15/12/04

Elogio do Mau Gosto, por Automotora

Um dia, aluguei no meu clube de video um filme de um realizador finlandês. Qualquer coisa assim, não me lembro bem. A partir daí, fiquei lá conhecido como “o senhor que leva filmes alternativos”. Sou um alternativo, portanto. Aquela espécie que vai tirar filmes da Atalanta à ponta esquerda da estante do lado mais húmido e pouco frequentado dos clubes de video. A verdade é que raramente tenho vontade de ir para aqueles lados, mas o empregado, de cada vez que lá entro, insiste em conduzir-me para lá, enquanto vai esfregando as mãozinhas, numa solicitude comovente e irritante. Começa pelo ponto de não retorno: “quer uma sugestão para um filme alternativo?” seguindo-se o fatal “chegou agora este. Não sei se conhece”. Este “não sei se conhece”, remete sempre para “filmografias”. A “filmografia” não é filmes, como diria o julinho; é “filmografia”, cinema feito em países de neblinas eternas para além do Danúbio (esses países são antes de mais um estado de alma, como se sabe). Mas então, como ia dizendo, acontece que me vejo de repente com o filme na mão. Olho então para o chão, e começo a desfiar uma ladainha ridícula e cobarde: “Olhe, eu hoje estou com um bocado de dor de cabeça, estou cansado, a vida corre-me mal, sofro de stress pós traumático, o iraque não se democratiza, a vida é dura e então quero levar um filme que não faça pensar muito. O amigo desculpe a desfeita, eu tenho muita pena, não é por mal, mas eu hoje vou levar o Mansão Assombrada III”. O empregado, pesaroso, lá sente obrigação de dizer “ah, sim, é um clássico, sim, sim…”. “Mas qual clássico, qual caralho? É só um filme, seu imbecil!”, penso eu, irritado. Mas lá vou dizendo, com humildade, “pois, desculpe… eu juro que para a próxima levo o Quintal das Cerejeiras em Flor, este grande clássico da filmografia da Letónia”. Feito o negócio, saio porta fora, a sentir nas costas o olhar desiludido do empregado. Fico então paranóico e imagino-o a ligar para os amigos: “ele hoje levou o Mansão Assombrada III, passa palavra”. Coincidência ou não, no fim-de-semana seguinte vou comprar peixe à praça e a dona Alzira olha-me com o cenho carregado e engana-me no peso do pargo. É claro que como sou boa pessoa, (além de cobardolas) uma vez em cada dez dias levo um filme alternativo. Lá vejo. Mas acontece que na maior parte das vezes quero é levar filmes, não sei como diga isto, de “suspanse”, daqueles que aparecem no Expresso com o seguinte aviso desprezivo: “para quem gosta”. Nem bom, nem mau, mas “para quem gosta”, que os vermes não têm escala de valores. Mas chegados aqui, atenção para o seguinte: Há os vermes que chegam aos clubes de video e perguntam: “chegou algum bom filme de suspanse?”, como se dissessem “tens hoje aí tintol do bom?”. E vai o empregado à pipa e tira um carrascão espumoso. E há os vermes, como eu, que não perguntam ao empregado porque já levam lista de compras, feita logo ali à porta da loja, com base nos cartazes grandes da montra. Mas não sou um verme todos os dias, é preciso que se note. Por exemplo, no outro dia, por acaso noutro clube de vídeo, vi um filme dos Monthy Python, mesmo junto ao balcão. Passei-me, claro. “Olha, tem aqui Monthy Python?!”. E então aconteceu o inesperado: o empregado revira os olhos e olha-me assim como se tivesse reconhecido um irmão da maçonaria. “Conhece? Você é o primeiro que aparece aqui a falar dos Monty Python! É fã?” Élá… pensei eu… se caio nesta, vou ser obrigado a levar também a trilogia do primo mais velho do Kusturica. Reajo então com grunhice marialva: “Eu? Eu ia precisamente perguntar que raio de título é este com dois ipsilons! Tem cá, cof cof, o Massacre no Texas?” Fiquei bem servido na mesma e no dia seguinte corri para a Worten, comprei os gloriosos malucos e fim da história. Um gajo para ter descanso, às vezes é melhor fazer-se de burro.

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