23/04/07

Millet: Afinal Cheira a Rosmaninho!, por Luís XIV



Angelus
Museu D`Orsay, Paris.
Jean François Millet (1814-1875).

Em contraste com a Boda de Camponeses de Bruegel (ver post acima deste), encontramos esta outra representação do povo rural, o famosíssimo Angelus de Jean François Millet (1814-1875). Millet, supostamente, respeitou mais o povo que Bruegel, mas eu gosto mais do olhar de Bruegel.
A temática do quadro de Millet remete para a Hora do Angelus que corresponde às 6:00,12:00 e/ou 18:00 horas do dia e evoca o momento da Anunciação feita pelo Anjo Gabriel à Virgem Maria. De acordo com os preceitos Cristãos, esta hora deve ser celebrada diariamente mediante preces e orações. É isso que fazem os camponeses que interrompem a sua labuta para rezarem.

A matriz Cristã do quadro é pois explícita mas Millet vai mais longe ao fundir a sacralidade Cristã com o misticismo da terra e do mundo envolvente. Os camponeses estão perfeitamente integrados no seu mundo, não se destacam mas fazem corpo com ele. Tudo aqui é Sagrado. Atente-se nos tons amarelo-oníricos da paisagem – não é por acaso que este quadro atraiu Dali, que dizia procurar reproduzir nos seus quadros as cores misteriosas dos sonhos.

É verdade que este quadro é visto mais pelo seu lado místico e religioso, mas é ainda o povo que nele está representado. Já não se trata aqui do povoléu, do povão meio boçal de Bruegel mas de um povo digno, capaz de contactar com o Infinito.

Para além dos surrealistas que viram aqui a celebração do misticismo, também os realistas soviéticos se sentiram atraídos pelos camponeses de Millet, mas, agora, já não pela espiritualidade religiosa, mas pelo retrato da dignidade do povo puro e trabalhador. Não é estranho que um marxista veja aqui a alegoria da classe eleita. Tal comos judeus eram o povo eleito na escatalogia do Velho Testamento, na escatologia marxista é o povo que realizará o paraíso no fim dos tempos. O Angelus testemunha uma visão idealizada do bom povo trabalhador, é o retrato da sua dignidade suprema e da sua magnificiência.

Qual das duas imagens do povo é mais interessante? Embora me agrade este quadro de Millet, acho que ainda prefiro a visão de Bruegel. Não é tão realista na sua representação, mas é mais realista no conteúdo; ao passo que Millet pinta de um modo realista, mas é mais pomposo no conteúdo. Prefiro a alegria simples e concreta do povo de Bruegel. No Angelus pressinto qualquer coisa de idealizado e artificial. E contudo o seu desenho é incomparavelmente mais realista que o de Bruegel que está muito mais próximo da estética BD, por exemplo. Goscinny e Uderzo também acharam e é pertinente que, em Astérix e os Belgas, tenham visto nos camponeses de Bruegel os próprios Gauleses num momento de inevitável banquete. Aqui mesmo: http://asterix.openscroll.org/books/asterix_in_belgium.html

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