O livro do Cão já provocou uma discussão com a minha mulher. Muito apreciei e invejo o excelente fim de semana dos porcos farristas abaixo relatado, mas comigo, logo no dia em que foi comprado, ainda mal o tinha aberto (apesar de já conhecer em grande medida o que lá está, por intermédio do blog do autor), ainda com a tinta fresca do homem a pingar do autógrafo, provocou uma crise doméstica, a porra salvo seja do livro. Tudo se resolveu entretanto a contento, nas trincheiras domésticas, mas o que interessa aqui é que o livro novo do Daniel fez logo merda. Salvo seja. Mal nasceu e já está a dar sarrabulho! Ora quanto a mim isso só pode ser bom sinal para um livro. E para um autor. O livro, além de ser a escrita do Daniel Abrunheiro, é a sua vida. É uma narrativa a tocar nas franjas da existência, nos limites dualistas da experiência humana e nas margens das cidades abundantes e "urbanas", passe a redundância. É a sua poética existencial, donde transpira intimismo por todos os poros (o poeta). O Abrunheiro tem um estilo, um estilo literário que aprimora e acalenta mais ou menos sistematicamente, um registo que lhe é próprio e que o distingue. E que é controverso. Para uns abusa das metáforas, para outros usa uma linguagem exageradamente “complexa”, difícil, rebuscada ou congórica (porque rocócó é uma palavra que cheira mal, rocócó faz o meu puto nas fraldas), para outros brinca demasiado com as palavras e torna aquilo incompreensível... Quanto a mim, vejo ali uma escrita viva, cuidada e criativa: uma brincadeira muito séria - em oposição a muitas outras brincadeiras editoriais sem seriedade nenhuma que se publicam e vendem aos milhões por esse mundo fora. Uma abordagem diferente e arejada ao português, às palavras em português. A mesma postura estética que vejo com maior ou menor mestria em autores como Mia Couto ou Lobo Antunes (as crónicas de imprensa deste último homem, para traçar melhor a pertinência da referência perante o Daniel Abrunheiro, também cronista de imprensa são para mim brilhantes momentos literários: luminosos). E no essencial há ali liberdade à solta, há clara e inequivocamente poesia, da boa, no esgrimir solto das letras e das parábolas. Como talvez haja na vida do autor, eventualmente também controversa, não sei, não interessa. Mas há ali sem dúvida, na sua obra, nervo criativo a pulsar: um estilo original e cativante, uma irreverência madura e apaixonada e, além do estilo e da forma, sente-se a presença distintiva do autor em cada linha, em cada história ou sentir relatados. Umas vezes terno, outras raivoso, mas está lá sempre, entranhado naquelas palavras, sem grande distanciamento relativamente ao objecto da sua arte, e dando-lhe um cariz de certa forma auto-biográfico. E eu, como gosto de conhecer os demónios dos outros e como também gosto de escrever daquela maneira, gosto muito das prosas do Senhor Cão, identifico-me com a causa e com a forma. E aconselho onde e quando posso e lembro. A minha mulher, por exemplo, a meio da discussão, que entretanto derivou para outras questões da vida, prometeu que ia ler mais e melhor um bocadinho para “tentar gostar”. Entretanto fico à espera da publicação aqui no porco, "para breve", da igualmente brilhante e inspirada dissertação do deslumbrantissimo e ilustradissimo Vice aquando do público e solene Lançamento do Livro, texto que alguém prometeu, ouvi distintamente à saída da Casa da Cultura, “por aqui no porco, em breve”. É documento a merecer publicidade.
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