19/07/16

Viagens no Tempo II, por Ziggy


No fim do concerto do Iggy (ver post anterior) estávamos sem respiração, eu e o Tex, e a noite estava mais que ganha, mas parecia-me incrível, ainda faltavam os Massive Atack. Tudo na mesma noite! A minha expectativa era enorme porque já os tinha visto naquele  mesmo pavilhão à uns anos por altura da edição de uma das suas obras primas, Mezannine. Esse concerto foi simplesmente fabuloso, um dos melhores que já vi. É verdade que eu perdi um pouco o contacto com os Massive, principalmente depois do insípido 100 Windows, mas recentemente refiz o vínculo com Heligoloand. E o novo EP dos tipos, Ritual Sirit, é MA do melhor! Sabendo da genialidade da banda, conhecendo a sofisticação dos seus shows, eu estava convicto que ia ser grandioso, numa onda completamente diferente da de Iggy, mas grandioso, anyway… E foi!

Aquilo a que assisti não foi um simples concerto – foi algo muito maior, um espectáculo de ambição global, uma super produção (a começar na enorme panóplia de músicos e instrumentos e recursos tecnológicos e audio visuais)… Aquilo é música, dança, artes plásticas, agit-prop, poesia … Como é possível fazerem tão bem coisas tão diferentes? Ouvem-se as primeiras músicas e parece-nos trip-hop, mas também há ressonâncias de rock progressivo, de hard rock, de etno music, de electrónica… É visceral e high tech ao mesmo tempo. Se Iggy foi uma viagem aos anos 70, agora viajamos, claramente, no futuro.
O espectáculo dos MA é demasiado multifacetado para descrever aqui todos os aspectos que me interessaram. Deixo apenas alguns tópicos:

- Esqueçam os hits. O formato comercial do concerto em que as pessoas vão lá para reconhecer as músicas e se entusiasmarem com isso não é para eles. Dos hits da banda, apenas tocaram, um, a  fechar, Unfinished Simpathy (Safe From Harm, a abertura de Blue Lines também pode ser considerado como tal, ok). O espectáculo deles tem uma coerência própria e é isso que nos apresentam, se o hit não cabe, não há cedências.

- A presença da banda em palco é relativamente discreta (a iluminação é geralmente escura e os músicos estão na sombra ou surgem como silhuetas recortadas) mas o espectáculo visual é empolgante. O palco é iluminado com jogos de luzes muito fortes (vermelho e verde vivos, branco, preto, contrastes fortíssimos) que nos absorvem por completo. Eu nem olhei para os écrans laterais, o palco é o próprio espectáculo, o foco de atenção visual e quando digo palco digo as verdadeiras peças visuais que nele ocorrem.  Quem são os MA? Não são apenas os músicos, mas os criadores visuais e os mestres dos textos – embora a música seja fundamental, este espectáculo é, também, visual.

Alguns exemplos dessa qualidade visual-plástica do espectáculo: numa das primeiras músicas passam no écran pequenas frases a uma velocidade tal que não as conseguimos reter. No entanto fixamos, involuntariamente, algumas palavras isoladas destas frases, como Party, Trust, Peace, etc. Numa sequência mais à frente o écran é bombardeado com essas palavras que miraculosamente fixamos no meio de tanta frase disparada a 500 à hora.

- Há placards de aeroportos com horários dos voos e de repente o écran fica vermelho com inscrições de Delayed para todo o lado, numa sugestão de caos que se concilia com a música (Risingson de Mezaninne se não estou em erro). Há explosões de zeros e uns (principalmente em 100 Windows), bandeiras de países mais ou menos hostis, islamistas e outros, logotipos de marcas capitalistas globais…

Um dos jogos mais interessantes é desenvolvido durante a execução de Inertia Creeps: começa com a injecção no écran de frases, em português, sérias e alarmantes, não exactamente as que passo a enunciar: «atentado em Nice faz 30 mortos», «Russos constroem bombardeiro nuclear», «Coreia do Norte ameaça Coreia do Sul», «Atentado em Dallas faz xx vítimas» e, pelo meio aparece-nos um «Carolina Patrocínio apanha um escaldão na praia», e o público reage, finalmente, «Carro bomba explode em bagdad» entrecortado com «Luciana Abreu vende carro» e voltam as mensagens graves, para se seguir, «Portugal é campeão europeu» e a sala vem literalmente abaixo e ainda mais com «milhares de pessoas recebem a secção em lisboa»… Percebe-se a ideia: a denúncia da forma como os media nivelam o grave e o no fútil e, o sério e ridículo, como se fosse tudo igual. Tudo parece ter o mesmo peso quando não tem, efeito perverso da vertigem da velocidade mediática. Pior: a promoção da futilidade que ultrapassa aquilo que realmente importa, como o demonstram as reacções do público que caiu na armadilha ao reagir às notícias fúteis, deixando na indiferença a gravidade. Num écran mais à frente, somos confrontados com mensagens que convidam à reflexão deste estado de coisas como: «quem decide o que vemos? O que vemos é real? Quem somos?, etc… O espectáculo dos MA não é mera diversão, mas tem uma peocupação política e filosófica notória. Eles mostram-nos que é possível voltar a conciliar a dimensão de fruição da grande música urbana com a reflexão inteligente. 

- Musicalmente (eles são músicos em primeiro lugar, não o esqueçamos) houve momentos fabulosos, marcados pelo contraste, pelos crescendos, pela criação de tensões e explosões. Gostei da utilização dos samplers (em Unfinished Simpathy o efeito foi fantástico) e retenho como momento muito alto a actuação dos Young Fathers que acompanharam a banda na execução de Ritual Spirit, o mais recente EP dos Massive. Voodoo in my mind foi superior, outro momento incrível, a coordenação vocal, a coreografia, a combinação entre o ancestral e o tecnológico foi exímia: Adorei Inertia Creeps e Heligoland. 

Eu já sabia que estava perante seres superiores. Não pensei que voltassem ao nível a que tinham estado da primeira vez que os vi. Mas afinal estiveram muito acima. A energia proto-punk de Iggy primeiro e o visceralismo High-tech dos Massive, na mesma noite, uau, afinal as viagens no tempo são possíveis!

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