Perdi uma série de fotografias obtidas num domingo agora duas vezes pretérito. Na impossibilidade de reavê-las, resta-me tentar, hoje e aqui, revelá-las pela palavra.
Uma delas era de duas mulheres quase tão jovens quão pálidas. Apontavam a ninguém quatro olhos dotados da clarividência azul-cosmos dos cegos. Eram cegas, tinham seios perfeitos e apresentavam-se muito bem vestidas: talvez por serem manequins e se encontrarem expostas na montra de um pronto-a-vestir.
Outra das fotografias não conservava gente, fingida sequer, à superfície da eternidade que toda a foto ilude ser. Era de um cão dormindo entre as linhas de um caminho-de-ferro desactivado. Só eu sabia que o cão realmente dormia, que por ali comboio algum passava ainda. Um observador pensaria talvez no atropelamento mortal do cachorro.
A terceira foto (mas porquê “terceira”?; por que ordenamos ainda o que se perdeu?) revelava uma mansarda eriçada de vasos de sardinheiras. Entre as flores, assomava uma cabeça de mulher cuja maior evidência era a desolação da pobreza. O olhar da mulher, recordo-o bem, fixava directamente a minha objectiva, pelo que me é lícito assentar que foi ela a fotografar a própria fotografia que eu haveria de perder.
Lembro-me de ter interrompido o trabalho desse domingo duplamente irrecuperável para tomar um vermute e munir-me de cigarros num café de reformados que escutavam o relato de um Belenenses-Atlético para a Taça. Sem que o notassem, fotografei dois dos velhos à contraluz da montra pontuada de cocó de moscas, prospectos de bailes e editais venatórios.
Já cá fora, a grande tenda solar estava segura ao chão por estacas de árvores e carros estacionados para sempre. Cheirava ao que os domingos cheiram: a espera e a ruas vazias.
Fotografei de costas uma mulher de chapéu que caminhava com a graça involuntária de um charlot diurético.
Fotografei um telefone preto dos antigos, dos de discar. O telefone tocava, ninguém vinha atender, pareceu-me que até o som ficou gravado na fotografia. O som e a ausência de atendimento: ambos impressos na película perdida.
Foi um domingo de roubar luz, esse domingo. Trabalhei muito, depois devo ter guardado o rolo no bolso de um casaco cujo forro se me desforrou, como às vezes a vida se desforra de quem a não vingou.
O que vos ainda não revelei (verbo de fotógrafo) é isto: houve uma fotografia que não tirei nesse dia. Um par beijava-se na paragem do autocarro. Não um desses beijos lambidos, sôfregos, desses de dorsos linguais expostos ao basbaque dos velhos e à má-língua das velhas. Era um beijo bem posto, breve e simbiótico, um beijo dado por aquilo a que chamamos alma quando se usa a boca sem ser para falar ou comer. Não era coisa de adolescentes, mas um beijo claro entre um homem já maduro e uma mulher serôdia já. Não tirei o retrato dessa eternidade mínima.
E curiosamente, de todas as fotografias que tirei e perdi, essa foi, não a havendo tirado, a única que pude guardar para, hoje e aqui, vo-la revelar.
Uma delas era de duas mulheres quase tão jovens quão pálidas. Apontavam a ninguém quatro olhos dotados da clarividência azul-cosmos dos cegos. Eram cegas, tinham seios perfeitos e apresentavam-se muito bem vestidas: talvez por serem manequins e se encontrarem expostas na montra de um pronto-a-vestir.
Outra das fotografias não conservava gente, fingida sequer, à superfície da eternidade que toda a foto ilude ser. Era de um cão dormindo entre as linhas de um caminho-de-ferro desactivado. Só eu sabia que o cão realmente dormia, que por ali comboio algum passava ainda. Um observador pensaria talvez no atropelamento mortal do cachorro.
A terceira foto (mas porquê “terceira”?; por que ordenamos ainda o que se perdeu?) revelava uma mansarda eriçada de vasos de sardinheiras. Entre as flores, assomava uma cabeça de mulher cuja maior evidência era a desolação da pobreza. O olhar da mulher, recordo-o bem, fixava directamente a minha objectiva, pelo que me é lícito assentar que foi ela a fotografar a própria fotografia que eu haveria de perder.
Lembro-me de ter interrompido o trabalho desse domingo duplamente irrecuperável para tomar um vermute e munir-me de cigarros num café de reformados que escutavam o relato de um Belenenses-Atlético para a Taça. Sem que o notassem, fotografei dois dos velhos à contraluz da montra pontuada de cocó de moscas, prospectos de bailes e editais venatórios.
Já cá fora, a grande tenda solar estava segura ao chão por estacas de árvores e carros estacionados para sempre. Cheirava ao que os domingos cheiram: a espera e a ruas vazias.
Fotografei de costas uma mulher de chapéu que caminhava com a graça involuntária de um charlot diurético.
Fotografei um telefone preto dos antigos, dos de discar. O telefone tocava, ninguém vinha atender, pareceu-me que até o som ficou gravado na fotografia. O som e a ausência de atendimento: ambos impressos na película perdida.
Foi um domingo de roubar luz, esse domingo. Trabalhei muito, depois devo ter guardado o rolo no bolso de um casaco cujo forro se me desforrou, como às vezes a vida se desforra de quem a não vingou.
O que vos ainda não revelei (verbo de fotógrafo) é isto: houve uma fotografia que não tirei nesse dia. Um par beijava-se na paragem do autocarro. Não um desses beijos lambidos, sôfregos, desses de dorsos linguais expostos ao basbaque dos velhos e à má-língua das velhas. Era um beijo bem posto, breve e simbiótico, um beijo dado por aquilo a que chamamos alma quando se usa a boca sem ser para falar ou comer. Não era coisa de adolescentes, mas um beijo claro entre um homem já maduro e uma mulher serôdia já. Não tirei o retrato dessa eternidade mínima.
E curiosamente, de todas as fotografias que tirei e perdi, essa foi, não a havendo tirado, a única que pude guardar para, hoje e aqui, vo-la revelar.
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