Movido por um misto de curiosidade pessoal e profissional, ontem ao fim da tarde fui ouvir o profe Marcelo Rebelo de Sousa, ao Casino da Figueira da Foz. O homem veio encerrar umas jornadas da Associação de Jovens Advogados do Centro e do Arquivo da UC. Veio falar das suas memórias de professor universitário de Direito, sobretudo na alma mater Universidade de Lisboa (UL), onde se formou a rebentar a escala, se doutorou em Ciências Jurídico-Políticas e é hoje professor catedrático. Não dei o tempo por perdido. O profe, perito em sínteses e em cativar audiências, discorreu durante cerca de uma hora em grande aceleração verbal pelo seu passado de, precisamente: profe. Desde os princípios dos anos 70, passando por uma revolução («tive a felicidade de ter podido viver uma revolução aos 23 anos, é a melhor altura da vida para se viver uma revolução», disse Marcelo com saudades) e atravessando estas três décadas democráticas. Não se falou de política (pelo menos directamente), não se falou do Expresso nem das dezenas de livros que produziu, nem das obras jurídicas. Foi sobretudo em torno da sua experiência enquanto professor, professor e comunicador por vocação e distinção. Uma aula que o magnífico gongórico Rui de Alarcão apelidou, extasiado, de «magnificente» no final. A sério. Fez uma breve regressão a um passado mais fundo da vida, no início, para dar contexto familiar à vocação, e ao convívio íntimo do pai com Marcelo Caetano, que já em criança lhe despertava a vontade de ser quando fosse grande «professor catedrático».
Fait divers: Marcelo Caetano não foi padrinho de baptismo do profe, apesar de convidado pelo pai Baltazar, invocando uma questão de princípio para recusar: Os padrinhos não devem ser mais velhos que os pais, para poderem estar lá em apoio do afilhado quando os pais falecerem, em princípio mais cedo. A sério.
Marcelo, liberal e pró-democrata apesar das simpatias familiares, foi sintomaticamente dos poucos profes, na altura assistente, a não ser saneado pelos comités revolucionários, sobretudo estudantis, que tomaram conta do poder nas universidades após o 25 de Abril. Se a de Coimbra foi tomada pelos comunistas, apesar de tudo uma malta mais “soft”, da UEC, na UL venceram os radicais maoistas do MRPP, gente de gadelha sebenta até aos mamilos adepta do livrinho vermelho chinês, como Durão Barroso ou Ana Gomes na vanguarda em Direito. Na UL foi quase tudo varrido dos corpos docentes, já que eram raros os que não tinham colaborado com o regime anterior, seja como membros de governos, seja como procuradores das câmaras corporativas, etc. Em Direito só ficaram três, um deles Marcelo. O outro, Marcelo, foi para o Brasil. Em suma, o profe saiu também por solidariedade para com os saneados, mas achou, ou pelo menos é assim que hoje sente esse passado, aquilo tudo uma grande excitação! O homem é de facto uma força da natureza e faz lembrar uma mosca, atenta e rapidíssima, sem perder a compostura, o charme e a simpatia. Depois é enciclopédico, e até as maiores banalidades lhe saem com brilho e graça. Um predestinado da docência com um currículo de 350 páginas. «Os fins de regime são sempre esteticamente bonitos», esta frase foi uma das poucas que acabei por registar no bloco, a velocidade do discurso tornava quase impossível a tarefa e a partir de um certo ponto deixou de me interessar a caneta e o bloco, fiquei absorto e tentei registar com a memória. Aqui vos deixo um cheirinho, só para dar nota da análise que o profe faz, nestes trinta anos de ensino, às diferentes gerações de alunos que lhe têm passado pelas salas de aula. A partir dos anos 90 foi sempre a descer. Primeiro, ao contrário do espírito mais solidário que se vivia entre os estudantes nos anos 70 ou 80, começou a imperar a parir daí o individualismo feroz, fruto de uma concorrência que já se fazia antever de um mercado de trabalho cada vez mais esgotado, começaram aí os principais e primeiros problemas de acesso de licenciados ao emprego. «Cada qual por si e Deus por todos e, para os não católicos, ninguém por ninguém», seria genericamente o lema. Depois começou a instalar-se rapidamente a mancha negra da ignorância, boi que o profe não quis chamar pelo nome, relativizando o fenómeno com o excesso de informação que lhes entra hoje nas cabecinhas: «Não têm tempo para gerir tanta informação, há menos qualidade». Por um lado uma crescente incapacidade de perceberem um conceito abstracto, que tem de ser explicado tim tim por tim tim como se explicam coisas às crianças, e acima de tudo como se toda a anterior escolaridade tivesse desaparecido por um vórtex ao fundo do cerebelo, por outro graves lacunas culturais e educacionais de base. «Grandes buracos formativos de base», nas palavras do profe, que ainda não se habituou ao tratamento de polé que é dado, mesmo pelos melhores alunos do curso, à língua portuguesa. Isso, ou um confrangedor desconhecimento sobre história, em localizar e explicar factos e pessoas no passado. «Não têm, por exemplo, noção do que era o país antes do 25 de Abril, não percebem, é outro mundo (…) Passámos a ter de explicar coisas óbvias, têm uma dificuldade enorme de conceptualizar, não sabem lidar com conceitos. Mesmo os melhores alunos têm lacunas em coisas muito sérias», admite Marcelo num lamento, mais sofrido pela crescente falta de respeito pelos mais velhos e pelos profes em geral. Incluindo as instituições. Comparou a esse propósito visitas que faz com alunos a Belém, e as respectivas atitudes, com gerações anteriores. Estas últimas compostas, curiosas e respeitosas. Hoje em dia entram em cena num perfeito circo infantil e desbocado, espalhando-se de imediato, qual bando de pardais à solta, pelos recantos mais sombrios dos jardins do palácio cor-de-rosa para «namorar». Depois de muita trabalheira a arrebanhar os quase “doutores” de Direito, explica o profe, lá entram, e por regra ignoram completamente as prelecções (algumas interessantíssimas, garante o profe, sobretudo com Soares) do Presidente, e alguns até vão remexer na secretária de trabalho do PR virando decretos para promulgar e objectos pessoais. Retive, enfim, uma frase do profe a propósito da degradação do ambiente familiar neste país stressado, citando o desabafo de uma aluna, a quem aconselhava apoio entre a família: «Sabe sôtor, a casa é um bocadinho uma paragem de autocarro, temos todos horários diferentes e falamos pouco». Não há tempo. Os pais e os profes têm cada vez menos tempo, interesse ou autoridade e estamos a fazer um país de idiotas funcionais.
Fait divers: Marcelo Caetano não foi padrinho de baptismo do profe, apesar de convidado pelo pai Baltazar, invocando uma questão de princípio para recusar: Os padrinhos não devem ser mais velhos que os pais, para poderem estar lá em apoio do afilhado quando os pais falecerem, em princípio mais cedo. A sério.
Marcelo, liberal e pró-democrata apesar das simpatias familiares, foi sintomaticamente dos poucos profes, na altura assistente, a não ser saneado pelos comités revolucionários, sobretudo estudantis, que tomaram conta do poder nas universidades após o 25 de Abril. Se a de Coimbra foi tomada pelos comunistas, apesar de tudo uma malta mais “soft”, da UEC, na UL venceram os radicais maoistas do MRPP, gente de gadelha sebenta até aos mamilos adepta do livrinho vermelho chinês, como Durão Barroso ou Ana Gomes na vanguarda em Direito. Na UL foi quase tudo varrido dos corpos docentes, já que eram raros os que não tinham colaborado com o regime anterior, seja como membros de governos, seja como procuradores das câmaras corporativas, etc. Em Direito só ficaram três, um deles Marcelo. O outro, Marcelo, foi para o Brasil. Em suma, o profe saiu também por solidariedade para com os saneados, mas achou, ou pelo menos é assim que hoje sente esse passado, aquilo tudo uma grande excitação! O homem é de facto uma força da natureza e faz lembrar uma mosca, atenta e rapidíssima, sem perder a compostura, o charme e a simpatia. Depois é enciclopédico, e até as maiores banalidades lhe saem com brilho e graça. Um predestinado da docência com um currículo de 350 páginas. «Os fins de regime são sempre esteticamente bonitos», esta frase foi uma das poucas que acabei por registar no bloco, a velocidade do discurso tornava quase impossível a tarefa e a partir de um certo ponto deixou de me interessar a caneta e o bloco, fiquei absorto e tentei registar com a memória. Aqui vos deixo um cheirinho, só para dar nota da análise que o profe faz, nestes trinta anos de ensino, às diferentes gerações de alunos que lhe têm passado pelas salas de aula. A partir dos anos 90 foi sempre a descer. Primeiro, ao contrário do espírito mais solidário que se vivia entre os estudantes nos anos 70 ou 80, começou a imperar a parir daí o individualismo feroz, fruto de uma concorrência que já se fazia antever de um mercado de trabalho cada vez mais esgotado, começaram aí os principais e primeiros problemas de acesso de licenciados ao emprego. «Cada qual por si e Deus por todos e, para os não católicos, ninguém por ninguém», seria genericamente o lema. Depois começou a instalar-se rapidamente a mancha negra da ignorância, boi que o profe não quis chamar pelo nome, relativizando o fenómeno com o excesso de informação que lhes entra hoje nas cabecinhas: «Não têm tempo para gerir tanta informação, há menos qualidade». Por um lado uma crescente incapacidade de perceberem um conceito abstracto, que tem de ser explicado tim tim por tim tim como se explicam coisas às crianças, e acima de tudo como se toda a anterior escolaridade tivesse desaparecido por um vórtex ao fundo do cerebelo, por outro graves lacunas culturais e educacionais de base. «Grandes buracos formativos de base», nas palavras do profe, que ainda não se habituou ao tratamento de polé que é dado, mesmo pelos melhores alunos do curso, à língua portuguesa. Isso, ou um confrangedor desconhecimento sobre história, em localizar e explicar factos e pessoas no passado. «Não têm, por exemplo, noção do que era o país antes do 25 de Abril, não percebem, é outro mundo (…) Passámos a ter de explicar coisas óbvias, têm uma dificuldade enorme de conceptualizar, não sabem lidar com conceitos. Mesmo os melhores alunos têm lacunas em coisas muito sérias», admite Marcelo num lamento, mais sofrido pela crescente falta de respeito pelos mais velhos e pelos profes em geral. Incluindo as instituições. Comparou a esse propósito visitas que faz com alunos a Belém, e as respectivas atitudes, com gerações anteriores. Estas últimas compostas, curiosas e respeitosas. Hoje em dia entram em cena num perfeito circo infantil e desbocado, espalhando-se de imediato, qual bando de pardais à solta, pelos recantos mais sombrios dos jardins do palácio cor-de-rosa para «namorar». Depois de muita trabalheira a arrebanhar os quase “doutores” de Direito, explica o profe, lá entram, e por regra ignoram completamente as prelecções (algumas interessantíssimas, garante o profe, sobretudo com Soares) do Presidente, e alguns até vão remexer na secretária de trabalho do PR virando decretos para promulgar e objectos pessoais. Retive, enfim, uma frase do profe a propósito da degradação do ambiente familiar neste país stressado, citando o desabafo de uma aluna, a quem aconselhava apoio entre a família: «Sabe sôtor, a casa é um bocadinho uma paragem de autocarro, temos todos horários diferentes e falamos pouco». Não há tempo. Os pais e os profes têm cada vez menos tempo, interesse ou autoridade e estamos a fazer um país de idiotas funcionais.
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