08/05/05

Vigor da Mocidade, 75 anos de... vida! , por Mangas

O fiel leitor do Porco que nos perdoe, mas todos nós somos animais de paixões e por elas nos debatemos, sobre elas teorizamos, com elas andamos ao sol, porque a sombra é boa para os pálidos de pele que lhes pica o suor, como cantava o Júlio Iglesias. Quer isto dizer que por aqui, ama-se um filme, como se ama um filho; relê-se um livro, vezes sem conta, porque o Porco é um animal de imaginário e nele viaja ao sabor dos vagalhões. O vinho que demoradamente se saboreia, a caldeirada que se mastiga e o charuto que se esvai na cinza da madrugada, são rituais de ardente religiosidade e inigualável apetite. O deporto em geral, e o futebol em particular, são práticas generalizadas por estas bandas e também fazem parte da lista desse debate ideológico. Como tal, o fiel leitor que nos perdoe a ousadia de encher o chouriço do Tapor com coisas da bola.

Mas, para terminar este ciclo de sapientes dissertações à volta do fenómeno futebolístico e desanuviar o ambiente, contar-vos-ei uma história que se passou comigo. Descansem: não vos trago a análise detalhada do jogo sustentado, tão pouco a observação in loco da pré-época do poderoso Chelsea ou do gigante A.C. Milan. O que compartilho com vocês é a face copo&bucha do amadorismo na Divisão Distrital. A grande diferença está no poder do negócio, no dinheiro envolvido, nas infra-estruturas, e enfim, em tudo o resto do qual a poderosa máquina do profissionalismo suporta e sustenta. Asseguro-vos porém que durante um jogo dos Distritais, o apoio dos sócios, vizinhos ou simpatizantes, namoradas, esposas, filhos e enteados, patrões ou colegas da fábrica, vale o mesmo que os cânticos de uma claque organizada nas bancadas do Cam Nou! E um derby entre equipas de terras vizinhas ou da mesma freguesia, não tenham dúvidas, é a doer! No seio de qualquer equipa, é limpinho que as faltas ou atrasos aos treinos são penalizadas com multas para um saco comum que revertem numa jantarada no final de época; quando os desafios são decisivos e podem ditar uma subida ao escalão superior, fazem-se pequenos estágios antes dos jogos, quase sempre em tasco patrocinador a designar pelo presidente ou na sede do clube onde o rancho, os matrecos e uma suecada antes da palestra do Mister, ajudam a relaxar os mais calmeirões antes da refrega e a fortalecer o espírito de grupo. É assim que pelas Distritais deste país se vive a paixão pelo futebol. Devo dizer-vos também, e por uma questão de justiça, que não são raros os casos em que clubes são veículos genuínos na prestação de bons serviços à comunidade, quer pela organização de iniciativas desportivas e recreativas, quer pelas Secções criados no seu seio de apoio a modalidades e ocupação de tempos livres para rapaziada mais nova.

Esta aconteceu-me a mim, que durante alguns anos dividi os ossos do ofício entre os crónicos do hospital e os cromos do Grupo Recreativo Vigor da Mocidade, esse Clube baluarte de Fala, que este ano comemora o 75º aniversário e ao qual se presta, com esta narrativa verídica, uma homenagem saudosista desses bons velhos tempos. O Vigor jogava nessa época 98-99 na 1ª Divisão dos distritais de Coimbra e o treinador, apologista dos jogos-treino a meio da semana com outras equipas, marcou a quinta-feira para irmos ao campo do Mirandense. Era Fevereiro e chegámos a Miranda debaixo de temporal! Chuva intensa, frio, fortíssimas rajadas de vento, trovoada. O único abrigo resguardado de toda aquela tempestade medonha era dentro do balneário. Um bom balneário, devo acrescentar, ao contrário dos muitos que apanhei, como em Gavinhos, onde havia apenas três chuveiros alimentados por uma caldeira ferrugenta lá fora, na parede esburacada junto ao solo barrento que escoava as mijadelas lá de dentro. O do Mirandense, não. Era grande, asseado, azulejos brancos, duches com saboneteira, tudo impecável. O jogo-treino em si foi uma desgraça! Campo completamente alagado a dificultar a progressão da bola, vento traiçoeiro, lama, aos suplentes nem havia coragem para lhes pedir que fossem aquecendo - ficavam-se nas imediações do balneário, enroscados nos impermeáveis como pintos, debaixo dos telheiros contíguos. Foi um alívio geral quando aquilo acabou e um duche quente era um prémio mais do que merecido a todos aqueles bravos que tinham para ali andado a saltar obstáculos 90 minutos como andorinhas na borrasca.

É aqui que a drama se precipita. Já com os jogadores todos debaixo do banho temperado, num ambiente característico de descompressão e espuma, entre a discussão calorosa daquele livre que podias ter dado para o lado e uma densa neblina de vapor condensado que tornava a coisa próxima de uma sauna colectiva, ouve-se um estrondoso relâmpago e falta a luz. Fica tudo às escuras. A primeira reacção foi uma assobiadela monumental, protestos, caralhadas, e quem é o filho da puta que me tirou a toalha! Passou-se um minuto, dois, o coro de protestos aumenta, a confusão é tão geral como o apagão, alguns jogadores apanhados a meio da secagem não conseguem localizar as roupas e berram com frio, o desconforto é cada vez maior. E é aqui que eu entro. Iluminado por uma ideia simples e armado em McGyver com moleirinha de Prof. Pardal, lembro-me que o no meu saco está a luz que iluminará as trevas. É que os vulgares sprays milagrosos têm na sua composição cloreto de etílico que em contacto com a atmosfera cria uma reacção de baixa temperatura que actua instantaneamente sobre a dor. Daí o lendário epíteto de spays milagrosos. Porém, esta composição é altamente inflamável e enquanto estudante, raros foram os estágios fora de casa em que um frasco não desse para assar, pelo menos, meia dúzia de chouriças. Os frascos que trazia naquela noite, ainda por cima, eram munidos de um dispositivo protector da natureza, sem SFC adicionado, logo sem pulverização, logo, mistura pura e líquida, logo, mais chama, mais luz. Brilhante! Desnecessário será descrever-vos os breves segundos que se seguiram à primeira esguichadela de cloreto de etílico no chão do balneário e ao resultado do fósforo que lhe deu vida: uma chama bonita, azulada e bem definida que resgatou das trevas e do frio aqueles rapazes. Pobres almas... Soubessem eles o que os esperava a seguir e não teriam aplaudido, cantado e sacudido os corpos nus à volta da fogueira, como demónios ressuscitadas.

Aquilo encheu-me a alma, caralho! Era o meu golo de penálti! Os cânticos saudavam o meu nome com o mesmo frenesim que o Profeta teria sido aclamado, alguns até dançavam como índios em homenagem ao grande Manitou. No espaço de um minuto, fiz outra fogueira, e outra, e outra, multipliquei a luz, era o Senhor das Fogueiras, o Feiticeiro das Labaredas que excomunga o medo da noite. Nem no Paleolítico os gajos celebraram tanto, acreditem-me! Mas a química não joga aos dados e os Deuses iraram-se com a minha cagança de alquimista distrital: o vapor circundante dos banhos impediu a propagação no ar do gás tóxico resultante das várias combustões e este condensou-se na atmosfera. Factor “X”: the unexpected. Nunca tinha visto, nem cheirado coisa semelhante àquela malina fétida e mortal, garanto-vos! Awschvitz devia ter começado assim. Rapidamente, uma onda gasosa impossível de respirar entranhou-se-nos nas gargantas, como cactos pela goela abaixo. Era como aspirar um veneno ácido que bloqueava os pulmões. Imaginai-vos a inalar uma espécie de água tónica sulfurada no estado gasoso, numa tarde quente de verão, dentro de uma sauna escura: assim era o tormento! Alguém tosse, ouço gritos de pânico e pressinto os primeiros sinais de perigo! Começo a apagar os pequenos infernos, (o que não foi fácil, como calculam!) e a encaminhar os rapazes para a porta. Por nesta altura, vários tossem em simultâneo e distingo claramente os berros de vários jogadores misturados pelos quatro cantos do balneário à procura da porta de saída. A visibilidade era quase nula, as tosses sufocadas multiplicam-se, e apercebo-me então que alguns conseguiram escapar e andam lá fora como Nosso Senhor os trouxe ao mundo, à procura de oxigénio como do pão para a boca, debaixo da chuva gelada batida a vento. Rapidamente e aos encontrões, seguiram-se-lhes os restantes com a ajuda de alguns directores que vieram em auxílio. Eu continuei lá dentro, já sem os anéis de pirotécnico iluminado e com uma toalha húmida no rosto para continuar a respirar, tentando desesperadamente certificar-me que não tinha ficado para trás nenhum defesa central latagão com perda de consciência. A cada passo, prometia ao Todo Poderoso um donativo generoso as bombeiros se, no final da tragédia, só sobrassem risos. Tentava gritar: “Está aí alguém?”, mas cada vez que abria a boca, a mistura pestilenta invadia-me os pulmões e bloqueava a respiração. Era escusado. Quando saí, os olhos ardiam-me e os brônquios ameaçavam saltar-me pela boca a cada inspiração. Tão célere foi o salvamento, como fugaz tinha sido o triunfo.

E só sobraram os risos. Felizmente. A luz veio logo a seguir e acabámos a noite a comer umas sandochas, a beber uns tintos para desentupir as goelas e a rirmo-nos do incidente. Não houve vítimas nem constipações, pois que no Vigor as gentes e os atletas são como o aço! Gente boa e generosa que ao longo dos anos sempre me privilegiou com amizade e afecto.

Mas ainda hoje, quando algum dos sobreviventes da noite mais tenebrosa dessa época gloriosa em que subimos à Honra, me procura para lhe tratar o joelho, enfrenta-me com um sorriso malandro a bailar-lhe nos olhos e atira-me, à procura da cumplicidade daqueles breves segundos que pareceram uma eternidade:
“- E naquela noite em que você nos ia assando a todos como a leitões nos fornos? Lembra-se...? AHAHAHAHA!”

Eu vou atrás da gargalhada, mas humildemente e num gesto discreto, levo a mão ao peito para tocar o crucifixo e lembro-me de dar outro donativo aos Bombeiros.

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