08/05/07

O Cabrito do Barão, por Mangas


Fez em Março um ano que nos encontrámos em Revenga de Campos, pequena aldeia perto de Palencia, com os nossos amigos bascos. Chegamos em comitiva, seríamos dez ao todo, já passava da meia-noite, algum cansaço da viagem, fome e sede também as levávamos. Apesar da hora tardia e do breu nocturno não foi difícil encontrar os bascos: aguardavam-nos cá fora, os Prieto e sus muchachos, de volta de uma enorme fogueira que sinalizava a entrada da bodega onde nos reuniríamos. Logo fomos recebidos com aquela genuína alegria que sempre os caracteriza e mergulhamos num ambiente fenomenal de boa disposição e fiesta. As boas vindas não podiam ter sido mais acolhedoras e a noite estendeu-se generosa àquele convívio fantástico de boa comida, vinhos de adega, cânticos e amizades renovadas; não havia ali espanhóis e portugueses, falávamos todos a mesma língua, éramos todos irmãos. Algumas horas mais tarde, a comitiva partiu para descansar em casa dos nossos anfitriões.

E é aqui que a tragédia toma proporções de hilário. A gula fermentada dos calzots (raízes de pequenas cebolletas que se comem assadas e mergulhadas em salsa catalã), e das lascas de bom queijo de ovelha, dos tintos Rioja e das postas de vitela na brasa ao sal, tudo isto metido para dentro num ambiente de perfeita algazarra e números de stand-up comedy levados a cena por um local-red-neck que cantarolava modinhas castelhanas emitindo grunhidos pela traqueia esticando-lhe a pele como a um berimbau – pareciam roncos de matracas obstipadas, só visto! - tudo isto dizia eu, e mais alguma coisa, foi peso a mais para o estômago filigrana do nosso querido Barão habituado ele que estava ao requinte dos bons tascos de Dublin e à belle-cuisine de Paris. Mais tarde, o pequeno trajecto de carro entre a bodega e a casa dos Prieto em andamento Michelle Mouton, matou-lhe, em definitivo, as entranhas de sangue azul. Num ápice apercebemo-nos que o Barão passa mal! Tez pálida como leite desnatado, olhar macilento e perdido num ponto fixo, em passinhos arrastados abandonou a geada acolhedora da noite palenciana e encaminhou-se, como pôde e sob escolta, à sanita mais próxima.

Aquilo não foi um cabrito: foi um borrego nutrido e aos saltos que lhe devia ter dado umas valentes marradas no estômago para sair cá para fora. Carga ao mar! Mar morto, pois pacífico já ele tinha sido, tamanhos eram os vagalhões a martelar-lhe as tripas, nem chibatadas a zunir pelas costelas abaixo deveriam ter tamanha repercussão da figadeira ao esófago. Demorou alguns minutos a primeira descarga, durante os quais, cá fora, com a porta aberta para não perder pitada do abate, a malta espojava-se e torcia-se na galhofeira, pois que por cá a mafarricada nunca se ri do bem ou da boa aventurança – se é desgraça colectiva ou mortificação pessoal que daí não traga mal ao mundo, a risada é à desgarrada e não despega enquanto o sossego não vier pela alma escolhida em sortes. E abate de borrego é prato raro, como tal, apreciado como poucos. Mas à alma, o Barão naquela noite encheu-a de sustento, e foi o que o salvou!, pois que de corpo estava ele podre até às entranhas como um febrão tropical, nem o paludismo ameaça assim – por bem menos li que barbeiros faziam sangrias de alguidar.

A segunda vaga foi ainda mais implacável! Enquanto os Prieto escaldavam chá de tília, as descargas eram cada vez mais violentas, mas o cabrão do alien não havia meio de sair todo cá para fora. Aguenta-te Barão! E ele aguentava-se como podia, estoicamente, o facies cadavérico em estilo «afasta de mim esse cálice Pai», o semblante curvado ao peso da derrocada, óculos embaciados da refrega, alguns gemidos cambaleantes eram o seu único sinal de vida – tivesse ele tempo para testamentar que, aposto eu, da mente turva não lhe teria fugido tal lembrança. Entretanto, e para que de honroso companheirismo não seja mesquinho este relato, convém dizer que o Vermeer permaneceu sempre a seu lado. Pouco podia fazer naquelas circunstâncias, é certo, mas ele ali permaneceu sem arredar pé do lado do Barão, confortando-lhe o espírito à deriva e limpando-lhe os suores como um bom cristão. Contudo, e para que a verdade dos factos perdure impoluta, devo também fazer referência ao alma negra que, provavelmente tendo-se lembrado não ter rolha por perto para servir de tampão às goelas do Barão de onde S. Gregório fazia aparições a cada trinta segundos, se propôs enraba-lo de forma a tratar o mal pela raiz. E por ali andou ele durante algum tempo, de mansinho e à socapa, como uma pega a chocar os ovos, treinando os gestos, à espera de um descuido ou cuidando de apanhar o Barão desprevenido e de gatas para lhe administrar a terapêutica fatal. Tal nunca chegou a acontecer por prudência do destino e vigilância atenta.

E o cabritanço lá amainou porque mais não havia para expurgar. A tisana dos nossos anfitriões alcançou o seu efeito calmante, e o Barão alcançou pé firme depois da tormenta: resgatado das trevas onde deixou suores e alguns quilos de intestino, restou-lhe ordenar aos joelhos quase vergados pelo esforço que subissem as escadas e o atirassem para o enlevo dos lençóis. Deixamo-lo entregue ao merecido repouso já a aurora rasgava pelos quintais de Revenga adentro. O rescaldo dessa noite memorável fez-se na cozinha, em silêncio contido, para não incomodar o Barão, pois, naquele momento, até um pau de cera apagado era mais viçoso.

Há uma semana atrás, à mesa com dois leitões e por ocasião da visita dos nossos amigos bascos a Coimbra, confessava-me o Barão quando foi recordado o incidente:
- Cum caralho, havia de me ter calhado logo a mim! Hão-de passar anos e séculos que desta nunca mais me hei-de livrar…!

Pois não, meu caro Barão, lá nisso estás tu certo. Em Outubro voltaremos a Revenga e com um pouco de sorte talvez calhe a outro, quem sabe - porque nunca é demais esperar uma cereja no topo do bolo. E até lá, que Nosso Senhor nos livre do fastio e nos guarde do cabritanço.

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