06/03/08

Olhares-Voodoo, por Caixa de Óculos

Esta questão deu-me que pensar: quando se faz um retrarto de alguém é mais fácil se conhecemos ou até se seomos amigos dessa pessoa ou se ela é, para nós, um perfeito desconhecido?
Quando se faz um retrato de alguém - que não tem que ser uma foto, pode ser escrever sobre essa pessoa, por exemplo, pode ser filmá-la, etc - o que é que pretendemos? Apanhar-lhe um bocado da alma? A arte do retrato - escrito, falado ou pintado- será uma espécie de sucedâneo do Voodoo? É pelo menos assim que pensa aquela gente dos países africanos ou árabes que não se deixam fotografar. Literalmente, receiam que lhes aprisionemos a alma, que lhes roubemos um pouco deles.


A questão segue esta linha de entendimento, parece-me. É natural que quem conhece muito bem a pessoa fotografada fique com a ideia de que o retrato nunca é fiel, de que a «alma» daquela pessoa nunca está ali naquele bocado de papel. Quando não conhecemos a pessoa retratada essa sensação não existe, simplesmente, porque não temos a sensação de que a conhecemos bem para podermos confrontar a imagem fotográfica com a imagem que temos dessa pessoa. Por isso o retrato de um desconhecido parece-me sempre mais fácil, deste ponto de vista: ela nunca é ensombrado pelo meu «conhecimento» da pessoa. O desconhecido pode ser o cliché, aquela rapariga magra e alta pode ser a Angelina Jolie se eu não a conheço; pelo contrário sei sempre que a minha amiga Antónia não é a AJ, ainda que se possa parecer com ela. Daí a sensação de que a dificuldade é maior quando conhefcemos a pessoa. No fundo o eu-fotógrafo percebo, nese caso, que, ao contrário do que pensam os árabes e os africanos que me fogem da câmara, nunca lhes apanho a alma.


Mas esta questão só seria mais completamente respondida se se pronunciassem os modelos. E eles? Que ideia têm, estão em maior «risco» perante o fotógrafo conhecido ou desconhecido? Eis o que seria interessante saber... Sabemos todos porque já todos fomos e somos fotografados que há uma espécie de pudor em saber que a nossa imagem é pertença de olhos desconhecidos. Não me faz impressão a foto em que pareço um sapo quando ela não sai de um restrito núcleo familiar - eles já sabem que eu sou um sapo, em certos momentos da minha vida, e eu também. Mas se essa foto em que eu sou um sapo sai desse núcleo restrito, esse facto perturba-me, como se essa verdade da minha alma fosse de repente posta a nu perante olhos impuros,como se fosse surpreendido na retrete. A net é um bom exemplo disso: os hi 5 misturam desgraçadamente o registo privado/íntimo com o registo público e o resultado é a sensação de devassa. Os hi 5 Porcas/os exploram essa ambiguidade: a foto que num registo privado e restrito era sexy torna-se, subitamente, ridícula, obscena, quando não pornográfica.

Eis-nos assim chegados à velha questão do olhar: o olhar do outro rouba-nos sempre aquilo que somos, dizia o velho míope Jean-Paul Sartre. Sartre foi o filósofo que melhor tratou este tema. No seu monumental L' Être et le Néant chega a comparar esse terrível poder do olhar alheio ao olhar de Medusa que nenhum ser vivo podia suportar sem ficar petrificado. O Inferno são, pois, os outros, como dizia o filósofo. O inferno não é um mundo de labaredas e monstros inomináveis a torturarem pecadores mas um simples quarto de hotel onde eu estou fechado sem remissão para toda a eternidade com mais algumas pessoas cujo olhar não controlo e que têm o poder de me perscrutar eterna e fatalmente.

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