14/05/06

A Epopeia Americana - Parte 3ª: «As Vinhas da Ira», de John Ford. Por Henry Bond

Depois d’ A Cavalgada Heróica (1939) e após a realização de uns filmes menores, John Ford adaptará em 1940 o romance de John Steinbeck, As Vinhas da Ira, convidando Henry Fonda para o protagonizar. Fonda, sendo juntamente com Wayne um dos preferidos de Ford, não deixa de ser o contraponto do herói épico americano, estatuto que Wayne assumiria a partir d' A Cavalgada Heróica. Mas, também do ponto de vista ideológico, o conservadorismo de Wayne se pode contrapor às preocupações sociais e ao intervencionismo político de Henry Fonda. Por estas razões, quando Ford adapta a obra de Steinbeck, Wayne está naturalmente fora de questão. Henry Fonda é a escolha acertadíssima, depois de no ano anterior ter desempenhado o papel de Abraham Lincoln (bíblico e épico nome este para um fundador da América) num filme realizado também por John Ford.

A família Joad busca os laranjais da Califórnia no épico de John Steinbeck, de claras ressonâncias bíblicas. Os Joads são um clã, à maneira das tribos de Israel, vivem na terra, possuem uma identidade construída sobre a ideia de territorialidade. Estamos nos anos da Grande Depressão, os bulldozers, ao serviço das grandes companhias financeiras, executam as hipotecas e tomam conta da terra. Desfaz-se a relação telúrica, vital, entre o homem e a terra, o que causa a tragédia maior: o abandono da casa e o desagregamento da família. A razão do abandono é forçada. Não se trata de um imperativo ético, ou de um esforço de conquista. Não é um resgate por razão de honra, nem uma cavalgada heróica. Fonda não é Ulisses nem Ringo Kid. N' As Vinhas da Ira o abandono da terra resulta de uma situação de necessidade extrema. O clã Joad é expulso do Oaklahoma, como tantos outros – oakies –, olhados com desprezo e desconfiança por onde quer que passem, como miseráveis sem terra e sem futuro, despojados do seu passado, com a identidade perdida. O pai Joad não assume o papel abraâmico de patriarca que lhe competiria. Essa função é desempenhada pela mãe. A mãe é uma fantástica personagem que lembra Brecht ou Gorki, o que fará Steinbeck um dos alvos do McCartismo. Steinbeck logra nesta personagem uma admirável síntese entre o paganismo primitivo matriarcal e pré-bíblico, a evocação de um poderoso símbolo de referências comunistas e o marianismo cristão. Para lá da ideologia e da fé, para além até da blasfémia e da política, a Mãe Joad cuida da família, alimenta-a e mantém-na unida, protege-a e compreende-a. Ainda que Rose of Sharon, a filha, esteja grávida e a redenção pelo nascimento anunciador de um tempo novo na Califórnia da abundância se adivinhe desde o início na protecção que a Mãe Joad constantemente lhe reserva, a verdade é que o final desilude completamente essa promessa messiânica. Não é um Nascimento que salvará os Joads, pois do ventre de Rose brotará um nado-morto. Um cadáver na Califórnia da desilusão, a família desagregada pela morte, pela deserção e pelo desespero. Sem casa e sem carro. Os Joads, desesperados e destroçados são uma metáfora cruel de uma civilização ameaçada. A América, depois de conquistado o Oeste, depois de se afirmar com Estado, confronta-se agora com a maior crise da sua História. Se Ford deu à América o seu herói épico, John Wayne, dar-lhe-á agora, o seu reverso necessário, Henry Fonda no papel de Tom Joad. De facto, é a este que caberá a missão redentora. Ford já mostrara, na Cavalgada Heróica, que a redenção não é messiânica. A criança que nasce durante a viagem através de Monument Valley é uma menina, um anti-messias portanto. Símbolo prospectivo é certo, mas sem qualquer valor salvífico. Agora, n’ As Vinhas da Ira, Tom, apesar de homicida, conserva a integridade moral, como é próprio das personagens de Ford. Como a prostituta, o Ringo Kid, o jogador ou o médico bêbedo. Tom, contrariamente a Ringo Kid que logo se assumiu como centro da narrativa, permanece num registo secundário mas que se adivinha de importância fundamental e eminente numa tensão narrativa que se desenvolverá até ao célebre monólogo que antecede a sua despedida. Tom é o portador da via da redenção. Pela revolta, pela ânsia de justiça, pela sublevação.

No filme de Ford, Tom vinga a morte à paulada de Jim Casey, um antigo pastor desencantado que retoma a esperança quando se envolve na defesa dos trabalhadores braçais. Casey é um profeta da justiça social, o seu novo múnus é político, depois de desiludido com a função pastoral. A sua morte é vingada biblicamente por Tom Joad que mata à paulada o assassino de Casey. Olho por olho. Mas o crime de Tom não lhe fere a dignidade, pois não se move por vingança. É justo, mata em nome de um ideal e o crime adquire legitimidade moral. Tom tem que fugir. Separa-se da mãe Joad num parto doloroso e de um simbolismo poderosíssimo. A Mãe oferece o filho à missão redentora. Este momento, em que Tom finalmente assume o protagonismo adivinhado desde o início e se descobre na sua missão redentora é, no filme de Ford, o momento chave em que Fonda profere as palavras épicas: “I'll be ever'where - wherever you look. Wherever there's a fight so hungry people can eat, I'll be there. Wherever there's a cop beatin' up a guy, I'll be there. I'll be in the way guys yell when they're mad - an' I'll be in the way kids laugh when they're hungry an' they know supper's ready. An' when our people eat the stuff they raise, an' live in the houses they build, why, I'll be there too.”

Volvendo ao livro de Steinbeck, o que resta da família, já sem a velha camioneta, essa espécie de nau dos argonautas da Route 66, deambula pela estrada até que a intempérie os obriga a procurar abrigo num velho palheiro. Aí, desenrola-se a polémica cena final, em que Rose of Sharon, lactante após a perda do bebé, amamenta um velho moribundo, salvando-o assim da morte por inanição. É uma cena patética, facilmente comparável a uma Pietá profanada. O leite, metáfora da abundância bíblica, brota dos seios de uma personagem até então inútil mas que agora se assume como símbolo de fertilidade, depois de frustrada a redenção messiânica.

John Ford, por seu lado, não se limitando a uma adaptação da novela e muito mais consciente do valor épico da gesta dos Joads, deixa partir Henry Fonda na sua cruzada justiceira, e recentra a narrativa na Mãe. Vão os Joads, os que restam, refeitos sob o comando esperançoso da Mãe. Al Joad conduz a carrinha, ambos recuperados por John Ford, pois que no livro, Al vai-se embora e a carrinha imobiliza-se definitivamente avariada na berma da estrada. Ford não quer os Joads a pé pelas estradas da Califórnia. A Mãe profere então a tirada final. Por maiores que sejam as adversidades, “We'll go on forever, Pa. We're the people.” E os Joads operam então o tal salto qualitativo, eles já não são um clã familiar, são um símbolo colectivo, as famílias americanas que, sobrevivendo a todas as provações, vêem agora a estrada esperançosa à sua frente. Ford fecha depois o filme, com a velha camioneta a ir pela estrada fora. É um final à Ford, esperançoso, de sentido oposto ao patetismo bíblico, frustrante e blasfémico de Steinbeck. A América de John Ford é indestrutível, alimentada de um idealismo personificado em Henry Fonda.

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