Andam as estradas portugueses cheias de peregrinos. Vão para Fátima. Com um prudente e fosforescente colete verde, caminham imprudentemente pelas estradas de Portugal. Pessoalmente, e sem que daí se retire qualquer ofensa, acho lamentável. Primeiro porque é perigoso. A peregrinação atenta contra a integridade física dos próprios e dos utentes da estrada. Segundo, porque é improdutivo. Nenhum bem vem daqui à sociedade. Terceiro, porque entendo a religião na sua dimensão íntima e espiritual. Acho que a fé, ainda que possa e deva ter expressão institucional e social, é essencialmente uma vivência interior que dispensa o suplício exibicionista e a auto-punição corporal. Finalmente, porque acho estas manifestações típicas de uma mentalidade pré-moderna em que a vontade humana se submete ao desígnio da Providência e se torna, desse modo, comprometedor da livre iniciativa e do livre arbítrio, do mérito e da criatividade. Foi contra estes condicionalismos que se fez a modernidade. O mérito individual e a soberania da vontade em vez da subordinação a um desígnio transcendente, o empreendedorismo contra o estaticismo orgânico de uma sociedade sacralizada, o trabalho como via de ascensão social. De preferência o trabalho intelectual, pois que o ofício mecânico era visto como vil. A lavoura era sinal de uma sujeição ao dono da terra. O ofício artesanal era sujo. As artes liberais permitiam as mãos limpas e facultavam a ascensão social, para além de promoverem a mobilidade ascendente pelo exercício do mérito e do trabalho. O mérito individual, bem como a dignidade de um trabalho que já é intelectual e não manual são dois valores que caracterizam sociologicamente a mentalidade burguesa. O desprezo para com a ordem nobiliárquica é outro traço desta mentalidade. Além disso, verberam o clero e a religião que consideram manifestações de obscurantismo, instrumentos de domínio social e obstáculos ao progresso. Encaram a exibição da fé como sinal de atraso e dependência. Este vanguardismo burguês, radical, ateu e jacobino, não tardará a moderar os seu discurso. A razão é política e cultural. Prende-se com aquilo a que os revolucionários chamaram a "traição burguesa". Ou seja, as classes médias, na sua esmagadora maioria provenientes dos estratos médios do campesinato e do operariado suburbano, viram na escola e no estudo universitário um irrecusável processo de ascensão e afirmação social. Almejavam um emprego na administração pública ou nas profissões liberais. Buscavam um ofício que lhes conferisse prestígio social e dignidade intelectual que os diferenciasse do grosso popular. Por isso, ao ódio inicial que endossavam à nobreza e ao corpo clerical, dirigem agora o desprezo e a sobranceria para as classes populares. Ao mesmo tempo, nas esferas mais elevadas, buscam título de nobreza e elegem as virtudes cristãs como modelo de conduta social. Uma nobreza reformada e um idealismo cristão anti-ultramontano. É neste contexto que a Universidade de Coimbra se torna um dos principais meios de ascensão social desta pequena burguesia que procura desesperadamente a realização pessoal pela ascensão social. Basta ler os livros de Camilo e de Eça para se perceber como aos intelectuais este tipo social causava repugnância e era alvo das maiores ironias. O bacharel de Direito é, para Eça mas também para Torga, o exemplo mais ridicularizado de uma mentalidade mesquinha e ensimesmada.
A partir dos anos 60, apesar do Estado Novo, a Universidade iniciou um processo de massificação que encontraria o seu auge nos anos dourados do cavaquismo. Floresceram universidades em todas as esquinas. Este facto, aliado ao crescimento económico, permitiu que as famílias possuíssem os meios financeiros para enviar os filhos para a Universidade. Em Coimbra, retomaram-se as tradições académicas, nas restantes universidades, órfãs de tradição, copiou-se o modelo conimbricense. Os trajes, as praxes e as festividades académicas que antes eram prática de grupos minoritários massificam-se agora a todas as cidades e a todas as instituições. Públicas ou privadas, universitárias ou politécnicas. Podemos dizer que se consumou um processo iniciado a partir da 2ª metade do século XIX, acelerado na República e irremediavelmente confirmado a partir da década de 60.
Estes jovens estudantes, naturalmente, não escondem o orgulho. Eles resgataram séculos de submissão. Eles são a razão de ser do sacrifício das famílias. Os pais não regateiam recompensas. É o carro, os livros, a mesada, a capa e batina, o computador portátil e o que mais calhe. Que a contenção não comprometa o futuro dos filhos. E os pais vão ao Cortejo da Queima, quando a estadia coimbrã se aproxima do final, largar uma lágrima de comoção. Os jovens quartanistas vêm para o espaço público alardear o novo estatuto. Distanciam-se da proveniência social de origem, demarcam-se relativamente ao gosto popular, exibem erudição, mostram os livros e as sebentas, encaixilham o diploma, encadernam as fotografias, mitificam a juventude num culto geracional que os auto-engrandece e auto-glorifica. Constroem uma memória triunfante. Vão ao baile de gala, cópia abastardada dos ambientes dos salões aristocratas. Deixam-se fotografar abraçados a moças trigueiras enfiadas em tules espalhafatosos e que não conseguem ocultar o seu digno estatuto de origem. Basta ver o «Diário de Coimbra» de hoje com o seu suplemento social dedicado ao evento. Fazem álbuns fotográficos que um dia mostrarão aos filhos, bem como os versos e as anedotas. Rir-se-ão, um dia, todos à lareira. O avô, o filho e o neto, uma dinastia de bacharéis por Coimbra! Que lindo é sonhar! O Cortejo é a ocasião para todos os excessos. É uma celebração colectiva, orgíaca, que, pelo excesso etílico e já não pelo excesso místico, como em Fátima, conduz a um êxtase, um adormecer da conscência que torna a experiência única e marcante.
O sonho é que os filhos ingressem na mesma Academia, que triunfem igualmente, numa estratégia de sucessão geracional equiparável à dos burgueses que deixam a presidência do conselho de administração ao filho dilecto. Assim se vence a morte e se conquista um espaço na memória futura. Pelo caminho, dão a mão às meninas da casa Elísio de Moura, numa muito digna e cristã prática pública da caridade, mostrando deste modo que o jacobinismo burguês está ultrapassado e que a síntese com os velhos alicerces da sociedade está retomado. Mesmo que abdiquem das práticas dominicais, das confissões e das devoções mais maçadoras, continuarão a casar pela igreja com cerimónias de arromba devidamente documentadas para a posteridade e a baptizar os pequerruchos.
O Cortejo da Queima das Fitas, visto muitos anos depois, alimenta as saudades. «Saudades de Coimbra»... Ó Meu Deus, as saudades de Coimbra, o Choupal e o Penedo da Saudade... Tornam-se estes lugares-comuns, de um sentimentalismo pacóvio, num traço de identidade desta mentalidade pequeno-burguesa. Perdoam-se os excessos da juventude de uma forma paternalista e condescendente. «São jovens, como nós fomos». Eu acho isto, mais uma vez, lamentável. Que me perdoem os adeptos da farra. Eu não gosto! Gosto da genuinidade do S. João do Porto, ou das sardinhas assadas na rua do Stª António de Lisboa. Gosto da Tomatina despretenciosa e excessiva, embora lá nunca tenha ido. Isso eu gosto.
Estes jovens estudantes, naturalmente, não escondem o orgulho. Eles resgataram séculos de submissão. Eles são a razão de ser do sacrifício das famílias. Os pais não regateiam recompensas. É o carro, os livros, a mesada, a capa e batina, o computador portátil e o que mais calhe. Que a contenção não comprometa o futuro dos filhos. E os pais vão ao Cortejo da Queima, quando a estadia coimbrã se aproxima do final, largar uma lágrima de comoção. Os jovens quartanistas vêm para o espaço público alardear o novo estatuto. Distanciam-se da proveniência social de origem, demarcam-se relativamente ao gosto popular, exibem erudição, mostram os livros e as sebentas, encaixilham o diploma, encadernam as fotografias, mitificam a juventude num culto geracional que os auto-engrandece e auto-glorifica. Constroem uma memória triunfante. Vão ao baile de gala, cópia abastardada dos ambientes dos salões aristocratas. Deixam-se fotografar abraçados a moças trigueiras enfiadas em tules espalhafatosos e que não conseguem ocultar o seu digno estatuto de origem. Basta ver o «Diário de Coimbra» de hoje com o seu suplemento social dedicado ao evento. Fazem álbuns fotográficos que um dia mostrarão aos filhos, bem como os versos e as anedotas. Rir-se-ão, um dia, todos à lareira. O avô, o filho e o neto, uma dinastia de bacharéis por Coimbra! Que lindo é sonhar! O Cortejo é a ocasião para todos os excessos. É uma celebração colectiva, orgíaca, que, pelo excesso etílico e já não pelo excesso místico, como em Fátima, conduz a um êxtase, um adormecer da conscência que torna a experiência única e marcante.
O sonho é que os filhos ingressem na mesma Academia, que triunfem igualmente, numa estratégia de sucessão geracional equiparável à dos burgueses que deixam a presidência do conselho de administração ao filho dilecto. Assim se vence a morte e se conquista um espaço na memória futura. Pelo caminho, dão a mão às meninas da casa Elísio de Moura, numa muito digna e cristã prática pública da caridade, mostrando deste modo que o jacobinismo burguês está ultrapassado e que a síntese com os velhos alicerces da sociedade está retomado. Mesmo que abdiquem das práticas dominicais, das confissões e das devoções mais maçadoras, continuarão a casar pela igreja com cerimónias de arromba devidamente documentadas para a posteridade e a baptizar os pequerruchos.
O Cortejo da Queima das Fitas, visto muitos anos depois, alimenta as saudades. «Saudades de Coimbra»... Ó Meu Deus, as saudades de Coimbra, o Choupal e o Penedo da Saudade... Tornam-se estes lugares-comuns, de um sentimentalismo pacóvio, num traço de identidade desta mentalidade pequeno-burguesa. Perdoam-se os excessos da juventude de uma forma paternalista e condescendente. «São jovens, como nós fomos». Eu acho isto, mais uma vez, lamentável. Que me perdoem os adeptos da farra. Eu não gosto! Gosto da genuinidade do S. João do Porto, ou das sardinhas assadas na rua do Stª António de Lisboa. Gosto da Tomatina despretenciosa e excessiva, embora lá nunca tenha ido. Isso eu gosto.
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