The Lady in the Lake, de Raymond Chandler
Tendo eu lá em casa duas edições diferentes da obra acima referida, nem perguntem porquê, e apanhando-me desocupado, pus-me a comparar as respectivas traduções. Para ver o que o escritor afinal queria, fui à net e a custo lá encontrei um bocado do original. Conclui então que são insondáveis e solitários os mistérios da cabeça dos tradutores. Reparem:
The Treloar Building was, and is, on Olive Street, near Sixth Avenue, on the west side. The sidewalk in front of it had been built of black and white rubber blocks. They were taking them up now to give to the government, and a hatless pale man with a face like a building superintendent was watching the work and looking as if it was breaking is heart.
(No original)
O edifício Treloar ficava e ainda fica na Olive Street, perto da Sexta Avenida, do lado poente. Por requisição do governo, andavam a levantar os ladrilhos da calçada, feitos em borracha preta e branca. Um homem macilento, de cabeça descoberta e aspecto de fiscal, vigiava a obra, que parecia despedaçar-lhe o coração.
(Tradução de Ruth Belger para Livros do Brasil, Colecção Vampiro)
Perto da Sexta Avenida, do seu lado oeste, situava-se o edifício Treloar. O passeio em frente fora construído em ladrilho de borracha preta e branca que, por ordem do governo, estavam agora a ser levantados. Um fiscal, de ar macilento e cabeça destapada, vigiava a obra, com a qual parecia não concordar.
(Tradução de Jorge Pinheiro para Biblioteca Visão, Colecção Lipton)
Chamou-me logo a atenção o facto de ambos os tradutores terem acordado tacitamente que o homem que vigiava, por ser pálido, devia ter um ar macilento. Ficou adoentado, talvez até tuberculoso, quando o problema se resumiria a alguma prolongada falta de sol ou a um recente desgosto. Ou talvez fosse simplesmente sueco. Ambos concordam também sobre as coordenadas do edifício, embora o primeiro, mais romântico, se sinta na necessidade de informar que esse é o lado onde o sol se pôe todos os dias. O segundo diz, no entanto, que o edifício “situava-se”, simplesmente, o que faz supôr que já não se situa. Terá entretanto sido demolido, ardeu, caiu, kaput. A narrativa foi empurrada para um futuro longinquo de grandes transformações imobiliárias. O narrador, o próprio Marlowe, coitado, terá também assim envelhecido cinquenta anos desde o original à segunda tradução. A tal rua é a Olive Street, como nos informa o escritor, mas o segundo tradutor, estranhamente, não lhe faz qualquer referência. Terá achado, talvez, que já não precisavamos de saber o nome da rua onde se situava o edifício defunto. Aliás, este tradutor é mesmo bastante avarento nas informações. Vejamos: enquanto no original e na primeira tradução os ladrilhos eram levantados para serem dados ao governo, na segunda eram levantados simplesmente por ordem do governo, sem se revelar se o seu destino imediato seria um armazém do governo ou o joe sucateiro. Não sabemos igualmente, nesta versão livre, qual o estado de espírito do homem que assistia à obra. Enquanto na primeira, mais fiel ao original, se informa que o pobre do homem ficou com o coração despedaçado, na segunda apenas se diz que o homem não concorda com o que vê. O leitor fica assim impedido de verter uma lagrimazinha pelo desgosto do homem. Convém ainda assinalar que nem no original nem na primeira tradução se informa qual a profissão do homem. Apenas se diz que tinha cara de fiscal de obras, seja lá o que isso for. Ora o segundo tradutor parece ter achado que se o homem tinha cara de fiscal de obras, era forçosamente fiscal de obras. Teriamos então que numa adaptação cinematográfica desta versão, o homem talvez aparecesse com farda de fiscal de obras. O pobre coitado, talvez já a gozar a reforma, que talvez tivesse ali parado por acaso, a caminho do Central Park para ir dar comida aos pombos, ficou assim nomeado para uma tarefa bem chata. Pensando bem, talvez o homem nem aparecesse de todo em qualquer filme. Não me lembro já bem do resto do livro, mas acho que o papel do homem se resume a estar parado naquele parágrafo com cara de parvo. A última vez que ninguém o viu, passada uma hora e meia hora, estava ele a ser comido por pombos no Central Park. Desconfio mesmo que nunca se falou tanto nele quanto neste pobre e efémero post. Ou talvez o homem seja uma breve aparição do próprio Raymond Chandler na sua obra, ao estilo do Hitchcok nos seus filmes.
E é tudo. Agora aceitam-se novas traduções fantasiosas, comentários críticos e manifestações de carinho sobre a lendária Colecção Vampiro. Da outra não vale muito a pena falar. Já agora, algum porco quer continuar com outras duplas ou triplas traduções?
Tendo eu lá em casa duas edições diferentes da obra acima referida, nem perguntem porquê, e apanhando-me desocupado, pus-me a comparar as respectivas traduções. Para ver o que o escritor afinal queria, fui à net e a custo lá encontrei um bocado do original. Conclui então que são insondáveis e solitários os mistérios da cabeça dos tradutores. Reparem:
The Treloar Building was, and is, on Olive Street, near Sixth Avenue, on the west side. The sidewalk in front of it had been built of black and white rubber blocks. They were taking them up now to give to the government, and a hatless pale man with a face like a building superintendent was watching the work and looking as if it was breaking is heart.
(No original)
O edifício Treloar ficava e ainda fica na Olive Street, perto da Sexta Avenida, do lado poente. Por requisição do governo, andavam a levantar os ladrilhos da calçada, feitos em borracha preta e branca. Um homem macilento, de cabeça descoberta e aspecto de fiscal, vigiava a obra, que parecia despedaçar-lhe o coração.
(Tradução de Ruth Belger para Livros do Brasil, Colecção Vampiro)
Perto da Sexta Avenida, do seu lado oeste, situava-se o edifício Treloar. O passeio em frente fora construído em ladrilho de borracha preta e branca que, por ordem do governo, estavam agora a ser levantados. Um fiscal, de ar macilento e cabeça destapada, vigiava a obra, com a qual parecia não concordar.
(Tradução de Jorge Pinheiro para Biblioteca Visão, Colecção Lipton)
Chamou-me logo a atenção o facto de ambos os tradutores terem acordado tacitamente que o homem que vigiava, por ser pálido, devia ter um ar macilento. Ficou adoentado, talvez até tuberculoso, quando o problema se resumiria a alguma prolongada falta de sol ou a um recente desgosto. Ou talvez fosse simplesmente sueco. Ambos concordam também sobre as coordenadas do edifício, embora o primeiro, mais romântico, se sinta na necessidade de informar que esse é o lado onde o sol se pôe todos os dias. O segundo diz, no entanto, que o edifício “situava-se”, simplesmente, o que faz supôr que já não se situa. Terá entretanto sido demolido, ardeu, caiu, kaput. A narrativa foi empurrada para um futuro longinquo de grandes transformações imobiliárias. O narrador, o próprio Marlowe, coitado, terá também assim envelhecido cinquenta anos desde o original à segunda tradução. A tal rua é a Olive Street, como nos informa o escritor, mas o segundo tradutor, estranhamente, não lhe faz qualquer referência. Terá achado, talvez, que já não precisavamos de saber o nome da rua onde se situava o edifício defunto. Aliás, este tradutor é mesmo bastante avarento nas informações. Vejamos: enquanto no original e na primeira tradução os ladrilhos eram levantados para serem dados ao governo, na segunda eram levantados simplesmente por ordem do governo, sem se revelar se o seu destino imediato seria um armazém do governo ou o joe sucateiro. Não sabemos igualmente, nesta versão livre, qual o estado de espírito do homem que assistia à obra. Enquanto na primeira, mais fiel ao original, se informa que o pobre do homem ficou com o coração despedaçado, na segunda apenas se diz que o homem não concorda com o que vê. O leitor fica assim impedido de verter uma lagrimazinha pelo desgosto do homem. Convém ainda assinalar que nem no original nem na primeira tradução se informa qual a profissão do homem. Apenas se diz que tinha cara de fiscal de obras, seja lá o que isso for. Ora o segundo tradutor parece ter achado que se o homem tinha cara de fiscal de obras, era forçosamente fiscal de obras. Teriamos então que numa adaptação cinematográfica desta versão, o homem talvez aparecesse com farda de fiscal de obras. O pobre coitado, talvez já a gozar a reforma, que talvez tivesse ali parado por acaso, a caminho do Central Park para ir dar comida aos pombos, ficou assim nomeado para uma tarefa bem chata. Pensando bem, talvez o homem nem aparecesse de todo em qualquer filme. Não me lembro já bem do resto do livro, mas acho que o papel do homem se resume a estar parado naquele parágrafo com cara de parvo. A última vez que ninguém o viu, passada uma hora e meia hora, estava ele a ser comido por pombos no Central Park. Desconfio mesmo que nunca se falou tanto nele quanto neste pobre e efémero post. Ou talvez o homem seja uma breve aparição do próprio Raymond Chandler na sua obra, ao estilo do Hitchcok nos seus filmes.
E é tudo. Agora aceitam-se novas traduções fantasiosas, comentários críticos e manifestações de carinho sobre a lendária Colecção Vampiro. Da outra não vale muito a pena falar. Já agora, algum porco quer continuar com outras duplas ou triplas traduções?
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