A família Joad busca os laranjais da Califórnia no épico de John Steinbeck, de claras ressonâncias bíblicas. Os Joads são um clã, à maneira das tribos de Israel, vivem na terra, possuem uma identidade construída sobre a ideia de territorialidade. Estamos nos anos da Grande Depressão, os bulldozers, ao serviço das grandes companhias financeiras, executam as hipotecas e tomam conta da terra. Desfaz-se a relação telúrica, vital, entre o homem e a terra, o que causa a tragédia maior: o abandono da casa e o desagregamento da família. A razão do abandono é forçada. Não se trata de um imperativo ético, ou de um esforço de conquista. Não é um resgate por razão de honra, nem uma cavalgada heróica. Fonda não é Ulisses nem Ringo Kid. N' As Vinhas da Ira o abandono da terra resulta de uma situação de necessidade extrema. O clã Joad é expulso do Oaklahoma, como tantos outros – oakies –, olhados com desprezo e desconfiança por onde quer que passem, como miseráveis sem terra e sem futuro, despojados do seu passado, com a identidade perdida. O pai Joad não assume o papel abraâmico de patriarca que lhe competiria. Essa função é desempenhada pela mãe. A mãe é uma fantástica personagem que lembra Brecht ou Gorki, o que fará Steinbeck um dos alvos do McCartismo. Steinbeck logra nesta personagem uma admirável síntese entre o paganismo primitivo matriarcal e pré-bíblico, a evocação de um poderoso símbolo de referências comunistas e o marianismo cristão. Para lá da ideologia e da fé, para além até da blasfémia e da política, a Mãe Joad cuida da família, alimenta-a e mantém-na unida, protege-a e compreende-a. Ainda que Rose of Sharon, a filha, esteja grávida e a redenção pelo nascimento anunciador de um tempo novo na Califórnia da abundância se adivinhe desde o início na protecção que a Mãe Joad constantemente lhe reserva, a verdade é que o final desilude completamente essa promessa messiânica. Não é um Nascimento que salvará os Joads, pois do ventre de Rose brotará um nado-morto. Um cadáver na Califórnia da desilusão, a família desagregada pela morte, pela deserção e pelo desespero. Sem casa e sem carro. Os Joads, desesperados e destroçados são uma metáfora cruel de uma civilização ameaçada. A América, depois de conquistado o Oeste, depois de se afirmar com Estado, confronta-se agora com a maior crise da sua História. Se Ford deu à América o seu herói épico, John Wayne, dar-lhe-á agora, o seu reverso necessário, Henry Fonda no papel de Tom Joad. De facto, é a este que caberá a missão redentora. Ford já mostrara, na Cavalgada Heróica, que a redenção não é messiânica. A criança que nasce durante a viagem através de Monument Valley é uma menina, um anti-messias portanto. Símbolo prospectivo é certo, mas sem qualquer valor salvífico. Agora, n’ As Vinhas da Ira, Tom, apesar de homicida, conserva a integridade moral, como é próprio das personagens de Ford. Como a prostituta, o Ringo Kid, o jogador ou o médico bêbedo. Tom, contrariamente a Ringo Kid que logo se assumiu como centro da narrativa, permanece num registo secundário mas que se adivinha de importância fundamental e eminente numa tensão narrativa que se desenvolverá até ao célebre monólogo que antecede a sua despedida. Tom é o portador da via da redenção. Pela revolta, pela ânsia de justiça, pela sublevação.
No filme de Ford, Tom vinga a morte à paulada de Jim Casey, um antigo pastor desencantado que retoma a esperança quando se envolve na defesa dos trabalhadores braçais. Casey é um profeta da justiça social, o seu novo múnus é político, depois de desiludido com a função pastoral. A sua morte é vingada biblicamente por Tom Joad que mata à paulada o assassino de Casey. Olho por olho. Mas o crime de Tom não lhe fere a dignidade, pois não se move por vingança. É justo, mata em nome de um ideal e o crime adquire legitimidade moral. Tom tem que fugir. Separa-se da mãe Joad num parto doloroso e de um simbolismo poderosíssimo. A Mãe oferece o filho à missão redentora. Este momento,
John Ford, por seu lado, não se limitando a uma adaptação da novela e muito mais consciente do valor épico da gesta dos Joads, deixa partir Henry Fonda na sua cruzada justiceira, e recentra a narrativa na Mãe. Vão os Joads, os que restam, refeitos sob o comando esperançoso da Mãe. Al Joad conduz a carrinha, ambos recuperados por John Ford, pois que no livro, Al vai-se embora e a carrinha imobiliza-se definitivamente avariada na berma da estrada. Ford não quer os Joads a pé pelas estradas da Califórnia. A Mãe profere então a tirada final. Por maiores que sejam as adversidades, “We'll go on forever, Pa. We're the people.” E os Joads operam então o tal salto qualitativo, eles já não são um clã familiar, são um símbolo colectivo, as famílias americanas que, sobrevivendo a todas as provações, vêem agora a estrada esperançosa à sua frente. Ford fecha depois o filme, com a velha camioneta a ir pela estrada fora. É um final à Ford, esperançoso, de sentido oposto ao patetismo bíblico, frustrante e blasfémico de Steinbeck. A América de John Ford é indestrutível, alimentada de um idealismo personificado em Henry Fonda.
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