23/07/16

Hitchock Apresenta: ainda a final do Euro, por Crítico de Cinema



O jogo da final entrou para a história dos melhores jogos de futebol que já vi. No entanto, apesar de ter sido a exibição melhor conseguida da equipa portuguesa ao longo deste Euro (que considero um dos mais fracos senão o mais fraco da história), objectivamente, não foi um grande jogo. Claro que, para mim, para qualquer português, é um dos jogos mais marcantes de sempre – já do ponto de vista do observador neutro, não creio que tenha sido muito mais que um jogo razoável. 

Assim de memória lembro-me de alguns jogos de futebol absolutamente seminais: o Brasil – Itália do mundial de 82, o França- Alemanha, creio que do mesmo mundial, o célebre jogo em que o carniceiro Shumacher manda o Batistton para o hospital, o Portugal-França do euro francês, com o Chalana e o Jordão a arrasarem, o Benfica- Bayer Leverkussen do 4-3, o Holanda - Rússia, alguns Reais Madrid-Barcelonas do passado e do presente (o da «manita» no Nou Camp com o dream team de Guardiola e Messi), o Dínamo de Kiev- Atlético de Madrid  numa final da taça das taças, o Alemanha –Itália com o Bekenbauer a jogar de braço ao peito, etc, etc. Todos estes e muitos outros foram jogos magníficos que marcaram a história do futebol. A última final do euro da nossa consagração não fica na história dessa maneira; mas fica na minha história não só pelo facto de Portugal se ter sagrado campeão europeu. Este jogo teve uma virtualidade fantástica que nem todos têm: teve enredo.

O jogo parece ter sido escrito por um grande realizador de cinema: o melhor jogador português, logo de início, é abalroado por um francês, o vilão Payet, e é obrigado a sair. Ronaldo chora, os portugueses ficam aterrorizados e o sonho parece estar desfeito. Quem senão Ronaldo poderia salvar a pátria? Há um pormenor de realização notável, quando uma traça vem pousar nas lagrimas de Ronaldo. O filme está tão bem realizado que até símbolos tem…

Mas, contra todas as expectativas, em vez do colapso que receamos, os jogadores unem-se ainda mais. Quaresma entra para o lugar de Sebastião Ronaldo, Renato deriva da direita para uma posição mais central e, de repente, a França que estava a ser avassaladora, até então, perde a iniciativa de jogo. Portugal sacode a pressão e começa a controlar a bola. Sem Ronaldo, afinal, melhoramos…

Depois de mais algumas peripécias menores – como a dualidade de critérios de um árbitro habilidoso, outro vilão no enredo – dá-se um novo momento crucial quando Fernando Santos, um treinador geralmente conservador, decide arriscar e mete o Éder. Éder é o anti herói, quase podíamos dizer, o anti-ronaldo: é preto quando o outro é branco, humilde quando o outro tem  rei na barriga, discreto e não espalhafatoso, etc, etc, etc. E é este herói improvável que foi alvo de chacota e de desconfiança da população de adeptos portugueses, quem resolve o jogo num remate fantástico digno de figurar na lista os melhores golos do Euro 2016. Éder vem da Adémia, do Tourizense, do colégio Girassol, de um orfanato, da Guiné... Teve problemas familiares graves. Foi treinado por um mister que jogou à bola comigo. É um tipo às direitas e tem uma força mental do outro mundo. E é bom jogador, não é nenhum tosco, ao contrário do que disseram tantos pseudo-mourinhos. 

Se repararmos bem, este jogo tem uma história do caraças, é uma espécie de conto moral, acerca da força do colectivo sobre a individualidade, da vitória daqueles que nunca desistem, mesmo quando ninguém neles acredita, uma parábola sobre um herói improvável. É uma história bem urdida e tem, obviamente, um herói principal, entre outros: Éderzito, o menino da Adémia.

Se eu fosse presidente da junta da terra  mandava fazer, imediatamente, uma estátua do Éder de 3 metros na rotunda da Adémia com umas bolas ainda maiores que as da estátua do Cristiano no Funchal. Mas no dia seguinte, as primeiras páginas dos nosso jornais tinham todas o Ronaldo, apesar deste Euro ter sido uma vitória do colectivo e do peso de cada individualidade estar perfeitamente diluído na equipa. Uma excepção: a primeira página do Público, uma obra prima gráfica por todo o simbolismo que carrega. Já que não se pode ter uma estátua do Éder com uma bolas muita grandes na rotunda da Adémia…

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