18/01/07

Dos contos do Deserto, por Mangas

Aconteceu tudo de forma muito acelerada. Foi assim: a sangrar às golfadas pelo nariz escaqueirado, o pai pergunta ao filho se quer parar para dar boleia à gaja da mochila, tiram à sorte, partem dois pauzinhos de fósforo, um mais pequeno o outro maior, sai o maior, eles estacionam, perguntam-lhe para onde vai, que passavam por lá, mandam-na sentar entre eles para não incomodar os senhores lá atrás, o filho agarra-a pela mamas, diz-lhe que tem de lhe fazer um broche, senão fica mesmo ali, ela faz, depois trocam e avia também o pai que não larga as mãos do volante, avia os dois várias vezes durante a viagem, paramos algures para meter gasolina e deixar arrefecer o motor.

Ela pergunta ao Miles se ele é músico profissional ou se toca apenas em festas, aniversários e coisas dessas, em seguida, ensina-nos o jogo de adivinhar as matrículas dos carros que vêm sem sentido oposto, e ri-se à gargalhada quando alguém erra os números por um algarismo. O velho muda as estações de rádio em cada vila, aposta comigo que ainda vai matar um cão malhado que se atravessa na estrada, adormecemos à sombra de uma igreja, quando ela acorda diz ao filho que tem sede, arrancamos e paramos outra vez para emborcar um par de cervejas geladas, prosseguimos pelo asfalto em brasa, o velho conduz a derrapar no limite da berma, buzina aos camionistas, a gaja faz-lhe piretes, o gaja e o filho fazem mais habilidade no banco da frente, às vezes ela inclina-se para os nós e pergunta se não queremos também, que nos avia também, os dois ao mesmo tempo, quer-nos a todos como irmãos, quais são os vossos nomes?, trata do nariz ao velho, abraça-o, sobe a capota e põe-se de pé no assento traseiro, abre os braços para espantar o vento que lhe arde nos cabelo, o velho arrota e desencanta uma garrafa de uísque, convence-nos sem esforço a dar cabo dela, massacra o motor aos roncos, sabemos todos que aquilo não dura sempre, no rádio Neil Young atravessa a planície de um lado ao outro, guitarras canhotas aos berros, o Miles improvisa que se farta, até dói ouvi-lo!, o som metálico dos pistons mistura-se com o trompete, uma espécie de percussão ritmada e gasta, o velho e o filho deliram com aquilo tudo, a gaja contorce os ombros enquanto abana a cabeça, levamos todos os olhos raiados de sangue e um espírito animal fora da jaula que nos guia pelas nuvens destroçadas e pelo pó dos ossos esbranquiçados no deserto.

Sem comentários: