08/08/07

Metamorfose, por Metamorfo

Era uma vez um Jorge que estava deitado na praia. De barriga para baixo. Ao lado, sentada numa cadeirinha de lona com encosto, era uma vez a mulher do Jorge que não parava de falar. Não se calava, aparentemente indiferente às debaldadas tentativas de explicita indiferença do Jorge.
Não sei o que é que hei-de fazer para o jantar e não sei se já reparaste que a tenda tem um buraco no tecto da sala este ano não gosto nada dos vizinhos parece que são do Norte ouviu-os ontem a discutir e parece-me gente reles é pena os Tavares não terem vindo este ano ao que parece foram para Torremolinos numa promoção da agência disse-me a Clara que mora lá perto deles e este ano ficou no parque ao pé das casas de banho e trouxeram uma caravana nova e não te esqueças de arranjar o buraco olha para aqueles dois que figura tão ridícula há gente que não tem vergonha nenhuma acho que vou passar ainda no supermercado para comprar peixe está-me a apetecer peixe vais ver que vais gostar daquele pequenino frito com escabeche olha aqui na revista diz que a Alexandra Lencastre foi de férias com um namorado novo.
O Jorge procurava distrair-se com despidos corpos adolescentes na praia e não conseguia. Tentou dormir, fechou os olhos e fez um esforço titânico para pensar em carneiros a saltar barreiras. Concentrou-se e imaginou-se a flutuar dali para fora. Nada. A voz não havia maneira de se ir embora.
Amanhã tenho de ir ver aquela loja dos saldos sabes aquela com aquelas sandálias giríssimas que devem vir de Marrocos ou lá o que é este ano está menos gente na praia parece-me o tempo também não ajuda nada já não se percebe nada disto e não me admirava que chovesse e lá tínhamos as férias estragadas bem disse o Afonso lá da repartição que o clima andava todo baralhado deve ser do buraco do ozono ou lá o que é e já reparaste nos vizinhos da tenda amarela mas que coisas tão pindéricas e depois têm aqueles filhos irritantes a guinchar todo o santo dia não há pachorra.
Ao mexer na areia com os dedos aborrecidos, o Jorge encontrou um comprimido. Amarelo e achatado, ainda dentro de um invólucro de plástico transparente não identificado.
Acho que te esqueceste de trazer as acendalhas para o grelhador eu já sabia agora temos de comprar um pacote novo quando temos tantas em casa olha para o chapéu daquela mas que coisa tão horrível isto há mesmo gente sem gosto nenhum usam cada coisa agora que é de meter medo ao susto parece o chapéu da minha avó que deus a tenha por falar nisso temos de ligar à minha cunhada por causa do terreno que ela deixou porque as extremas não estão bem e a culpa é do cabrão do meu irmão que tem a mania que é esperto mas eu já lhe digo como é olha vem ai o homem dos gelados.
O Jorge hesitou e levou o comprimido à boca. E esperou, enquanto ao lado a mulher prosseguia no seu entretém verbal. Alguns minutos depois, a voz começou a ficar distante e o Jorge deixou-se embalar pela estranheza quente que lhe percorria a pele por dentro. Inspirou profundamente o perfume do oceano, com intenso prazer, um prazer que nunca sentira e, aos poucos, foi crescendo penas, foi mudando suavemente de forma e metamorfoseou-se em gaivota. Finalmente, com o que parecia um sorriso no bico, deu três passos trôpegos na areia e voou em direcção ao mar dali para fora.

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