21/03/05

A Honra dos Padrinhos - Ascensão e Queda de Michael Corleone, por Mangas

Michael Corleone acabou sozinho numa cadeira de baloiço, com uma manta sobre as pernas, entregue ao abandono de uma Sicília impiedosa. O pai, o primeiro Padrinho, morreu à sombra dos tomateiros enquanto brincava com o neto, numa das mais memoráveis sequências do cinema contemporâneo. A morte veio por ele sem sofrimento nem angústia. Esse espontâneo e definitivo momento de alegria é o que perdurará, depois de tudo o resto. É o Rosebud póstumo de Don Vito Corleone. Michael não teve direito a requiem, morreu rodeado de montanhas áridas, ao sol e com os ossos gelados. Também árido era o deserto de Las Vegas de onde um dia tirou um irmão mais velho para muitos anos mais tarde o matar. Nestas coisas, as construções da natureza, têm memória. As dos homens, como a Máfia, também.

Essa Sicília assassina onde o azeite fruto da terra e verde como os dólares fora o começo de tudo, não se fez barata e cobrou-se com sangue, ficou-lhe com a vida, mas já antes lhe tinha roubado outras que lhe pertenciam, a da primeira mulher e a da filha. Talvez por isso Michael tivesse regressado às origens férteis onde nasceu o pai. Para morrer perto da morte.

Michael morreu várias vezes então e, no processo, transformou-se num monstro impiedoso e brutal capaz de destruir, directa ou indirectamente, quem quer que lhe fizesse oposição ou ameaçasse a família corporativa – fosse ele uma esposa, um parceiro de negócios ou um irmão. Se a história nos ensinou alguma coisa, é que podemos matar qualquer um, disse-o certa vez a Tom Hagen. Don Vito morreu apenas uma vez, à sombra de uma horta, com um esguicho de água aos pés, a correr atrás do neto que era o filho de Michael. Apenas uma vez porque se salvou das outras duas. Na primeira sobreviveu às balas a mando de Don Barzini, na segunda enquanto convalescia na cama do hospital. O plano fora descoberto por... Michael.

O simbolismo deliberado das laranjas também jogou sempre a favor do velho Don. A primeira vez que vemos o jovem Vito a ser agraciado por um favor que fizera a alguém, é enquanto escolhe laranjas na rua para levar para os filhos e a mulher. O vendedor não lhe quer dinheiro e mete-as num saco de papel como oferenda. Na tarde em que foi quase mortalmente atingido, deteve-se a comprar laranjas antes de entrar no carro conduzido por Fredo, e são os frutos que primeiro atingem a terra, depois das balas. Ao Michael nunca o vi trincar uma maçã sequer, talvez por isso também tenha sido castigado.

Para Michael a família e a Família são apenas uma. Não há distinções morais ou diferenças de tratamento. As leis são as mesmas, as regras convergem, os castigos aplicados de forma inapelável. Nada de complacências. Para Don Vito, a família está antes da Família. A unidade é primeiro mantida internamente dentro de casa e a procura constante de união do sangue começa, se calhar, quando em miúdo viu os pais serem abatidas como coelhos por D. Cicio. Vito conseguiu sempre manter o núcleo familiar indivisível. Um homem que não passe tempo com a sua família, nunca será um homem verdadeiro, dirá mais tarde a Johnny Fontane, alter-ego de Frank Sinatra.

Michael nunca chegou aos calcanhares do pai como gangster honrado nem como pai, marido ou irmão. Por várias razões. Primeiro porque nunca teve um Sonny ao seu lado: o irmão primogénito morreu pela espada porque tinha uma personalidade irascível, não hesitava em distribuir porrada sem piedade quando necessário, mas apesar de ser um putanheiro incorrigível, estava sempre presente quando era necessário, impunha-se nas ruas com a mesma facilidade com que se fazia obedecer no lar. Esse lugar tenente, Michael só o teve em Tom Hagen, o filho adoptivo e fiel Consiglieri até final. Hagen talvez fosse o cérebro, mas faltou o músculo de Sonny, a sua capacidade de acção e resolução imediata para evitar males maiores. A grande questão é saber se não tem sido assassinado, teria sido Sonny o natural sucessor do pai? Coppola metralhou-o porque quer contar a história de Michael? Ou teria Don Vito legado o poder ao filho mais novo? Sim, porque Fredo é patologicamente uma carta fora do baralho.

A segunda das razões que podem explicar a vida e os actos de Michael Corleone prende-se com o facto de os tempos serem outros. Em 1908 quando Don Vito se casa, é o ano em que a Ford Motor Company produz o primeiro modelo Ford T e os irmãos Wright fazem a demonstração do seu aeroplano para o governo americano; Anthony, o filho mais velho de Michael, faz a sua estreia no canto em 79, ano em que são feitos reféns os americanos na embaixada em Teerão, Tatcher é a primeira mulher a ser eleita Primeiro Ministro em Inglaterra e a Rússia invade o Afeganistão. O negócio com o Vaticano vem a seguir e no sucessor emergente corre o sangue de Sonny Santino. A ascensão e queda dos Corleone atravessa um século de história e uma enormidade de transformações sociais, culturais, políticas e de mentalidades. Michael aprendeu hostilidade com o mundo e consegui sempre manter-se na linha da frente da Mafia modernizada que, à sua conta, encomendou um número generoso de coroas fúnebres para distribuir pelos seus filhos e enteados.

A terceira, e talvez, mais importante razão é que Michael era geneticamente frio, calculista, cerebral e desprovido de compaixão. O senso e algum pudor sempre estiveram na base das decisões de Don Vito enquanto Padrinho. Nunca vender ou comprar drogas, nunca trair nenhuma das outras Famílias, tomar sempre conta da nossa! Michael foi sempre um solitário e mais ainda quando a solidão física e moral se apoderou dele – o remorso viria depois e até ao fim. Ter-se alistado no exército, contra a vontade do pai que o podia ter safo, quando nada tinha a ver com os negócios da família, é a primeira decisão individualista de um homem íntegro, ainda. Michael regressaria como herói de guerra para posteriormente ser sugado inexoravelmente para os negócios da família quando o pai é abatido. Um clima de suspeição, vingança e chorudos lucros com o novo negócio das drogas rapidamente monopolizaram as operações por si chefiadas dando espaço a uma rápida perda de códigos de honra e a uma emergente espiral de violência. Michael é a besta negra que detém o poder e o usa sem contemplações morais - abandonou Kay sem explicações e no exílio forçado decidiu casar com Apollonia sem nunca com ela ter trocado uma palavra sequer; regressou viúvo e arrastou Kay para uma relação de mentira, encobrimento e fachada; abraçou os lucros chorudos do mercado de drogas; fez de cada rival um inimigo, depois achou por bem acautelar o futuro com as suas execuções; cometeu perjúrio na Comissão; renunciou ao pecado e executou a Avé Maria do irmão Fredo aos peixes, mentiu aos filhos, tentou comprar a absolvição do Vaticano, branquear os crimes e legitimizar os negócios, escapou das balas que lhe eram destinadas e limparam a filha, e acabou aconchegado à mais familiar presença do seu reinado - a solidão.

Naquela noite em que procurou visitar o pai no hospital e se apercebeu da tramóia para acabar com ele, acontece um pormenor, pequeno mas essencial, que o fez constatar a ele sobre a dimensão das suas reais capacidades, e a nós sobre a sua verdadeira vocação. Enquanto esperava com Enzo, nas escadas do hospital, simulando dois pistoleiros em guarda, um carro parou em frente com os carrascos de Don Vito que vinham acabar o trabalho. Michael pediu a Enzo que metesse a mão no bolso do casaco, como se estivesse a acariciar uma seis tiros. Enzo, o padeiro, assim fez, Michael também, os gorilas no interior do carro engoliram a encenação, convenceram-se do potencial risco e afastaram-se. Enzo sacou de um maço de cigarros amarrotado pelos nervos e tentou acender um cigarro com um Zippo, mas tremia como varas verdes e, após várias tentativas, não conseguiu sequer fazer chama. Então, Michael agarrou no isqueiro, acendeu-o à primeira, como se nada tivesse acontecido, os dedos não lhe tremiam, o rosto impávido e tranquilo, olhou as mãos que seguravam o isqueiro e atirou-lhe um olhar que demorou três segundos, os bastantes para perceber quem era dentro de si e como estava predestinado para aquilo. Quando os olhos de réptil enroscado regressaram daquela breve viagem ao entendimento da sua alma, já vinham resignados porque sabiam que não lhes seria possível escapar a um destino traçado.

The Godfather é uma cronologia glorificada do crime organizado na sociedade americana e a mais fascinante história de homens. De trono e sucessão, poder e intriga. Michael Corleone foi quem a escreveu e lhe carregou a cruz. Tombou, apenas, pela força imensa e brutal desse poder que sempre dominou.



Referências:
The Godfather I, II e III de Francis Ford Coppola
The World Almanac and Book of Facts

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