02/09/05

Tempestade, por Mangas

Um gavião desenhou dois círculos lá no alto. Voo suspenso sob o céu cinzento. Devem ser um prenúncio qualquer aqueles dois círculos, porque de repente as nuvens ficaram mais carregadas. Ficar por cá para além desta semana pode ter um desenlace inesperado. Às tantas, começo a habituar-me a vaguear pelo French Quarter e a sentir a ligação alienante ao jazz de rua e à comida creoule com muito picante.

Corre uma brisa fresca que a pele húmida agradece. Tentam vender-me uma boneca voodoo negra, com palha a fazer de cabelo e o rosto em forma de caveira, mas eu só tenho olhos para o gavião que agora paira sobre a minha cabeça. As tardes renascem neste tempo sedento de sangue. Os meus pés levantam poeira que em breve se irá transformar em lama. Sinto a camisa colada ao corpo. Vejo polegares apontados para cima, ansiosos por uma boleia. Também eles já perceberam que esta noite é o fim do mundo. Quatro putos negros batem com frenesim a sola metálica das botas no pavimento dos passeios. É um sapateado anunciador. Alguém recolhe os toldos e tranca as portas. Gritam pelos filhos. Gritam pelos filhos dos filhos. Alguns (muitos!) deixaram os bares e vieram para as calçadas diluir os últimos acordes de um trompete metálico em estado de ansiedade. Não há nada mais perigoso do que um trompete em estado de ansiedade! Garanto que ainda o consigo ouvir. Sem dar um passo. Sem mexer um músculo sequer.

Num instante as ruas ficaram desertas. Olho mais uma vez para cima e quase não distingo aquela forma ameaçadora de asas abertas. Caem as primeiras gotas e o barulho ensurdecedor de um relâmpago deixa tudo às escuras. Num instante também, a fúria das águas desceu dos céus, como o gavião tinha prometido. Começou.

Acho agora que sempre devia ter comprado a tal boneca voodoo.

New Orleans, Louisiana, Julho de 1994

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