03/02/05

Reportagem, por Jaquim de Zurrara

«Quem usa boina é porque tem frio na cabeça»

As espantosas declarações que dão título a este relato foram obtidas pela nossa reportagem numa ocasião verdadeiramente excepcional. Por dois leitões e uma entrevista exclusiva fomos até ao fim do mundo, passámos para lá do fim da rua. Num raro momento de abertura, os Senhores dos Tonéis, Núcleo Duro e Braço Armado da misteriosa Real Satânica do Tinto, acederam a revelar ao grande público alguns dos seus hábitos e ritos. Sob rigorosas condições de sigilo, o repórter conseguiu finalmente penetrar numa das mais antigas organizações secretas do distrito de Coimbra, na sua peregrinação secreta ao Templo do Bolho. Permitiu esclarecer alguns enigmas, mas muito ficou ainda por descobrir. De resto, para o autor destas linhas, a própria localização do Bolho continua secreta, depois de horas às curvas por entre a bruma e estradas e caminhos irreconhecíveis, algures nas labirínticas entranhas da Bairrada, tendo, inclusive, o Membro do Movimento que nos conduziu ao Templo encenado ter-se perdido no sentido de ser impossível ao repórter reconstituir o percurso.
O carácter clandestino da Organização e da própria povoação onde teve lugar a Cerimónia, é realçado, de resto, pela data mística em que se realizou a Celebração, 28 de Janeiro, dia de São Tomás de Aquino, Presbítero e Doutor da Igreja e, como são todos os dias 28 de todos os meses, Dia do Arcanjo da Terra, como descobriu a nossa investigação numa publicação igualmente secreta e misteriosa, o Borda D’Água (“Reportório útil a toda a gente”).
Afinal, tratava-se de um acontecimento de magna importância para a Entidade, em plena Época Oficial do Plantio do Centeio da Couve Galega dos Nabos das Nabiças dos Rabanetes da Salsa e do Tomate. Mas sobretudo porque nessa noite se iriam definir hierarquias no centenário Grémio, mediante o teste da exigente Prova Cega dos Vinhos, liturgia de que se abstém o repórter de pormenorizar de tão insondável. As bombásticas declarações constituem, enfim, as primeiras palavras secretas do novo Mestre Cósmico do Tinto, que renova o mandato e a vantagem na liderança da Organização. Mais uma vez a honraria ficou na misteriosa terra anfitriã do Acontecimento, cabendo o Supremo Avental ao elemento bolhense, que adiantou desde logo à nossa reportagem, em jeito de promessa, que gostaria de ver a Cicciolina no lugar de ponta-de-lança. «Ponta de lança», afirmou categórico o novo Mister, que ofertou o repórter no final da cerimónia com três tangerinas, gesto altamente simbólico e respeitado entre Os Membros.
Até chegarmos às famosas primeiras palavras oficiais do líder, no entanto, este teve de superar uma competição impiedosa perante os restantes 12 comensais/competidores (o que perfaz, como poderá o leitor notar o Total perfeito e mais uma vez altamente simbólico de 13). Como nos concílios para a escolha do Papa, o ambiente é solene mas de grande tensão. A riqueza e a amplitude do debate, ao proceder-se à análise dos oito néctares em prova, não impede uma enorme agressividade competitiva e um intenso jogo de bastidores, não sendo raras públicas acusações de sinistros conluios e obscuras alianças de circunstância. A harmonia dos 13, apesar de firme nos propósitos, não resiste ao stress da escolha e da responsabilidade. «O processo está inquinado!», proclamava, alto e bom som, um dos Elementos no início da Prova, pondo irremediavelmente em questão a transparência do concurso e dando azo a uma constante troca de acusações entre indivíduos ou facções, acabando por favorecer, no entanto, uma dialéctica agressiva mas enriquecedora. Principalmente no episódio em que o Mestre é frontalmente questionado por um dos 13, acerca de um dos “tabus” desta celebração especial por alturas de vacinar porcos contra as doenças rubras: Comer ou não comer durante a Prova? Antecipando os dois bácoros bairradinos, amais o fiel Sarrabulho, um dos Elementos afrontou severo a mesa e disse, silenciando os presentes: «Esta merda não é nenhuma competição oficial foda-se, só não se come porque tu não gostas, caralho». Apesar da violenta troca de argumentos em torno da mesa, impassível na senda vitoriosa, o Mestre escutou atento mas lacónico os reparos dos seus pares. Ao centro, as oito garrafas em juízo, aguardando fumo branco.
O estado de espírito dos contendores reflectia, sublinhe-se, a própria complexidade do evento, claramente reflectida em pareceres que se iam escutando como «um tom violeta, quase verde», ou «um travo banana com manteiga», frases que traduzem a extraordinária minúcia da análise.
No fim, ganhou quem mereceu e não ganhou o vinho mais caro, pormenores que deixo para divulgação oficial do grémio satânico. A entrevista ao porco tricampeão decorreu precisamente no final da cerimónia, submetendo-se este, magnânimo, ao interrogatório dos demais confrades que, democraticamente, fizeram cada um sua pergunta ao mestre bolhense. Desde logo, e significativamente, o Supremo Méne revelou que se fosse treinador do Chelsea contratava imediatamente «o Manuel Fernandes, do Benfica». Bombástico, como discurso inaugural, mas mais maravilhamento estava reservado aos presentes. À pergunta «em termos tácticos, o que é que achas que o Trapatoni tem falhado no Benfica?», não deixou créditos por mãos alheias, ajeitou as costas para trás no seu cadeirão à cabeceira da mesa e disse, com rosto solene nas pausas e serenidade nas interrupções: «Opá, tem falhado muita coisa. Do ponto de vista táctico acho que ele ainda não afirmou um modelo de jogo para aquela equipa, modelo de jogo… Agora, o que é que eu preconizo?... Acho que ele tem de trabalhar mais, acho que é um treinador ultrapassado em termos da metodologia do treino, a equipa não corresponde em termos de modelo de jogo aquilo que ele pretende, porque acho que não trabalha…Do ponto de vista mental também acho que… [comentários laterais: «dá um prato ao gajo, parece uma alma penada!...», «está calado caralho!», «atenção, pá, deixem o homem falar… A sério, isto é uma brincadeira séria…»] … E penso que o Benfica este ano não vai ganhar o campeonato», afirmou convicto, deixando a todos rendidos na sala.
Bem mais importantes revelações, como a de qual vai ser a equipa vencedora da Super Liga, o nome do futuro campeão, entretanto, foram escamoteadas graças à incompetência ou à perfídia do Membro a quem coube a tutela do gravador, retirado ao repórter, impedido de intervir neste sub-rito. A parte do nome do clube, de facto, não ficou registada, mas não se perdeu a fundamentação, tornado as seguintes declarações num verdadeiro enigma gnóstico para os vindouros: «… Vai ganhar o campeonato porque é a equipa com o modelo de jogo mais organizado, mais coerente, mais consciente… Vai ganhar o campeonato». E está lançado o Mistério. Maior desafio foi porventura a questão seguinte, de um Elemento particularmente sagaz: «Dos treinadores da I Divisão quantos é que já trouxeste aqui ao Bolho?». A resposta esteve à altura da lógica tortuosa do interrogador: «Nenhum!», declarou o Mestre com determinação.
A demanda mais vil e complexa, no entanto, proveio do Membro espanhol da Confraria, que manifestou, mais em jeito de provocação que de pergunta: «Ganhar, ganha-se facilmente com vinhos portugueses, o difícil aqui é ganhar com vinhos espanhóis. Quando é que ganhas com vinhos espanhóis?» [comentário lateral: «Boa pergunta!»]. A resposta do Mestre foi demolidora, invocando a táctica do quadrado e o espírito da padeira de Aljubarrota: «Não conheço, não invisto no espanhol», foi a imediata e extraordinária contra-argumentação do lusitano bolhense.
Outro tema interessante foi o suscitado pelo seguinte inquisidor, que quis saber o que achava o Mister acerca da «relação entre o futebol e o vinho». A resposta não defraudou as expectativas do grupo: «O futebol e o vinho têm uma relação muito profunda. Escolher um bom vinho é como construir uma grande equipa de futebol» [comentário lateral: «Foda-se, óh égua! Está bem visto…»]. Mas a “piéce de resistance” estava guardada para o final, tendo sido reservada a honra da última pergunta ao iniciado do Colectivo, que a todos assombrou ao referir que trazia ali uma questão sobre «coisas sérias». Qual? Nada menos que: «Sócrates ou Santana?». Tema que proporcionou ao Mestre uma demonstração inequívoca de toda a sua virtuosa sabedoria, na obediência pelos princípios do Supremo Equilíbrio Cósmico: «Nem um nem outro», respondeu o Grande Mister, acrescentando que não tem por hábito utilizar dildos e outros artefactos de apoio ao coito. «Porque não preciso», precisou, pondo fim ao centenário Sub-Rito das Perguntas. E, por ser verdade, assim aconteceu.

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