02/07/07

Grandes Vilões - II, por Mangas

O Deus Máquina

Hal 9000, “The Killing Machine”, de 2001 – Odisseia no Espaço (Stanley Kubrick, 1968). Topa tudo à sua volta por um olho-câmara, tem uma voz doce e em timbre quase feminino, macia, segura, confiante e personalizada em contraste com o tom monocórdico e paradoxalmente mecanizado dos astronautas. Possui faculdades que lhe permitem fazer o reconhecimento de vozes e de rostos, interpreta e verbaliza emoções, aprecia arte, racionaliza e ainda consegue ler à distância e em silêncio absoluto o que dizem os lábios da tripulação. Assume-se como uma entidade viva e imprescindível, aspira à eternidade, tem medo da morte como o Barão de calzotes, se erra, não errou!, teimoso como um burro!, e quando os astronautas decidem desligá-lo porque efectivamente ele meteu as patorras no engano, decide matá-los de forma a auto preservar-se. Consegue-o parcialmente, Dave o sobrevivente vai-lhe deslizando a memória e Hal vai-se encolhendo e acobardando, primeiro recomenda um comprimido anti-stress a Dave, depois já assume que teve recentemente umas “poor decisions” e com a perda contínua de memória emerge-lhe o medo: “Im afraid Dave. My mind is going. I can feel it.” O processo de humanização é completo quando Hal completamente marado da mioleira começa a cantar Daisy Bell antes de se apagar. Moral da história, ou, hipótese 1 de 1000 conclusões monolíticas sobre 1 das 1000 questões/propostas de 2001-Odisseia no Espaço: a máquina infalível, incapaz de qualquer erro ou informação distorcida comprometeu uma missão e custou a vida a quase uma tripulação inteira. Fuck Hal! E viva Kubrick que fez uma obra-prima que há-de sobreviver a 2001 Hals!


The Bitches

Enfermeira Ratched, de Voando Sobre Um Ninho de Cucos (Milos Forman, 1975). Esta cabra frígida transmite o calor humano de uma guilhotina aguçada e tem a sensibilidade para o metier de um cobrador de impostos endividado: seria mais fácil descascar tremoços com as unhas dos pés dos que lhe arrancar um sorriso franco e aberto. Do piorio! Forman não a “desenvolve” fora da instituição psiquiátrica onde diariamente se entretém a esmagar os espíritos perturbados dos pacientes, mas não nos é difícil deduzir que vive sozinha com um gato arisco e escanzelado, que tem à cabeceira a biografia de Josef Mengele e não é violada desde o baile de finalistas do Liceu. Vestida de branco asséptico durante o dia e de negro-luto quando sai do hospício, esta carcereira é na realidade uma fria e implacável castradora de mentes, uma silent-killer que ritualiza a pasmaceira demencial e o protocolo dos comprimidos para manter os malucos debaixo das garras escondidas, em controle ditatorial, como zombies inofensivos. Randle Patrick McMurphy - fabuloso Jack Nicholson! – é a lufada de ar fresco que ali chega e ameaça o seu território: traz consigo o saudável pecado de irreverência e custa-lhe vergar a espinha à tirania. No final, até mete dó como a Enfermeira da Stasi lhe destrói corpo e alma com electro-choques.

A Enfermeira Annie Wilkes, de Misery (Rob Reiner, 1990). Paul Sheldon, o escritor, tem o azar de se despistar por uma ribanceira abaixo e cair nas unhas da sua maior fã-nática – uma enfermeira retirada após condenação pela morte de bebés recém-nascidos. Por aqui se percebe o calibre do bicho. Mas a cabra instável tem o isolamento das neves a seu favor e faz-lhe a vida negra nos meses que se seguem. Como prova do seu amor e admiração oferece-lhe uma cama em quarto armadilhado para recuperar das múltiplas fracturas nas pernas, e a exigência de “ressuscitar” a heroína Misery Chastaine no capítulo final da novela já publicada. Para o ajudar na tarefa, oferece-lhe alguns incentivos: começa por o obrigar a queimar o manuscrito do seu próximo livro por não ser mais um da série pulp-Misery, encharca-o de drogas e sedativos para o manter sob controle, quando se chateia a sério injecta-o com um veneno que o põe a dormir até ao dia seguinte, esconde-o na cave enquanto dá cabo do velho Xerife que lhe bateu à porta na pista de Paul, e dá-lhe duas valentes trancadas de marreta nos tornozelos de forma a partir-lhe as tíbias novamente e impedi-lo de se escapar daquela casa de horrores. A adaptação para cinema tem como base o romance homónimo de Stephen King. O filme transpira um clima de terror psicológico e encurralamento de quem está a ser coagido, mas que se sente ainda capaz de contrariar a condição e a tortura física a que é sujeito. Kathy Bates tem uma actuação notável e assustadoramente realista. Ganhou o Óscar.


Acelerados, Sem Escrúpulos e Retorcidos

O Sargento Barnes, “A Cascavel”, de Platoon, merece constar das minhas notas, não pela insubordinação, mau feitio, belicosidade, sobranceria para com os superiores hierárquicos nem, basicamente, por ter sido enxertado em corno de cabra. Com algum esforço, também posso ser condescendente com as atrocidades que incitou e executou na aldeia vietnamita, e até posso olhar para o lado com a decisão de fazer integrar miúdos sem baptismo de fogo em missões de alto risco e baixíssimas probabilidades de sobrevivência: carne para canhão. Carne fresca para canhão. Caramba, estamos no Vietname - condenar um tipo destes, pela irracionalidade destes actos, seria como oferecer a um caçador de domingo uma inscrição na Sociedade Protectora dos Animais em plena época de caça aos tordos! Do que Barnes não se safa e nunca poderá alguma vez ser absolvido, é o ter assassinado Elias para escapar ao tribunal militar. Por isso Barnes simboliza muito mais do que o homem atirado para a selva das trincheiras, do que o comandante de pelotão. Barnes é a guerra, é a barbárie, é a bestialidade, é o quarto cavaleiro que se esqueceu do inimigo comum e comete o mais hediondo dos crimes contra o irmão de armas e o assassínio de Elias é a descida ao inferno para quem sempre lá esteve. “Vocês fumam essas merdas para tentar esquecer a realidade. Eu não preciso. Eu sou a realidade.” in, Platoon de Oliver Stone, 1986.

Noah Cross, “O Sórdido”, de Chinatown (Roman Polansky, 1974). Fabulosa incursão de Polansky no policial negro. John Houston bigger than life num papel da dimensão da Califórnia que governava – desde o Pacífico até aos laranjais do deserto. O mal. A personificação imensa do mal em todas as suas formas de grandeza. A corrupção. O poder. O dinheiro que compra em pé de igualdade polícias e detectives. O crime que não olha a meios para derrubar obstáculos. Ter a cidade nas mãos, e a justiça na algibeira entre um maço de notas. Noah Cross é tudo isto. É o fascínio, e não tem escrúpulos alguns. É o Todo Poderoso e o homem mortal. É, sobretudo, e sem redenção, a face mais negra e obscena do pecado sob a forma de incesto com a filha adolescente do qual nasceu outra filha/neta. Tenebrosos segredos escondem-se no sangue de homens como Noah Cross. Carregam-nos como uma cruz que erguem para crucificar os que lhes tropeçam no caminho.

Norman Bates, “O Embalsamador”, de Psycho (Alfred Hitchcock, 1960) – Palavras para quê? Todos viram o filme mais do que uma vez, todos sabem do que falo. Dêem-lhe um canivete para limpar as unhas e um duche com cortinados que este menino consegue pintar uma tela à Jeronimus Bosch. E nem se vê, nem se dá por ele – dessa lendária sequência ficam para a posteridade apenas! as navalhadas num ritmo frenético, os sons arrepiantes de violinos desafinados, como laminas aguçadas contra ferro velho, e o sangue levado a fio grosso pelo remoinho da água que desaparece ralo abaixo. Confesso-vos que a cena final de Norman Bates na cela, encarnando a mãe, pensando como a mãe, falando pela voz da mãe acerca da sua inocência, sempre me causaram iguais calafrios.

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