15/01/07

O Velho e os Touros, por Mangas

No Verão de 94 colei com pedaços de adesivo um postal na parede do meu quarto, por forma a poder alcançá-lo com o olhar sempre que me apetecesse. Uma máquina de escrever vermelha com uma folha enrolada até meio e sobreposta a uma paisagem de fundo com palmeiras, onde voam outras duas folhas brancas levadas pelo vento. A folha enrolada e pronta a receber o martelar das teclas, tem três buracos no topo. Três balas disparadas à queima roupa. Sempre achei que aquilo queria dizer alguma coisa, quanto mais não fosse a raiva do escritor aliviada com um revólver certeiro no lugar das palavras, quando as palavras nascem de pólvora seca. Ao longo dos anos, mudei de casa algumas vezes, vivi em quartos de hotéis e dormi em espeluncas com cheiro ao amoníaco característico do mijo misturado com o bafiento odor de paredes amarelas sem janelas para as traseiras, mas aquele postal nunca me abandonou. Perdi objectos em mudanças que contavam dez anos da minha vida, outros media-os por décadas. Deixei para trás alguns livros sem outro valor que não fosse o ter-me apegado a eles como um prolongamento favorecido das minhas mãos que os seguraram, mas o postal com a máquina de escrever e a folha baleada, fez questão de nunca se extraviar, nem se abandonar ao esquecimento. Foi-me oferecido por um velho amigo que escrevia poemas aos touros em cadernos quadriculados e bebia em média duas a três garrafas de gin por dia para alimentar a cirrose hepática. Sempre que os nossos caminhos se cruzavam sem que o tivéssemos planeado, acelerava o passo e atravessava a rua decidido, dava-me um genuíno aperto de mão, perguntava-me como tinha passado, puxava-me para o bar mais próximo onde emborcávamos umas cervejas até que a noite nos tomasse de assalto e já sem fôlego. Mostrava-me os pequenos quadrados do caderno preenchidas de versos na diagonal, rascunhos de ideias e poemas, alguns deles resumidos a duas ou três frases. Conversávamos sobre as touradas e os grandes matadores do passado. Os olhos brilhavam-lhe quando recordava as Fiestas de S. Isidro e as jornadas a Pamplona para ver os Miúras. A imponência negra e trágica dos bichos no pó enfeitiçado da arena. Os magníficos quites, as verónicas a pano inteiro, os pares cravados com ganas, as ovações estrondosas na Plaza de Sevilha, toda em pé, nem ao cabrão do Franco eles faziam aquilo!, exclamava. E o Diamantino Viseu era um talento nato! Fazia-se silêncio quando pegava na muleta, acredita-me se quiseres. E nunca toureou para a praça: era verdadeiro! Fino na arte e elegante na estocada como nenhum outro! A seguir, parava a espaços para respirar, eu perguntava-lhe se estava tudo bem, ele acenava que sim com a cabeça, engolia as dores com a dignidade possível de um velho destroço habituado à ideia da morte a prazo.
Um dia pediu-me para o acompanhar à consulta porque ia fazer uma endoscopia ao estômago e a coisa prometia ser menos macia do que engolir um Gordon´s em jejum. Precisava de companhia, se eu me importava. Enquanto esperava por ele sentado num imenso corredor de hospital, vi passar putos enfezados, muito magros e sem cabelo. Além disto, todos tinham em comum a mesma expressão de desistência. Olhares resignados que não pestanejavam, longos roupões a flutuarem sobre o encerado, passinhos curtos e em desaceleração que me pareciam impulsionados pelos tubos que lhes saiam dos braços e terminavam em sacos plásticos com soro e drogas transparentes. Quando o meu amigo saiu pela porta branca, olhou na minha direcção, atirou-me um sorriso forçado e arrastou-se até à cadeira onde eu estava sentado. Sentou-se, pediu-me um cigarro e apertou o ventre. Permanecemos em silêncio alguns instantes. Esforcei-me por não dizer nada - sabia que ainda andava às voltas lá por dentro, à procura do que ainda lhe restava intacto. Depois, virou-se na minha direcção. Era chegada a altura certa de eu falar, olhei-o nos olhos de sofrimento mascarado, e perguntei-lhe se podia fazer alguma coisa pelas dores. Sorriu-me. Que nem pensasse nisso, porque ao pé de ti um homem até se esquece das dores! Inspirei demoradamente no cigarro, mordi o filtro, olhei para a janela em frente, lembrei-me do tal postal que me oferecera, lembrei-me também de uma caneta dourada que o meu avô me pusera no bolso, a caminho do aeroporto e da sua última frase ainda no cais de embarque: Nunca te esqueças...

Passou uma enfermeira silenciosamente atarefada com um tabuleiro entre as mãos carregado comprimidos brancos separados em pequenas doses individuais. Ajudei-o a levantar-se e fomos embora daquele lugar. Até hoje.

Agora não precisas de fazer mais endoscopias, poeta e fiel companheiro. Dispensaste os actos médicos e as rotinas de diagnóstico. Os médicos até se devem ter especializado em te enfiar tubos pela garganta e tu em engolir espadas como no circo, sem sangrar, aparentemente. Sem te queixares da sorte, nem da dor que dispensavas por rotina não fosse ela habituar-se às atenções dos empregados de bar que te acostumaste. A dor maior que ainda subsiste, e para a qual ainda não encontraram nenhum anestésico, é a tua longa ausência. E na realidade, eu nunca pude fazer nada para ta aliviar. Ouvia-te apenas enquanto assistia impotente à luta que travaste para adiar o irremediável final. Como Manolete que tu me descreveste, naquela tarde de 28 de Agosto de 1947, na Plaza de Liñares. Apanhado em contrapé, numa nesga de terreno entre os olhos sangrados da morte e as tábuas, na cara do Miúra Islero, sem poder desferir a estocada final.

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