08/01/04

MANGAS, por MANGAS

“Vinha passar os fins de semana a casa. Todas os sábados, às três da manhã, ele acordava com a garganta seca, levantava-se, caminhava pelo corredor escuro em direcção à cozinha e descascava uma manga sumarenta. Senti-a escorregar nas mãos, cortava-a às fatias e chupava o caroço. Depois, dirigia-se outra vez para o quarto, deitava-se com o cabeça no colo dela, besuntava-lhe o sexo com o sumo de manga, chupava-o delicadamente e só então, vinte e quatro horas depois de ter chegado, é que lhe enterrava o pénis nos lábios frutuosos. Ela, durante muito tempo, pensou que havia uma relação metafísica entre as mangas e a felicidade de uma boa foda e que, por qualquer motivo, cada homem encontraria, eventualmente, um sabor estimulante no seu fruto de eleição. O do marido, descobrira por mera casualidade, era a manga. Por esse motivo, nunca deixou que faltassem mangas lá em casa durante todo o ano. Havia subtileza naquela cumplicidade. Nunca falhava. Era troca por troca. Lavava a loiça depois do jantar, fazia-lhe companhia em frente à televisão, duas ou três perguntas triviais e outros gestos de rotina a que se habituaram à falta de melhor, apercebia-se bem que tão depressa podiam pisar a mesma terra que os separava como levantar voo um dia destes em direcções opostas, quando menos se podia supor. Retirava-se para o quarto com um beijo, despia a roupa, enfiava-se dentro do robe transparente, esperava por ele acordada, esperava o fecho da emissão, esperava o tempo que fosse necessário, adivinhava-lhe os passos na escuridão a caminho do frigorífico, pressentia o gume afiado da faca a deslizar na manga, e sentia-se a escorrer enquanto pensava naquelas coisas que iriam fazer quando ele se enfiasse na cama. Uma transacção de sabores com consentimento mútuo de ambas as partes. Ela dispunha-se a encher o frigorífico de mangas frescas e ele retribuía-lhe com estocadas sumarentas em cima e fora da cama, até ela se fartar. A fixação dele, pelos frutos, era recíproca nela pela vontade em se desarticular todos os sábados de madrugada numa espargata insaciável, deixar-se atropelar contra o soalho do chão e acordar no dia seguinte com nódoas negras por todo o corpo.
Algum meses mais tarde, fazia precisamente nesse sábado duas semanas que ela começara a ter lições de piano lá em casa, com um professor italiano, para ocupar o tempo, (incentivara-a o marido no sofá da sala sem desviar o olhar da Big Show Sic), ela foi deitar-se mais cedo do que o costume sem se despedir com o beijo habitual. Ele estranhou esta quebra no protocolo, foi espreitá-la e estranhou outra vez quando a viu adormecida. Profundamente adormecida e sossegada como não se lembrava de a ver desde que casaram. Sem perceber muito bem o que se estava a passar, dirigiu-se à cozinha, tacteou a porta do frigorífico, a luz acendeu-se e na prateleira onde habitualmente encontrava as mangas com a pele verde sarapintada de pontinhos castanhos, encontrou uma boa meia dúzia de maçãs avermelhas e carnudas.”

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