05/06/07

UM DIA INESQUECIVEL, ATÉ VER, por Martir São Vicente


É preciso que vos conte como foi o meu dia. Falo daquele dia, há precisamente quatro anos, que me ficou até hoje gravado na memória. O Dia. Aquele que não consigo esquecer. O que tem tornado a minha vida insuportável. Porque os meus dias e as minhas noites se tornaram uma permanente revisão desse dia e porque nada me consegue distrair dele. Mas talvez consiga diluir a sua memória, contando-o. Diz-me o psiquiatra que traumas partilhados se diluem. Ouçam lá, então.


Na manhã desse dia, depois de acordar, dei os passos habituais para aqui e para ali, e saí para a rua. Na estrada, ao quilómetro doze, passou por mim um Volkswagen Passat de cor creme, cuja matricula não posso aqui revelar, por razões que adiante entendereis. Cheguei ao emprego uma hora depois e sentei-me à secretária para trabalhar. Nessa manhã escrevi cinco folhas de texto no computador e acabei um trabalho que tinha começado há dois dias. Finda a tarefa, suspirei de alívio, olhei pela janela e vi três homens a conversar. Passados dez minutos, um deles afastou-se e dirigiu-se para o carro, fazendo nesse trajecto um triângulo oblíquo com os seus companheiros. Às doze e trinta, saí para almoçar e entrei no pequeno restaurante habitual. - O que está a sair mais depressa? - perguntei eu à empregada. Sem olhar para mim, disse-me ela esta coisa que nunca mais esqueci: - Bifinhos com cogumelos, que estão a sair muito bem. Pedi então bifinhos com cogumelos. - E para beber? - Um fino -. É muito importante que se saiba que não gosto especialmente de bifinhos com cogumelos. Mas sendo rápido, poupando-me tempo… Pedi outro fino e pensei exactamente isto, juro por Deus: amanhã peço bacalhau à braz, demore o que demorar.


Finda a refeição, pedi um café e acendi um cigarro, por esta ordem. Paguei, levantei-me, sai do restaurante, apaguei o cigarro num jacarandá e caminhei um pouco em direcção ao meu local de trabalho. Três horas da tarde. Três e meia. Quatro horas e treze minutos. Lembro-me perfeitamente que era esta a hora, porque nessa altura olhei para o relógio. Passados cinco minutos, entra o director e entrega-me um papel. Olhamos um para o outro. Ele volta-se, dá dois passos em direcção à porta, sai e dirige-se para o lado direito do corredor, cruzando-se com um dos homens que tinha visto de manhã pela janela, precisamente o mais alto. Passados cerca de três minutos, não mais, tenho a certeza absoluta (não consigo esquecer este pormenor), entra a secretária de direcção com um agrafador que eu tinha requisitado ao aprovisionamento. Agradeci e perguntei-lhe pelo sobrinho, que tinha tido um acidente há uma semana - como está ele? – hoje já está mais bem disposto, obrigada; já deve ir para casa amanhã – respondeu. Este curto diálogo foi testemunhado por um colega que se encontrava ali de passagem. Ainda hoje estou convencido de que a secretária lhe relanceou o olhar, quando pousou o agrafador na minha secretária, com suavidade. Ao fim da tarde fui para casa, percorrendo de volta o mesmo caminho.


Em casa, e no espaço de duas horas, brinquei com o meu filho, jantei, combinei com a minha mulher desparasitar o gato e comprar iogurtes de pedaços de manga, por esta ordem exacta, e dei mais uma lição de bicicleta ao miúdo no corredor. Subitamente, de forma inesperada, batem à porta. Estranho, pensei eu, porque não tocaram à campainha? Era o administrador a entregar o recibo do condomínio. - Porque não tocou o senhor à campaínha? - Olhe, estava distraído a conferir a conta e nem me lembrei-. Ainda hoje estas palavras ressoam na minha cabeça. Às onze e trinta e três, escovei os dentes e fui para a cama. Li duas ou très páginas do meu livro de cabeceira e adormeci. E assim se acabou o dia. Foi já na madrugada do dia seguinte que me levantei para urinar e bati com a cabeça na ombreira da porta do quarto. Mas não consigo esquecer esse dia. Faço tudo para o esquecer, incluindo hipnose regressiva, pornografia e cocaína, mas o máximo que até agora consegui foi esquecer a matricula do Volkswagen do inicio da história.


E não consigo sequer imaginar porque diabo esse dia insiste em aninhar-se-me no crâneo. Tenho a certeza que tive até hoje dias muito mais interessantes, incluindo grandes pescarias, fracturas do maxilar por andar à bulha, jantares opíparos e sexo na praia, e é este dia em que não acontece nada, pior, em que tive um desacontecimento, que é comer bifinhos com cogumelos, é este dia sem nenhum interesse que me ocupa a memória. Pronto, esta história para ser genial e dar um grande filme só lhe falta mesmo ter interesse, mas estaides à vontade

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