21/07/08

Chuva, por Mangas

Durante muitos anos, a velha negra que dormia no quarto das traseiras guardou um sabre de Cavalaria no armário, enrolado num tapete persa. Eu era o único que sabia desse segredo, mas ela nunca suspeitou. Uma noite, a velha negra ouviu passos no quintal, junto à nespereira. Recordo-me que me acordou, segurou-me contra o peito, agarrou o tal sabre e esperou. Os passos eram cada vez mais nítidos, aproximaram-se da persiana corrida do quarto e esperaram. Ouvimos o estalido abafado de um isqueiro e depois um breve silêncio. Os passos regressaram agora mais perto da persiana. A velha negra embrulhou-me numa manta, enfiou-me debaixo da cama, olhou-me nos olhos e colocou o indicador à altura dos meus lábios, descalçou-se e saiu de mansinho com o sabre na mão direita.

A memória mais distante que guardo de África é o cheiro da terra molhada que abafava o quintal, na estação das chuvas. O voluptuoso odor do solo fendido pelas águas, a terra escurecida antes de se transformar em lama, a fina neblina evaporada que se distinguia no horizonte. Apetecia tocar naquela terra. Cheira-la, cravar os dedos e desenhar pequenos buracos. Apetecia come-la, ficar com o sabor atravessado na boca para além do calor sufocante esperado no dia seguinte. Sabia a salgado metálico.

No último momento, os passos silenciosos provinham do centro do quintal na direcção da janela. Por vezes recuavam ou surgiam lateralmente como se estudassem o terreno na escuridão. Depois, veio o silêncio e os passos não mais se fizeram ouvir. Um silêncio estranho, absoluto, como o de um sono profundo que demorou longos minutos apenas cortado pelo som de água a cair de uma torneira junto ao muro.

A velha negra entrou no quarto com o sabre na mão esquerda, enrolou-o no tapete persa, puxou-me para a cama e deitou-se ao meu lado até eu adormecer.

A nespereira nunca mais deu nêsperas depois daquela noite.
Foto: These fleeting moments, de Jason Ertel

17 comentários:

Anónimo disse...

Mangas, um homem telúrico. Mas a terra, meu car, não chega aos calcanhares do mar. Entre uma quinta no interior com bichos e tudo, para criares e uma simples casa numa praia deserta à beirta mar, qual preferias? eu não tenho dúvidas...
Sapateira

Anónimo disse...

ahah. Entendeste. Tinha k montar qualquer coisa à volta daquilo k falamos. Com bichos e tudo? Méne, tu és homem de mar definitivamente, eu sou homem de terra, assumidamente - está-me no sangue, não é opção. O k prometo é lá ter muita água para tu mergulhares.

Percebes&Cerveja

Anónimo disse...

Por falar em mar, ouvi dizer que o Grão anda tão gordo, que quando vai molhar os pés em Mira a maré sobe durant três dias.

Anónimo disse...

Foda-se!!!!!

Anónimo disse...

eu acho muita piada a estes gajos com saudades da terra e dos bichos. os telúricos, que tanta úlcera dão ao Vargas LLosa.

Obviamente, trata-se de animais urbanos da bica e do croquete que jamais andaram dois dias seguidos com uma infernal máquina de sulfatar vinha às costas à torreira do sol e a mastigar sulfato de cobre durante uma semana. é malta que jamais chorou na horta porque a torneira da rega que se abriu até meio e que está a 700 metros está a debitar um jorro de água com uma força tal que quando se lá chega para corrigir já metade do batatal se está a rir ao sol. eu gosto desta maltosa. são almas catitas que dão gosto. não gosto é da terra e dos bichos, são coisa fodidas e levadas do demo.

ass: o gajo que faz subir a maré em mira

PS: Cão, já tropeçaste no Tinó ultimamente? desvia-te da sombra que ficas três meses no escuro.

Anónimo disse...

Eia, um ataque cerrado do Homem da Maré de Mira ao telúrico mangas. Creio que nas entrelinhas se lê que o Homem da maré é que é um verdadeiro telúrico que se indigna, com toda a legitimidade diga-se, com esta chegada dos novos-telúricos comó Mangas. O Mangas não é um telúrico mas tão só um diletante romântico que não conhece o âmago da terra, o seu ser profundo, visceral e violento? Será assim, Mangas? Que dizes em tua defesa? Ou, no fundo, no fundo, o que tu querias era mesmo, como eu, a tal casita nas dunas a ver o mar?
Aquaman

Anónimo disse...

a terra e a bicharada associada é bonita pra quem tem rendimentos catitas de outro lado e se diverte a ver crescer umas couves galegas no quintal enquanto mama umas cervejolas fresquinhas.

pró resto da malta que dela arranca o magro sustento ou pra quem se vê obrigado a nela trabalhar, a coisa é é indescritível, é um pesadelo de esforço inglório e frustrante, um infindo mar de trabalho pesado e duro, sem horários, férias ou décimo terceiro mês, e que muitas vezes só se aguentam à força de litrozas tintas de 5 litros ou de aguardentes que matam tanto bicho que já nem ardem em restolho tão carcomido.

misturar isto com pores do sol e bicharada romântica é tarefa de poeta que não de lavrador.

ass: maré enchente

Anónimo disse...

e atenção que eu gostei do texto do Mangas. tá bonito. não embarco é no voluptuoso e duvido que o mangas comaquilo às mãos cheias. não comia de certeza. fugia na primeira torreira ou ficava à espera que a velha do sabre lhe trouxesse as nêsperas, lavadinhas e fresquinhas.

Ass: homem das marés

Anónimo disse...

Hehe, Príncipe das Marés! Desta vez não fizeste o trabalho de casa. Em termos de prólogo e para abreviar, remeto-te aqui. Depois deixa-me acrescentar alguma coisita mais: nos primeiros meses de guarida aquartelada pós Abril-74, não havia sequer terra para sujar as mãos. Dormíamos os quatro no mesmo quarto, com aquecedor a gás até acabar, porque o nevão de Bragança ardia bem mais no pêlo k as praias de Luanda. Nesse tempo, as senhas do IARN (sabes o k quer dizer IARN?), nas longas filas para o leite Nido, os enlatados os kispos e as camisolas de lã, também não deixavam muito tempo para vindimar o k não havia e onde nem o sol chegava. Mais tarde, a coisa lá se compôs com o primeiro trabalho do velho, uma casita sem água canalizada nem luz eléctrica (custou apenas os primeiros Invernos descongelar a água cá fora para lavar as trombas pela manhã, porque a Gabriela ia-se ver ao café a 500 metros, com uma lanterna de bolso a orientar os calhaus e o trilho no restolho). Fodido, fodido era palmilhar 2 kms até ao ciclo, mais tarde, Liceu – estás a ver: um lameiro nevado é molha certa até meio da perna às oito da matina; e a subida depois da ponte do rio Fervença, naquele tempo, eram alguns 700 metros a debitar suor.

Mas sabes meu rapaz, as gentes transmontanas sempre foram generosas e enquanto o meu avô não teve terra, o amanho das terras deles sempre foi bem-vindo. O batatal dos Ala não teria 700 metros, mas a maciez das correias de couro cravadas nos ombros daquelas velhas pulverizadoras carregadinhas de sulfato também por lá se sentiram no pico do suor, e muitas vezes, te asseguro. Mas isso era filhós com mel, meu rapaz! A vergastada maior era andar atrás daqueles ganchos k revolviam a terra e tirar-lhes a rama, ensacá-las e metê-las em cima do tractor e finalmente, descarrega-las.

Anónimo disse...

Lenha, claro, era nos costados em vária viagens, ou de arrasto até ao sequeiro e deixá-la ao lado da fruta para o Inverno: maças espraiadas no chão, figos presos com o píncaro, abrunhos esventrados sem caroço. O quê?? Estás-me a dizer k em Vilela a coisa ia de motoserra e trotinete a octanas super?? Ah luxo! Por lá era à machadada e cunhas aguçadas com marreta nos troncos mais grossos – os putos como eu enfaixavam os molhos com cordas e vai de arrastão até ao quintal. De bicheza e abastança, havia o porquito, como já aqui também te contei – a palha para o burro da Maria dos Óculos não conta, aquilo era diversão pura e metia sempre gajas. Mas, e passados tantos anos, foram tempos do caraças! A aventura de cada Verão é coisa impossível de igualar nos dias de hoje - o rio, os mergulhos a pique dos choupos, a pressão de ar nos estorninhos e nos melros, apanhar o lúpulo em Agosto naquela plantações no Alto das Cantarias (nem sei se ainda existem…). Já meteste as manápulas no lúpulo? Há ali boa disposição contagiante, novos e velhos, mas se queres ganhar uns cobres tens de encher umas boas sacadas… No Inverno havia lareira e castanhas, estudava-se à luz do petromax, coziam-se casulas num pote de ferro ao lume, cantavam-se as Janeiras de porta em porta e aquilo era um fartote de moedas e figos enfarinhados (a Pássara tinha um vinho elogiado, mas tinha a soberba no sangue, nunca abria a porta e enxotava os cães atrás da malta, a puta da viúva!).

Só a terminar, Príncipe, bicas não bebo como sabes – é chá e tinto. Croquetes, não é mal visto, mas também prefiro folar transmontano. Nesta Páscoa prometo-te ferrares o dente num cá de casa para conheceres outros sabores da terra. He pá, e o texto é a história de um crime com o pretexto de falar numa memória sensorial, tão distante quanto verdadeira. Nada mais. K teria visto a nespereira para ficar “muda”?

Anónimo disse...

Os links não apareceram nos "aqui" do texto.

São respectivamente:

http://tapornumporco.blogspot.com/2006/10/texto-sem-ttulo-por-mangas.html

e

http://tapornumporco.blogspot.com/2005/06/bragana-revisitada-e-o-fumeiro-por.html

Anónimo disse...

não vou fazer aqui um concurso de cavadores à lá xeko, até porque a mim chegam-me e sobram-me as calosidades próprias sem desprimor para as alheias que quero é ver longe. de preferência em trás-os-montes.

e é evidente que há alguma private joke por aqui, ou mesmo private poison de um certo homenzinho verde, pois é evidente que os meus groinks mais do bebendo do texto bebem do ranhoso e do venenoso que elogiava o poeta telúrico do mangas das couves galegas. e eu pra telúricos, repito, já dei. mas té gosto de os ver. como aqui à roda da nespereira. cromos do carago.

ass: sapateira da maré

Anónimo disse...

Linde. O texto, os amigos, a terra, a vida do mangas, a praia de mira, tudo, é linde, tudo isto é linde. A sério. E acho que sim senhor, o mangas é um telúrico verdadeiro, genuíno, daqueles que só estão felizes rodeados de montanhas. Sim que o mangas, ao contrário da insinuação do gajo de mira que controla as marés, não é de tangas.

Anónimo disse...

ena cum carago: há munto tempo que não via tanto sulfato junto.
aquela dos "abrunhos esventrados sem caroço" não lembrava ao diabo. indeide falar disto ao tinó, na próxima reencarnação, em Espanha.
agora, gostei muito dos telurismos, que são penduricalhos psíquicos um tanto ou quanto em desvoga desde que a seca do Torga bateu a bota. ainda temos o Alegre, o Exilado, o Estátua de Águeda/Argel, o reformado da RDP após seis meses de "poemas". isso é qué telurismo, fónix. agora, o Mangas, hmmm, aquilo sabre é um bocado pó gay. gosto muito mais dos cabrões dos retornados, essa praga de gafanhotos que nos fodeu os vinhedos e os batatais com os bastardos mulatos e as conas com sotaque põs-25.
quanto ao Grão, é verdade-verdadinha: é a nova rotunda: está tão gordo, que até já se coça pela direita.
quem debe-dandar munta magrinho é o Tinó: a avaliar pelo pouco que pesa no orçamento familiar, debe-de, pois debe.
já o Báice, é uma alegria: ainda anda a sublinhar as cartas para um amigo alemão do Câ-mus. eu tenho muita pena do mangas por causa do Báice. já o Pilita, o do próio levantado no golfe, esse de certeza que a esta hora já anda no choupal a espreitar as fodas disfarçado de desenhador e tal.
muito melhor que eles todos é o Luzi, esse pedagogo imbatível que começou (e acabou) a carreira em Vila Flor, uma terra lá pra cima tão atrasada que só se vê a TVI e quem ligar pá SIC é Pilita, perdão, é coisa, guei ou cuméquessescrebre.

Anónimo disse...

depois dos Telúricos, outra raça com piada é a dos poetas malditos, comó Cão, verdadeiros campeões da metáfora, qual vate permanente em figadeira descrente, e sai rotunda, e eu saio também, com o cuidado de me coçar pela direita.

ass: subidor de marés em mira

Anónimo disse...

Sapateira, cheirou-me logo ao verde Detritus e filme technicolor da dupla Laurel&Hardy no ranhoso, ou tu pensas k eu vou para a praia fazer a sesta? por isso é k o gajo gosta de me ouvir em voz alta, entre um mergulho e uma cerveja-percebes. E Cão k ladra, não fode.

Anónimo disse...

mas lambe