20/04/06

Pedreiros-livres, por Zé Carpinteiro

Sabe-se pouco da Maçonaria. Pode-se falar mal da Igreja, do Benfica, da tropa, do Presidente, dos deputados, de tudo, menos da maçonaria. Não há humorista que se atreva. Lembro-me que o Herman fez uma vez um número com grão-de-bico, avental, etc. As reacções foram más e não voltou ao tema. É preciso respeitinho. Quem são os maçons? Ninguém sabe, excepto em relação aos que se confessam, que são poucos. Vivemos entre a suspeita e o boato. Não havendo perseguições, não estando clandestinos, porque é que se sabe pouco sobre a maçonaria e os maçons? Porque, primeiro de tudo, a própria natureza secreta, ou discreta como eufemisticamente os maçons se referem a ela, da instituição, é desde logo um obstáculo. Depois, porque a própria história maçónica, particularmente quanto às origens, é algo nebulosa ou misteriosa e, finalmente porque o segredo, contrariamente aos que os próprios afirmam, é essencial a uma organização elitista que gere influências e tece cumplicidades em estratégias transversais.

Quanto às origens, há quem as faça remontar ao tempo do rei Salomão! Não discuto, mas cabe referir dois aspectos: por um lado a mitificação das origens é um procedimento vulgar em todas as instituições, organizações ou nações. Por este processo – afirmando uma raiz remota – se pretende consagrar o carácter intemporal e, por isso, indestrutível de uma dada entidade. Basta recordar como os genealogistas da Restauração faziam remontar a ascendência de Afonso Henriques aos tempos bíblicos. O propósito está claro. Por outro lado, nota-se um judaísmo patente nesta organização. Também isto me parece explicável, pois que muito frequentemente o judaísmo e os judeus aparecem associados à maçonaria. Ainda contemporaneamente o chefe da comunidade judaica portuguesa, Joshua Ruah, se definiu como maçon e amigo do João Soares, maçon assumido, naquela polémica sobre o ouro judaico. A razão da associação entre judeus e maçons deve relacionar-se com a convergência estratégica achada pelos judeus que terão visto na maçonaria uma forma de resistir ao clericalismo, persecutório e totalitarista, do absolutismo. Claro que encontraram no racionalismo laico e universalista da maçonaria um aliado ou, se preferirmos, um espaço óbvio de inclusão e de combate político-social.

Se é discutível a filiação da organização nos tempos salomónicos, já não será tanto encontrar as raízes remotas da maçonaria nas corporações medievais, particularmente nos pedreiros. A própria designação (maçon ou pedreiro-livre, como também se designam) permite admitir essa possibilidade. E é crível. Os pedreiros medievais eram donos de um saber indispensável e prestigiado. Adquiriram liberdade individual e de pensamento à custa desse estatuto num tempo em que a sociedade se organizava organicamente num modelo estático e sacralizado, definido em ordens. Os maçons escaparam à rigidez asfixiante dessa hierarquização social à custa do seu saber especializado e indispensável ao clero e aos senhores feudais. Daqui se retira algo de óbvio: quem adquire um privilégio de liberdade numa sociedade onde ela não existe, tende para a conservação do saber que lhe garante esse estatuto, evitando a propagação da arte que dominam (se o saber se generaliza, o benefício esvai-se), organizando-se em corporações que regulam a actividade, dirimem conflitos, limitam o acesso à profissão e transmitem esses conhecimentos sob a forma de segredo profissional (ordens profissionais, diríamos hoje). Talvez que aqui tenha nascido a natureza secreta, elitista e corporativa da maçonaria. Ainda hoje, recrutam preferencialmente profissionais liberais, bem como indivíduos que detenham um estatuto socioprofissional relevante, de tal modo que a sua colaboração possa ser útil em termos de influência social e intervenção política. Um funcionário público está limitado na sua intervenção pelas regras da hierarquia administrativa (Salazar quando proibiu a maçonaria em 1935, aditou à proibição a obrigatoriedade de todos os funcionários públicos jurarem solenemente no acto de posse não pertencerem a nenhuma organização secreta), da mesma maneira que um trabalhador não especializado não apresenta qualquer utilidade.

A maçonaria começou no entanto a ganhar grande destaque político no século das Luzes. O racionalismo crítico, personalista, universalista, terá derivado do espírito maçónico ao mesmo tempo que definia as regras da sua organização. Creio datarem desta época os documentos reguladores da maçonaria, a constituição de Andresen. Voltaire e os enciclopedistas, ou os iluministas portugueses, com Pombal à cabeça, eram maçons. Mozart também compôs música maçónica. É o século da laicização da ordem social e política, é o século da afirmação do espírito burguês empreendedor, laico, anticlerical, racionalista e individualista. A Revolução Francesa adivinha-se, em grande parte foi obra de maçons, tal aliás como a independência da América.

Distinguem-se, desde estes tempos, duas tendências maçónicas: o rito escocês e a franco-maçonaria, derivada da Revolução, particularmente do partido dos jacobinos. Se a Inglaterra se pode gabar de nunca ter tido um regime absolutista, de ter conservado um regime liberal e parlamentar, em grande parte o deve à tradição das suas elites maçónicas, pois que sempre se constituíram como obstáculo à implantação de uma tirania régia, salvaguardaram o regime parlamentar, evitaram a clericalização do regime, fugiram à alçada da autoridade papal e propugnaram por uma liberdade de iniciativa e de pensamento que não só manteve a vitalidade social e económica da Inglaterra como preservou as elites e as impulsionou, permitindo que a Inglaterra se afirmasse como a grande potência mundial no séc. XIX.

A influência da realidade inglesa na Revolução francesa é óbvia. A franco-maçonaria tomou, porém, rumo diferente: tem um teor anticlerical, jacobino, intervencionista, político-partidário e é menos especulativa. O teísmo do rito escocês é, para estes jacobinos fanáticos, substituído por uma convicção profunda que associa a religião e a Igreja ao obscurantismo. A situação distinta, entre o processo francês e o inglês, também assim o forçou. A franco-maçonaria tomou a dianteira da Revolução, cometeu excessos, e por isso angariou ódios, tendo-se formado uma verdadeira lenda negra acerca da maçonaria, em grande medida infundada. Chegou a falar-se da grande conspiração, de um grande complot (abade Barruel) para derrubar a Igreja e a aliança entre o Trono e o Altar, relação que era apresentada como o fundamento da civilização!

A verdade é que as invasões francesas disseminaram o ideal maçónico por toda a Europa. Em Portugal, a francofilia deve entender-se em correlação com o ódio ao inglês, a Beresford particularmente. Gomes Freire de Andrade combateu com Napoleão na frente russa, veio, era maçon, ensaiou a primeira tentativa de implantação de um regime liberal e acabou no cadafalso, sentenciado por Beresford. Ganhou-se um mártir e curioso é ver como ainda hoje muitos maçons adoptam o seu nome como nome simbólico (o professor Oliveira Marques, também ele maçon, tem um bom dicionário da maçonaria).

Durante o processo liberal não há praticamente um único político de destaque que não fosse maçon. A revolução de 1820 nasce inclusivamente numa loja maçónica, ou algo assemelhado, a junta do Sinédrio do Porto, presidida pelo Manuel Fernandes Tomás (juiz) e onde se contavam juristas (os juristas são hoje o que os pedreiros foram outrora), militares, financeiros, médicos, professores, etc. A união das elites numa organização deste género gera cumplicidades e estratégias que se sobrepõem à orgânica do aparelho de Estado. Um regime que tenha as suas elites sujeitas a uma estrutura clandestina e conflituosa com a orgânica do Estado, está condenado. Em 1820 não se disparou um tiro! Lógico! Destes processos usados nasce a imagem conspiratória, subterrânea, secreta da maçonaria. Mais tarde algo de semelhante se repetiria com a Carbonária durante a implantação da República. Os regicidas de 1908 eram carbonários, dissenção da maçonaria que adoptou meios de intervenção directa e violenta, aliás reprovados publicamente por muitos maçons. Na república era quase tudo maçon, foi o triunfo final. E aqui surgiu a maior crise da organização: popularizou-se! Recordo de uma vez ter lido um livro, já não recordo qual, onde se citava um empregado de balcão de um estabelecimento de Lisboa que louvava as virtudes da maçonaria dizendo como nas reuniões tratava o patrão como irmão! O caos gerado pela primeira república degenerou em descontentamento generalizado e consentiu a reacção católica e clerical. Curioso é como muitos maçons arrenegaram à maçonaria e se renderam a Salazar: Carmona é o mais citado (falou-se inclusivamente num pacto secreto entre Salazar e Carmona, um arregimentava o apoio do clero e outro domesticava as elites maçónicas), mas o mais interessante é Bissaya Barreto. Mas José Alberto Reis ou Sidónio Pais também são apresentados como traidores. Mas isto é o que os maçons não gostam de ouvir: uma parte importante das cúpulas maçónicas aderiu ao Estado Novo e ao Salazrismo. É uma verdade inconveniente, para quem gosta de fundamentar a sua identidade no amor à Liberdade. Mas é fundamentada em factos. Há contradições óbvias, mas há seguramente explicações.

A maçonaria passou à clandestinidade, e os velhos republicanos do Partido Democrático ou se exilaram, ou conspiravam. Mário Soares nasce dessa tradição republicana, laica e socialista. Embora negue pertencer à maçonaria. A candidatura de Norton de Matos foi o grande momento da oposição maçónica. Voltados os tempos da clandestinidade, a organização voltou à natureza secreta e clandestina que a define e com a qual se sente bem.

Com o 25 de Abril, readquirida a liberdade, a maçonaria evita popularizar-se, mas não pode manter-se secreta. Não faz sentido em democracia. Daí o terem escolhido o rótulo discreta. Mas a verdade é esta: ou possuem um poder de intervenção à margem do escrutínio público e isso é ilegal e ilegítimo, ou são simples associação filantrópica, o que não justifica tanto secretismo.

1 comentário:

Anónimo disse...

Nunca entendi bem sobre a Maçonaria, nem o relacionamento que isso tem como os pedreiros. É algo bastante misterioso e para algumas pessoas em particular.