16/02/05

Os Meninos Abandonados, por António Manuel

Um dia destes tive uma surpresa quando encontrei à venda numa tabacaria os livrinhos de contos da famosa Colecção Formiguinha, que tanto alegraram a minha infância. Pequenas histórias morais, para benefício de meninos e meninas, como então se dizia. Comprei logo dois: O Menino Grão de Milho, numa versão algo diferente da que a minha avó me contava (também é verdade que de cada vez que a minha avó me contava a história, e foram dezenas, a versão mudava) e Os Meninos Abandonados. Não resisto a transcrever esta última, já vão ver porquê:

Era uma vez um homem muito pobre, a quem Nosso Senhor dera muitos filhinhos Ora, acontece que, certa noite de Inverno, não tendo tido dinheiro para comprar boroa ou azeite com que a mulher fizesse o caldo, disse a esta, já quando aqueles estavam deitados: - Não tenho coragem para tornar a ver os nossos filhinhos cheios de fome.Assim, caso estejas de acordo, o melhor é levá-los comigo para o monte, quando for à lenha, e deixá-los lá. A mulher concordou, mas o filho mais novo, que ainda estava desperto, ouviu a conversa. Por isso, mal apanhou os pais a dormir, levantou-se e foi muito surrateiro a um ribeiro próximo da casa, de onde trouxe um punhado de seixinhos brancos. Ao outro dia, pela madrugada, o homem saiu com os filhos para o monte, e o mais novo foi espalhando os seixos pelo caminho. Arranca ramo aqui, apanha caruma acolá, e o dia passou-se. E, quando caiu a tardinha, o homem carregou parte da lenha e disse aos filhos que ficassem de guarda ao resto, pois não tardaria a buscá-los. Mas o tempo decorreu sem que ele voltasse E, fazendo-se noite, os meninos desataram a chorar, cheios de medo. – Ai, manos,- gemia um – se o pai demora, não tardará muito que os lobos nos comam! - Se antes não vierem as bruxas e nos levarem a cavalo na sua vassoira, para nos assar no forno – soluçava outro. Então, o mais novinho sossegou-os, afirmando: - Eu sei o caminho. E todos os irmãozitos se puseram a segui-lo, enquanto ele se guiava pelos seixinhos brancos. Deste modo, em breve chegaram a casa, cuja porta estava fechada. Mas, encostando o mais novo a orelha ao buraco da fechadura, ouviu dizer: - que caldinho tão bom, meu homem! Só tenho pena de não ter comigo os nossos filhos, para lho dar. Quem sabe lá o que terá sido feito deles? Corta-se-me o coração ao pensar nisso… - estou aqui, mãezinha! – Gritou então o menino. A mãe abriu a porta e essa noite foi de grande alegria para todos. Não tardou, porém, que a pobreza crescesse E, por isso, o homem combinou outra vez com a mulher abandonar os filhos no monte. De novo, o pequenito ouviu tudo, mas como chovesse muito e, portanto, não lhe fosse possivel ir ao ribeiro, dirigiu-se à talhazinha dos tremoços e encheu uma algibeira deles. Pela manhã, seguiram todos para o monte e, á medida que caminhavam, o menino ia lançando fora os tremoços Os pássaros andavam, contudo, também esfomeados. Por conseguinte deram neles. Assim, quando à noite o pai o deixou e aos irmãos, ele não pôde encontrar o caminho, sucedendo perderem-se (…)”.

Bom, e assim continua o relato em outras tantas linhas. Resumindo, os miúdos acabam por ir ter a casa de um gigante que come criancinhas, conseguem fugir, enriquecem ao serviço de um rei, voltam para casa e tudo acaba bem, de acordo com narrador. Eu não sei é como pode acabar bem uma história com uma família tão disfuncional. Reparem: os pais resolvem abandonar os filhos num monte com o argumento estapafúrdio de que não os queriam ver com fome. E abandonam-nos duas vezes! Os filhos, coitados, que parecem sofrer de um certo atraso mental, à excepção talvez do mais novo, tudo fazem, por sua vez, para serem aceites de volta pelos pais, sem grande sucesso. Ora vejam bem o que diz a mãe ao jantar: “que caldinho tão bom, meu homem”. É claro que ao mesmo tempo vai temperando o caldo com umas lágrimas de crocodilo pelos filhos. Quer dizer, aqueles pais, em vez de dar o caldinho aos filhos, paparam-no eles e ainda tiveram coragem para o saborear, elogiando o seu tempero, quiçá dando estalidos com a lingua, sabendo que os filhos estavam num monte, ao frio e à mercê dos lobos e dos seus medos típicos de idiotas subalimentados. Volto a citar, para arrepio geral: “Que caldinho tão bom, meu homem”. Crudelíssima, esta transferência de afectividade dos filhos para o caldinho. E lembram-se que dizia o narrador, talvez cúmplice na ignomínia, que não havia dinheiro para a boroa e o azeite? Como ficamos, então? E porque não foram eles caçar aqueles pássaros que comeram os tremoços aos rapazitos? Esfomeados como andavam, seria fácil apanhá-los, não? E com os próprios tremoços não se faria um saboroso paté? A história não conta, mas aqueles pais devem ter acabado a noite num colchão de penas das galinhas com que fizeram o caldinho, a gemer lubricamente: “que fellatio tão bom, meu homem”. Agora, pergunto: Como terão crescido aqueles miúdos? Que respeito lhes merecem aqueles pais? Como poderão estes exigir protecção aos filhos na sua velhice? Nenhum, está bem de ver. Parece que estou a ouvir os rapazolas: “Que caldinho tão bom, ó manos! Pena que os nossos pais estejam no monte à mercê dos lobos e das bruxas! Hehehe”. E que efeito terá tido esta história na mentalidade dos que a leram? Como é que me terá afectado a mim? E a história da Menina dos Fósforos, retrato cruel da exploração infantil na industria fosforeira?

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