09/03/04

OS COMEDORES DE BATATAS, por Simplista Complicado

Há muitos anos, sempre para mais de 16, quando andava eu nas minhas rondas de paquete jurídico, pelas aldeias dos arredores de Coimbra, dei comigo numa saleta de agricultor, modesta e apertada, onde pontificavam quatro reproduções de pinturas conhecidas. Obviamente más reproduções. Além do eterno e sempre presente Menino a Chorar, com a lágrima a escorrer, uma coisa em forma de assim, que ainda ando para descobrir de quem é, lá estava também a sempre presente Menina a Ler do Fragonard e o eterno Carro do Feno do Constable. Coisas apelativas e sempre presentes neste tipo de saletas rurais. Destoava do conjunto a presença d`Os Comedores de Batatas de Van Gogh. O quadro é uma brutalidade de negritude, rudeza e pessimismo. É uma ode ao negro, é tudo menos apelativo e destoava dos outros três. Cumpridas as formalidades do trabalho jurídico e em plena feitura das honras da casa, com o sempre presente copázio de carrascão, a que era impossível dizer não, lá expus a minha curiosidade:
- Ó Ti Custódio, aqueles três quadros são o oposto daquele ali, aquilo até mete medo, home!
- Ó Dr. aquilo é tudo coisas que nós trouxemos da Bélgica. Aqueles três “xaropes” são da minha mulher e da minha filha. Este aqui é meu. Está aqui desde que a gente regressou e é uma guerra permanente com “as minhas mulheres” mantê-lo ali. Mas dali aquilo não sai. Já me disseram que é de um tal Van Gogo e que é horrível, mas horrível ou não, aquilo é a miséria da minha família em pequeno, que eu bem me recordo de como jantávamos. Aquele é o meu pai, ali a minha mãe e só falta o número certo de filhos, porque nós éramos 9, mas aquilo é a miséria que eu passei antes de ir prá Bélgica e daquela parede aquilo não sai, doa a quem doer!
Nunca mais encontrei ninguém que gostasse tanto d`Os Comedores de Batatas comó Ti Custódio da Zouparria do Monte, e muito pouca gente é capaz de gostar de um quadro tão directo, crú e rude, brutal mesmo. Estava ali, porque o tocou e o emocionou, na sua rudeza de camponês em Portugal e de pedreiro na Bélgica. E dali não saía.
Ao contrário do pensamento comum, só muito raramente os grandes da pintura atingem o nível de obra-prima. Daquelas que basta olhar e nos fulminam a todos, pedreiro ou catedrático. Gauguin das centenas de quadros que fez, ponderava ter realizado 4 ou 5 obras-primas. O resto eram primas da obra. Com os Comedores de Batatas, Van Gogh atingiu o Ti Custódio da Zouparria e atingiu pela primeira vez a Obra-Prima.

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