09/07/07

Grandes Vilões - Final, por Mangas


A Nata

John Doe, “O Mensageiro”, de Seven – 7 Pecados Mortais, (David Fincher, 1995). “Todos os dias nós vemos pecados mortais em cada esquina de rua, em cada casa, e toleramos que isso aconteça. Toleramos porque é comum, é trivial. Toleramos de manhã, à tarde e à noite. Bem, não mais! Estou a estabelecer um exemplo. E o que eu fiz será questionado, estudado e seguido… para sempre. “

Pouco seria o mais que se dissesse da excelência alcançados por David Fincher com Seven. Absolutamente brilhante em todos os aspectos primordiais – argumento, cinematografia, interpretação, efeitos visuais. É um filme inovador, moderno, clássico, negro e revolucionário. E por aqui nos ficamos. Sobre John Doe teríamos de ler página por página e descodificar desenho por desenho cada um dos seus 2000 blocos de apontamentos - talvez, então, ficássemos com uma ideia aproximada de quem ele é, da sua personalidade, do que o fez correr e chegar onde chegou. Sim, porque a obsessão religiosa e o Paraíso Perdido são curtos para fazer compreender a matança glorificada e culminada com a queda sacrificial. John Doe é um murro no estômago do espectador. A Ira que se abate sob as nossas cabeças em golpe de machado. O pecado é um pretexto de redenção e a insanidade não explica tudo: John Doe é a terrível probabilidade do mundo lá fora.

Hannibal Lecter, “O Incompreendido”, aka “O Canibal”. “Pensa para ti mesmo que cada dia é o teu último e a hora que não aguardas com ansiedade, chegará como uma surpresa. Quanto a mim, quando quiserem uma boa gargalhada, encontrar-me-ão em boa condição, gordo e macio, um verdadeiro suíno da vara de Epicuro.” - Horácio, citado por Hannibal Lecter, in O Dragão Vermelho, (Brett Ratner, 2002)

A catalogação de Hannibal à categoria de monstro é abusiva, simplista, redutora e reflexo de uma classificação completamente desorientada e estereotipada. Thomas Harris não teve culpa que o seu personagem tivesse sido mal interpretado e restou-lhe invocar o papel de advogado de defesa do Canibal conferindo-lhe um passado que, por si só, estabelece as causas e desenvolve as razões que explicam o Dr. Lecter, e até onde é possível explicar a natureza do seu desvio comportamental. Em "A Origem do Mal", o jovem Hannibal não é mais do que um anjo vingador que, um após outro, cozinha os nazis que lhe comeram a pequena irmã na sopa; nada mais confortável e beatificante para o leitor - para ele foi apenas o começo, porque lhe tomou o gosto! E daí? O rim salteado com molhos de trufas de um crápula castigado não perde sabor ao lado de um rim salteado com molho de trufas de uma vitela charolesa. Quem lidar bem com isto, perderá, por legitimidade, o direito posterior à condenação. A Larousse Gastronomique na qual se inspira Hannibal para efeitos culinários confere-lhe o elán estético de um connoisseur, a demanda em busca do Graal pelo excelso apuramento de hors d`oeuvres, amuse-bouches e outras excelências de paladares e sensações para eleitos. A matéria-prima que usou, essa, aliviou a humanidade de males menores e encolheu o espaço de manobra à mediocridade circundante. Que não haja equívocos: o Dr. Hannibal Lecter nunca os despachou sem critério. De uma forma ou de outra, todas as suas vítimas pisaram o risco, ameaçaram o seu território ou violaram os seus dogmas. Desde o balofo e incompetente flautista da Royal Baltimore Philarmónica que desafinou o intermezzo de uma peça clássica, (levante-se o primeiro que achar tamanha contrariedade fruto de tão grande abandalhamento ser de esquecimento ou perdão!), passando pelo Inspector Pazzi perseguido pelos interesses mesquinhos da ganância e do lucro fácil casado com uma bella italiana que tinha metade da sua idade e o dobro do tesão, ou pelo execrável Director de Prisão em busca da fama e parangonas, até ao milionário pedófilo e violador da irmã, Mason Verger – a este matou-o a duplicar: primeiro “lançou-o” aos cães e anos mais tarde, aos porcos esfomeados. A Barney, o enfermeiro, sempre retribuiu a gentileza de trato e explicou-lhe que só comia os insolentes; com Clarice estabeleceu um quid pro quo de jogos mentais e encantamento – achava-a charmosa e sincera. Este psiquiatra forense, descendente por parte do pai do Conde e Senhor da Guerra "Hannibal the Grim" e por parte da mãe da nobre casa dos Visconti Hannibal, é um homem requintado de gosto e avaliação sensorial, é conhecedor e amante das artes, dotado de um intelecto prodigioso. É também uma gourmier de eleição e capaz do mais nobre gesto de altruísmo quando opta por amputar um punho de forma a poupar o de Clarice. Condene-o quem for capaz, eu absolvo-o. Por todas as razões e mais uma: só muitos anos depois é que ficou a saber que também comeu da tal sopa.

Michael Corleone, “ O Príncipe Negro”, de The Godfather Trilogy, (Francis F. Coppola, 1972-1990). Já em tempos escrevi aqui sobre os Corleone. Michael é um dotado: nasceu para aquilo. Tomou as rédeas do poder após a morte de D. Vito e manobrou-as com luva de ferro numa mão e massacres cirúrgicos na outra, subvertendo todas as regras, impondo a lei da aniquilação pura a rivais e inimigos, com despotismo, sem prisioneiros. Da Sicília a Las Vegas, Michael foi um César, um herdeiro dos Bórgia, um fratricida, um pai ausente, um marido mentiroso, um Rei que no final apregoava “We sold all the casinos!” para aplacar a consciência e, pela corrupção, comprar a absolvição do Vaticano. Michael Corleone, no mesmo instante que aceitava a renúncia do pecado pelo baptismo do filho da irmã Connie, mandava executar os Dons das Cinco Famílias: Tessio, Barzini, Tattaglia, Cuneo, e Don Stracci – “Never let anyone know what you are thinking.” Bastaria esta sequência memorável do The Godfather, este banho de sangue e água benta, de absolvição e condenação, este sublimar simbólico de ascensão e queda, para elevar Coppola ao panteão dos imortais. Mas, Coppola foi ultrapassado por Michael. Foi o Padrinho quem escreveu esta página, quem escolheu este momento, quem decidiu elevar-se à magnificência absoluta de um Todo Poderoso e tomar a seu mando a imortalidade da vida e a transitoriedade da morte. Para mim, Michael Corleone é o maior de todos. Só Hannibal Lecter se lhe pode equiparar em grandiosidade e carisma, embora num registo muito mais solitário e individualista. Ambos pertencem a outra galáxia dimensionada entre a dádiva da bênção e o fardo da maldição.

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