01/09/06

Meteorologistas e Coleccionadores, por Pig Colector

O boletim meteorológico em Espanha é a coisa mais ridícula que existe. Não só em matéria meteorológica e não só para um português. Para um espanhol, ou para outro qualquer extrapeninsular que livremente viaje pela Península aproveitando a liberdade, o boletim é inexplicável. Imaginem um belga em Salamanca a lobrigar, acaso sobreviva ao IP5, molhar os pés na praia da Claridade lá pelo fim da tarde. Após as tapas, e já na Plaza Mayor, espreguiça-se e pede um café solo. Abre o jornal, busca a página da meteorologia para saber como está o tempo no litoral atlântico e…

- Merde! Portugal a disparu! Où est-il? – No caso de ser um belga francófono, claro, senão, imaginem merde em valão. A surpresa entende-se, seja qual for a língua. Portugal não é o Titanic, porra! O Copperfield quando fizer desaparecer um país será certamente a Síria, o Irão ou outro qualquer. Não vejo razão para riscar do mapa a Pasmaceira. Isto está mal, é certo que o futuro é cinzento, mas bolas, o Sol quando nasce é para todos. E se há coisa boa que a gente tem é o Sol. Porque não chegamos lá para estragar, nem com escadote. Senão fazíamos lá uma Quarteira, com Tê-zeros em time share e escorrega na piscina para os putos racharem os cornos. E também não custa nada dizer ao belga que na Figueira da Foz está vento como o caraças e a água é fria como o caraças.

Aceito que os luxemburgueses ignorem quem os rodeia. Pegam no zoom, aumentam mil vezes a Paróquia e desfocam a Alemanha, a França e a Bélgica. É ridículo mas compreende-se, pois o Luxemburgo é uma teimosia que nem aos luxemburgueses interessa. No máximo, é um bom local para sedear um banco, para lavar dinheiro, para fugir ao fisco, ou para resolver questões diplomáticas. O maior problema do Luxemburgo é que não tem luxemburgueses. Um país que tem este problema pode fazer tudo. Aceito também que o boletim meteorológico dos franceses ignore a vizinhança. O Hexágono é uma plataforma assoberbada por isso o francocentrismo é estatutário e tudo o mais é periferia. O mesmo se dirá da Alemanha. Já a Bota fá-lo naturalmente, pois logrou impor a lógica geográfica como condição para o desenho fronteiriço apesar de S. Marino e do Vaticano, minudiências tão microscópicas que nem corpo têm para levar com uma nuvem cinzenta em cima. A Inglaterra é um caso à parte. É célebre aquela anedota em que o apresentador da BBC anuncia um nevoeiro cerrado na Mancha e lamenta que o Continente fique isolado da Ilha. Que Portugal mostre o rectângulo destacado do todo peninsular, também se compreende. Portugal é uma exclusão. É como um médico especialista das doenças do pé que não quer saber o que é que se passa no nariz ou atrás da orelha. Exibe a radiografia ao pé enquanto coça o queixo e pensa na solução. Agora, o Todo é um generalista, não pode dizer que o que se passa no fígado não lhe interessa. A Espanha é generalista. Ou melhor, é um colégio de especialidades distintas que, juntas, formam um mosaico generalista. Lá iremos. Mesmo que Portugal seja um filho birrento e ingrato que, vai quase para um milénio, abandonou o lar, à mãe compete o seu dever irrenunciável, o qual é manter a porta aberta. Se um Nobel não se retira, a condição hispânica de Portugal não pode ser ela também sonegada. A Espanha pode não gostar do filho renegado, mas pariu-o e contra isso não há nada a fazer. Pode deserdá-lo e dizer que o não conhece, pode bater-lhe no rabo, pode virar-lhe as costas, não pode é dizer que não existe. É ilegal, em face do tribunal da História. Seria como se uma parturiente exigisse do obstreta a devolução do nado-vivo à condição pré-natalícia. A Espanha não pode fazer isso. Além do mais, fica-lhe mal. Vamos então à raiz do problema.

Recentemente, aquando da discussão e aprovação do estatuto autonómico da Catalunha, discutiu-se se a Espanha era uma Nação ou não. É um pormenor essencial. O Estatuto Autonómico, aprovado e referendado em meados de Junho de 2006, fala em povo, país, diversidade, energia de muitas gerações, tradição histórica, autogoverno, instituições próprias, liberdade colectiva, comunidade, posição singular, bla bla bla… Quanto ao essencial, o preâmbulo diz: «Cataluña, a través del Estado, participa en la construcción del proyecto político de la Unión Europea, cuyos valores y objetivos comparte.» Ou seja, além da Catalunha, declara-se um Estado que é a Espanha, naturalmente, o que faz da Catalunha uma nação subsidiária e dependente do Estado espanhol. Depois, adianta-se que «El Parlamento de Cataluña, recogiendo el sentimiento y la voluntad de la ciudadanía de Cataluña, ha definido de forma ampliamente mayoritaria a Cataluña como nación.» Quer dizer, o Parlamento democrático da Catalunha interpretou a vontade cidadã e votou maioritariamente a Catalunha como Nação, remetendo depois para o artigo 2º da Constituição espanhola que, segundo o estatuto autonómico «reconoce la realidad nacional de Cataluña como nacionalidad.» Leiamos pois o citado artigo 2º : «La Constitución se fundamenta en la indisoluble unidad de la Nación española, patria común e indivisible de todos los españoles, y reconoce y garantiza el derecho a la autonomía de las nacionalidades y regiones que la integran y la solidaridad entre todas ellas.» Atentemos aos pormenores e subtilezas, que é a única coisa que interessa. Em primeiro lugar, evita-se cuidadosamente a palavra Estado para definir a Espanha. Entende-se, pois tal faria da Espanha uma superstrutura estatal aglutinadora de várias nações. O risco é que, como toda a História ilustra, as nações são soberanas, logo, autonomizáveis. A História contemporânea tem milhões de mortos e rios de sangue a comprová-lo. Depois, apresenta-se a Nação espanhola como Pátria Comum. Não o Estado, conceito racional, jurídico-constitucional, fundador de toda a ordem política, base de toda a sociedade organizada e princípio de toda a história narrada. Mas a Pátria, esse vínculo afectivo com o solo telúrico que nos define a condição. É um conceito apolítico por definição, pois remete para a ordem natural. Tem-se uma Pátria como se tem uma mãe. Ama-se. Não se renuncia a ela, morre-se por ela. Ninguém morre pelo Estado. Esfrangalham-se sim pela Pátria. Pois que também eu sou capaz de ir aos cornos ao primeiro filho da puta que falar mal da minha mãe. Que é uma santa. Já do Administrador do Condomínio, ou do próprio Condomínio podem dizer o que quiserem. A mãe é a Pátria, o condomínio é o Estado. Assim posto, o que se diz após é supérfluo: indissolúvel e indivisível. Claro! Com três letrinhas apenas bla bla bla bla. No artigo 2º reconhece-se ainda o direito à autonomia das nacionalidades e regiões. E aqui, que é para onde nos remete o estatuto autonómico da Catalunha, há uma subtileza preciosa, quase cínica, que contrasta com o frustrado «amplamente» com que a lei Catalã qualifica a votação da maioria parlamentar que votou a Catalunha como Nação. A Lei Fundamental usa um plural – nacionalidades e regiões – que equipara em subalternidade todas as nacionalidades e até faz acompanhar o conceito de uma menção apoucadora, mesmo diminutiva, às regiones. Mais valia dizer nacionalidadezinhas, pois que assim dito a Catlunha é uma paróquia, ainda por cima obrigada ao dever de solidariedade com as restantes. A Catalunha até pode ser o coração da Espanha, mas como o coração é importante, mas não é autónomizável. Nenhuma parte renuncia ao Todo. Entende-se pois, e estipula-se, que Nação é a Espanha.

É aliás este o título de uma obra publicada pela Real Academia de la Historia em 2000: La España como Nación. Aqui, para além de nos apercebermos como a História, sob convocatória, é subsidiária da política, os sábios académicos forneceram aos políticos o fundamento teórico para o seu ensejo. Discute-se, discute-se e no fim apresenta-se a Espanha como Nação. Não como uma confederação de nações, ou uma Nação de Nações mas, simplesmente e sem mais, uma Nação. O que faz das partes isso mesmo: partes!

Mas há um mas. Há sempre um mas. E o mas é: Portugal! Os catalães até podiam dizer, queixando-se à mãe espanhola e apontando para o irmão português:

- Se ele pode eu também posso!

O que é dizer, se Portugal é uma Nação, a Catalunha, obviamente, também é. E o País Basco. E a Galiza. E quem não é pode vir a ser, aceitando para tanto a evidência que impossibilita que as nações sejam tidas como factos da Natureza. Se o passado quase milenar alicerça o estatuto português, o futuro sustenta as ambições catalãs. Senão mesmo o presente. Tal equivale a dizer que estes factos são da ordem da política, como é óbvio, apesar de historicamente se haver negado esta evidência. Não há nenhum estatuto natural, nenhum jugo impositivo. Tudo é política e a política radica na vontade dos homens.

Num capítulo interessante dessa obra, D. José Alcalá-Zamora Y Queipo De Llano, catedrático de História Moderna, declara a dificuldade em delimitar o conceito de Nação, chegando a falar de «labirintos intermináveis». Apesar disso, e sem qualquer intuito classificador, seja qual for o fundamento que as baseia, reconhece a existência de nações. Cita-as: Grã-Bretanha, França, Alemanha, Itália, Espanha, Estados Unidos, Rússia, China, Índia, Japão, Brasil, Canadá, México, Grécia, Egipto. Nem perco tempo a questionar a lista com a Tchetchénia e outros que tais. Prossigamos. O autor fala depois de Nações medianas, estabelecendo uma diferença que agora não me calha aprofundar: Bulgária, Roménia, Marrocos, Hungria, Suíça, Equador. Refere ainda países aos quais não cabe a designação de nações, são os pequenos estados: Andorra, San Marino, Mónaco, Vaticano, ou «os estadículos antillhanos» E, no meio de todo o rol, não se menciona Portugal! Não é um estadículo, convenhamos. É até uma nação, e um Estado, um dos mais antigos do Mundo, muitíssimo mais influente, considerando a linha diacrónica da História, do que a Bulgária ou o Equador, para só citar dois. O Real Académico, cita Portugal, algumas linhas após, apenas para ilustrar, baseado num dicionário de 1732, como se falava de «nação portuguesa» ou «nação andaluza» para referir o lugar de origem e nascimento. Ora, há aqui um equívoco inaceitável num catedrático e ainda por cima membro da Academia. Qualquer estudante de História argumentará que houve uma evolução semântica óbvia de forma tal que onde o dicionário de 1732 dizia «Nação», nós hoje diremos «Pátria». Porque Nação é um conceito romântico e oitocentista. Quando em 1812 a Constituição de Cádiz, que depois foi copiada pelos liberais portugueses de 1822, referia que a «soberania reside na Nação», atribuía ao conceito um significado diametralmente distinto do de 1732. Como é óbvio. Ora, se o catedrático não é ignorante, que não é, denuncia assim que a Academia iniciou uma investigação histórica comprometida ab initio, procurando fundamento para uma ambição política que consiste em declarar constitucionalmente a unidade da Espanha, submetendo para isso o rigor ao desejo. Em verdade, a conclusão estava estabelecida a priori. Isso mesmo o autor declara, com toda a razão do Mundo é certo, quando sentencia que Espanha é o todo Peninsular. Tudo o resto são partes, com Estado ou sem ele. E inclui Portugal. Naturalmente. Além das Astúrias, País Basco, Catalunha, os arquipélagos, Valência, Andaluzia, Estremadura, Navarra, Aragão, Madrid, Galiza, Múrcia, Leão, as Castelas e Rioja. Francisco Franco, o Caudillo, assim o entendia também. Pedro Teotónio Pereira, no prelúdio da Guerra Civil embaixador em Madrid, chegou a protestar diplomaticamente contra um cartaz da propaganda falangista que apresentava a Península sob a águia imperial de Carlos V sem o desenho da fronteira. E Salazar sabia, como revela Franco Nogueira, que o Caudillo, enquanto cadete da Academia de Toledo havia defendido uma tese que propunha uma estratégia para anexar militarmente Portugal em duas ou três semanas. Mas, voltando à questão das partes, caberia perguntar ao catedrático se, ao incluir Portugal e os arquipélagos (suponho que as Canárias e as Baleares), inclui também os Açores e a Madeira? E Melilla? Ceuta? E, já agora, Timor? Goa? Cabinda? A colónia de Sacramento? Macau? Dadrá e Nagar-Aveli? Enfim, tantas perguntas. Irresolúveis todas, porque a resposta será sempre escrava da condição, a qual é: defender aprioristicamente a unicidade da Espanha. Mas o rol anexador do catedrático, apesar de teoricamente intocável, não é declarável com facilidade. Pois se até Franco se viu forçado a assinar um Pacto Ibérico com Salazar no qual reconhecia a paridade estatutária! Só Filipe o logrou, pois que até os Reis Católicos, naturalmente, sempre se escusaram ao uso do título de reis de Espanha.

Por isso, se a declaração da unicidade é inconveniente, resta fazer como os meteorologistas, despreza-se Portugal. Não existe e pronto! Querem saber se chove, comprem o «Diário de Notícias». Esta via, a que chamo «meteorológica», é a seguida pelas universidades, pelos Estados, pelos governos, pelos estudiosos de ambos os países ao desprezarem-se mutuamente. Há, é certo, intelectuais como Eduardo Lourenço ou Valentín Cabero Diéguez, catedrático salamantino, que vêem a questão de forma descomplexada, sem que a hispanidade das partes conduza ao monolitismo do todo. A unidade hispânica deve ser granítica, devendo associar-se ao simbolismo robusto da rocha, a sua natureza compósita. Mas, apesar destes, e outros, o facto é que não há uma única história da Península Ibérica. Não há muitas mais regiões da Europa que tenham uma tão rica e tão vasta história comum, que participem de um passado tão próximo, que comunguem de uma identidade tão afim e, todavia, ainda ninguém se lembrou de escrever uma História Geral das Nações Ibéricas! Isto é incrível. A única obra que eu conheço é do grande historiador, Hipólito de la Torre Gómez que em 1998 coordenou uma obra em 400 páginas com a participação de diversos historiadores de diversas proveniências, intitulada España y Portugal. Siglos IX-XX. Vivências Históricas. Curiosamente, quase dez anos volvidos, ainda não há tradução portuguesa. Muito significativo é que o título mencione a expressão «Vivências históricas» É esta a condição para se escrever uma história da Península. Ver a história como uma vivência e como uma memória construída, partilhada, cheia de conflitos explicáveis e enquadráveis, repleta de desentendimentos igualmente explicáveis e enquadráveis. Sem qualquer reserva apriorística, livre de todos os propósitos político-ideológicos, sem subserviências e sem proselitismos, entendendo que a identidade se funda em interpretações históricas e elaborações culturais e que a história se constrói e reconstrói conforme a vontade dos homens e não conforme os condicionalismos da Natureza. Assim, entender-se-á a Península como um todo, mas como um todo que é um mosaico com várias tonalidades. Sendo que o passado é plural, as Espanhas como se dizia nos tempos suevo-góticos, e a unidade exigirá sempre o respeito pelas especificidades locais, regionais e nacionais. Assim nos declararemos, como Fernando Savater, contra todas as pátrias, decretando falido o modelo a que Fernando Catroga alude e pelo qual o Estado-Nação impôs um «conceito unicitário de soberania» sintetizável na forma do regalismo francês: «une foi, une loi, un roi», supondo-se que qualquer divisão era uma rebelião contra o Estado, constituindo esse o crime supremo, mais do que qualquer blasfémia.

A solução está pois em renegar esta «mentalidade excludente», usando a expressão de Savater para qualificar os fanáticos que achavam que não se pode ser basco e espanhol e basco e francês ao mesmo tempo. Contra isto, Savater escreve: «Pode-se e deve-se ser não duas coisas, mas muitas outras, todas as que nos permitirem conviver em harmonia e liberdade com o maior número possível de seres humanos. Abaixo os regimentos e a sua uniformidade idêntica! Criemos sociedades civis, onde as pessoas vistam à civil e sentindo-se bem, onde não haja nenhuma obrigação de nos parecermos a nenhum estereótipo de identidade nacional e onde as efectivas similitudes, que sem dúvida continuarão a verificar-se, sejam afinidades electivas do coração e não imposições burocráticas dos sargentos que se propõem administrá-las». Concordo! Letra por letra. Assim, veremos como desnecessária é a presunção da lei autonómica da Catalunha, da constituição espanhola, das conclusões das academias ou das verdades dos académicos comprometidos. Tudo é vão. Enriqueçamo-nos. Coleccionemos identidades como uma criança colecciona cromos de uma colecção interminável.

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