre les Murs de Franju, 1860 de Blasetti, L`Amour Fou de Rivette, Muriel de Resnais, Et La Lumière Fut de Iosseliani, La Chute de la Mison de Usher de Epstein, Hintertreppe de Jessner, Aguiree de Herzog, Die Buchse der Pandora de Pabst, San Toit ni Loi de Agnés Varda, Dorogoi Tsenoi de Donskoi, El Sur de Victor Erice e Poema o More de Yulia Solntseva.
Com as gengivas descarnadas, já engoli que Under Capricorn de Hitchcock e Pandora de Lewin eram filmes americanos, que Douglas Sirk nunca se chamou Detlef Sierk e que Muratova ainda está por provar.
Só no fim reparei – lapsus calami – que na minha lista não figura nenhum filme de Tati. Mas é verdade que me esqueci dele e, com tanta penúria e tanta miséria, aceitei a voz do meu inconsciente.
Se me tivessem deixado escolher 150 filmes, ainda tinha juntado aos 42 a menos (Tati figuraria com Playtime e Mon Oncle), Le Peti Théatre de Jean Renoir, Vredens Dag de Dreyer, Ansikte mit Ansikte de Bergman, Frenzy de Hitchcock, Madame De... de Ophuls, Der Tod des Empedokles de Straub-Huillet, Une Sale Histoire de Eustache, Les Enfants Désaccordés de Garrel, e Frankenstein Created Woman de Terence Fisher.
Mas o facto é que não deixaram e os cinquenta filmes que cito aqui são a homenagem que o vício presta à virtude. Demais se eu que para efeitos de contas, e para contas de efeitos, de nada me serve citá-los.
Os 100 são os 100. E, de acordo com os critérios explicados, vão a seguir.»
Bénard da Costa termina com uma lista de 100 filmes dividida em três partes:
I. Os Gigantes
II. Os Muito Amados
III. Alguns dos Outros
Confesso que nunca vi muitos dos títulos escolhidos pelo autor. E o que me ocorre de imediato, após ler esta catalogada incursão pelos filmes de uma vida, é a complexidade da escolha, a dor decorrente do sacrifício e a vastíssima celebração que o cinema pode proporcionar a quem o contempla. Amanhã vou ver o Episódio III da Saga. O fim de um ciclo que começou há 28 anos atrás. Amanhã vai ser dia de celebração.
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