14/02/06

O Islão, esse Conhecido, por Burro Anónimo

Quem gosta de certezas fixa-se no horizonte limitado do presente. Quando recorre ao passado é de modo interesseiro. Quando não interessa, planta o esquecimento, banaliza a História. O estudo do passado leva à relativização das nossas certezas, tomamos a linha em vez do ponto. Por isso, o desprezo pela História é tão típico das sociedades do esquecimento. Estamos a um passo da discricionaridade, da subjectivação total do mundo social, cada um diz o que lhe apetece e tudo é válido.
Vem o prolegómeno a propósito de um dito e redito, aqui na acesa polémica do Tapor a propósito do Islão e dos cartoons, segundo o qual nós dispensamos a atenção e o estudo necessários ao nosso passado islâmico. Bastar-me-ia a imagem colocada como ilustração ao post para negar, definitiva e categoricamente, este disparate. Contextualizemos: Em 2001, na sequência do enorme êxito da edição da «História de Portugal» dirigida pelo prof. José Mattoso, o Círculo de Leitores decidiu prosseguir com um plano editorial contemplando uma série de publicações e colecções de temática histórica. Encomendou a redacção e direcção dos trabalhos aos mais proeminentes académicos que publicaram obras de referência nos mais diversos domínios: da história militar à história da arte, a expansão portuguesa, a história da história em Portugal, a história dos municípios e do poder local. Académicos de primeiro plano como César de Oliveira, Paulo Pereira, Reis Torgal, entre outros, editaram obras incontornáveis para a historiografia portuguesa contemporânea. Não estamos pois a falar de uma edição qualquer, nem de uns quaisquer autores, nem de uma editora de vão de escada. Ora, foi neste contexto que o Centro de Estudos de História Religiosa da Universidade Católica Portuguesa, uma das melhores e mais prestigiadas instituições nacionais de ensino superior, sob a direcção de Carlos Moreira de Azevedo, coordenou a publicação de um «Dicionário de História Religiosa de Portugal». São quatro grossos volumes, com mais de 500 páginas cada um, em bom papel, ilustrados e encapados. E é nesta obra que em meia dúzia de linhas se despacha uma entrada sobre o islamismo. Não, não é um assunto menor. O Islão chegou aqui em 711 e só foram expulsos nos finais do séc. XV. Isto é negligência, não estamos a falar de um tema qualquer. Não é possível fazer uma história religiosa de coisa nenhuma, muito menos na Península Ibérica, sem um extensíssimo artigo sobre o Islão. E por fim, espero que sem ironia, remete-se o leitor para o artigo sobre as cruzadas. Faltaria acrescentar: e é se quer!
Dir-me-ão que é um caso isolado. Não, não é. Não só se repete, como é sintomático. A História de Portugal dirigida por João Medina, em 20 volumes de cerca de 500 páginas cada (cerca de 10 000 páginas) reserva 85 para a ocupação islâmica! 0, 85% ! Os estudos islâmicos são desprezados em Portugal. Contam-se pelos dedos de uma mão os académicos que se dedicam ao estudo da realidade cultural do Islão, e sobram dedos. Basicamente quatro: António Dias Farinha, Helena Catarino, Santiago Macias e Claudio Torres. Menção ainda para David Lopes, já falecido, e para o clássico de Borges Coelho, «Portugal na Espanha Árabe». Fora isto, um deserto!
No entanto, convinha que conhecêssemos a pujança cultural da antiga Silves, Mértola ou Lisboa. Nomes como o do poeta Abu-l Walid al-Baji são menos conhecidos do que o Geraldo Geraldes o Sem Pavor, ou qualquer arranca-cabeças da Reconquista. Abu Muhammad Abd Allah ibn Muhammad ibn al-Sid al - Batalyawsi (nome esquisito), autor de um «Livro dos Círculos», considerado uma obra prima e que Borges Coelho considera um dos maiores pensadores que nasceu no solo que hoje é português. A sua teologia e argumentação é, segundo os entendidos, semelhante à de S. Tomás de Aquino. Afonso Henriques nem sabia ler e só a custo assinava o próprio nome. Porém, a poesia islâmica não consta de nenhuma selecta de leitura, mas poetas como, dizem os especialistas que eu também sou ignorante, Ibn Ammar, Ibn Abdun, Al- Abdari, ou tantos outros, estão banidos da história e da memória. Porém, não fossem eles, e outros como eles, mais de metade do legado grego estaria perdido. Foram as escolas de tradução da Península Ibérica que traduziram do grego clássico os textos dos autores helénicos. Não fora isso, essa abertura cultural que o Islão teve, e o Ocidente teria perdido as suas referências matriciais.
Resta dizer que não sou um adepto do Islão. Orgulho-me da cultura europeia. Não tenho medo de proclamar a superiridade civilizacional do Ocidente que assenta no princípio da universalidade: da fé, da razão e do direito. Porém, deve dizer-se que esta superioridade não radica noutro sítio senão aqui: a nossa abertura cultural, a capacidade de entender o outro e integrar os contributos alheios. Todos os grandes vultos da cultura ocidental são grandes porque contribuiram para a concepção de uma ideia universalista: a Humanidade. Os piores momentos da nossa história foram os de fechamento cultural, de desprezo pelo outro, de fixação no presente, desprezando as heranças e os legados. Promover o desconhecimento do outro, menorizando a sua capacidade de reformulação, é uma forma de fechamento cultural.
E por favor, não insinuem que eu estou a minimizar os actos inqualificáveis dos fanáticos fundamentalistas. Não estou.

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