09/12/10

A Metamorfose de Franz Kafka, por Melquíades


“Certa manhã, ao acordar após sonhos agitados, Gregor Samsa viu-se na cama metamorfoseado num monstruoso insecto.” Assim começa o Metamorfose e pouca mais acção há. O livro é pequeno, mais novela que outra coisa, e traduz-se nisto: Gregor Samsa, caixeiro-viajante que se mata a trabalhar para prover à família que adora - pai e mãe, já velhotes e uma irmã novinha -, acorda naquela manhã transformado num nojento e gigantesco insecto. Não pode falar, não pode sair do quarto, não pode fugir; e não maltrata ninguém, uma vez que mantém pensamento humano. Reconhece a família e o mal que lhes está a fazer e a família reconhece o insecto de pesadelo como sendo o filho extremoso, Gregor Samsa.

Mas como é que se vive com a monstruosidade? Esta é a pergunta que logo de início nos salta à cabeça, perante a empatia para com a família do mostrengo. Mas a arte de Kafka leva-nos muito mais além do que isto e a pouco e pouco, passado o susto da fantástica metamorfose, já não sabemos quem é o monstro. Começam a aparecer outras monstruosidades ao longo da Metamorfose. A monstruosidade pode estar em qualquer lado e mesmo no meio de nós. Até o leitor pode ser o monstro. Qualquer de nós se identifica com tudo aquilo. De um lado e de outro. Ali não há preto e branco.

Já li e reli “A Metamorfose” muita vez e descubro-lhe sempre uma nova perspectiva. Em regra tenho simpatia pelo novo Samsa. A sua metamorfose é uma reacção à insanidade e ao vazio em que vivia. Foi o corpo e não a cabeça que lhe disse “Não” à continuação da labuta esgotante, transformando-se naquilo que a impossibilitava, a monstruosidade. Transformado o corpo no mostrengo horrendo que nos é descrito, a cabeça de Samsa continuou como até ali, amorosa, subserviente, escrava. O metamorfoseado monstro é a mais humana das criaturas. A família, aterrada e esgotada, e que nos leva de início a maior fatia de simpatia, vai evoluindo ao longo da história e vai sendo objecto de nova metamorfose.

No final, a cabeça humana do monstro físico Samsa, não aguenta o sofrimento (ou a metamorfose) que provoca na família e suicida-se da única forma que aquele corpo lhe permite. À fome. O monstro repulsivo toma a mais humana das atitudes.

1 comentário:

Anónimo disse...

Uma outra versão do tema da metamorfose é desenvolvida em estranhos Perfumes de marie Darrieuseq.Uma mulher que se vai transformando em porca. Mas cada quanto mais porca mais os homens gostam dela. Kafka ao contrário, neste aspecto... Infelizmente Darrieuseq não é Kafka e eu ainda não li o livro. Mas lá voltarei...