Eu cresci em Bragança e lá fiz o ciclo e o liceu. Quando parti, há muitos anos atrás, prometi que regressaria muitas vezes para ver os amigos e os lugares nos quais fiz as primeiras aprendizagens de emoções e sabores. Mas a jornada teceu-me novos laços, outros caminhos, e o passado nem sempre me esteve à mão de alcançar. Bragança, hoje, guarda poucas lembranças desses tempos em que nos conhecemos – a cidade cobrou a exigência de um desenvolvimento urbano que estivera adiado durante décadas, expandiu-se, criou alternativas de fixação, viu nascer institutos politécnicos e casas de putas; a minha expansão física foi meramente em largura. Houveram livros, ilusões e outras cidades nas quais cresci entretanto, mas isso não é para aqui chamado. O lameiro onde jogava à bola, é agora um bairro dividido por uma avenida de duas faixas. O Tonho morreu com uma overdose, o César casou e foi para o Brasil. Já não se vende pão com chouriço no forno da Mãe de Água. Abateram aquele pomar no bairro dos ciganos onde costumávamos ir roubar fruta. Fizeram lá um bar...
Contudo, para além das gentes e do pulsar sagrado de alguns lugares, algo se manteve imutável e preservado: a excelência do fumeiro tradicional, esse riquíssimo património de sabores e paladares cuja chancela e imagem de marca reside em Vinhais, mas que é extensível a todas as capelas nordestinas e na base do qual está a cura do porco bísaro. Contrariamente ao porco ibérico, espécie que abunda por terras alentejanas e que se alimenta essencialmente de bolota num clima ameno, o porco bísaro come forragem e castanha durante todo o inverno. O meu avô dava-lhes também batata, grelos e maçã de refugo, mas a castanhita estava sempre presente. O resultado é um suíno mais encorpado do qual se extrai uma carne mais gorda, mas muito suculenta e saborosa. Cá para mim, sempre achei que o porco ibérico é para presunto e o porco bísaro é para enchidos.
Recordo-me daquelas manhãs de Fevereiro em que a minha mãe acendia a lareira e, num ritual de gestos simples e acolhedores, torrava o pão, trepava a um banco e com a ponta da navalha cortava o fio de uma alheira que depois ajeitava numa tenaz aberta sobre as brasas. Que àquela lhe pusera fé, dizia-me a sorrir, como se de uma intenção devota fosse aquele instante mascarado. Afinal, tão igual a tanto outros nos quais punha ela as mãos. Simples e acolhedoras O aroma inconfundível daquela massa de pão caseiro, carnes e azeite, invadia a cozinha e pairava, como um lento desmaio, na luz fria da geada fora de portas. O cheiro de uma alheira assada pela manhã, é como o cheiro do alho em azeite a escaldar: cheira a vitória. Dir-vos-ei que não é qualquer pão que faz uma alheira distinta – fabrica-se em fornos de lenha com fermento levedado, água, farinha de trigo e sal, corta-se, depois de cozido, em fatias grossas que posteriormente se embebedam na calda resultante da cozedura das carnes onde não deverá faltar, obrigatoriamente, a cabeça do reco. São esta pasta rica e aromática e as carnes desfiadas de porco e aves, a razão do prazer. Essas salsichadas que se encontram por aí, lisinhas como balões insuflados e apregoadas como sendo de Mirandela são, muitas vezes, um produto industrial de qualidade rasca. À falta de rotulagem ou de menção “Produto Específico”, desconfiai da tripa: tripa lisa é tripa plástica e o fumeiro transmontano leva tripa de porco, ou de vaca no caso da alheira. Quando pendurada em fila numa estaca cimeira junto à lareira, a alheira, a chouriça de carne ou o salpicão, pinga os primeiros dias, baba o excesso de gordura junto à camada externa da tripa. Depois, e por acção do calor seco e do fumo, vai ganhando uma coloração mais baça e acastanhada. A tripa vai gradualmente perdendo o seu brilho e engelhando aos contornos suaves do recheio da alheira, ou dos bordos salientes das carnes no caso do salpicão e da chouriça de carne. Tal como o vinho que amadurece em cascos de carvalho, essa metamorfose é a essência da cura, dos aromas secundários e dos sabores apurados do produto final. Na minha cozinha, quando os últimos pingos mirravam em gota colados à tripa e desapareciam, era o sinal exacto das primeiras alheiras assadas.
O salpicão é outra loiça, é outro enlevo. Diz-se que é o marisco do transmontano, mas a comparação é pobre e infeliz. Primeiro porque os frutos do mar não têm a devoção artesanal da mão do homem; segundo, porque se a frescura e a integridade ao palato do marisco depende, regra geral, de uma breve escaldadela em água, um punhado de sal e frio mantido, já o salpicão, esse, é elaborado com as carnes de lombo imaculado do porco que se submetem a um adoba de vinho tinto, alho, sal, louro e colorau. Só após é que os nacos de lombo impregnados até à alma com estes temperos primários são calcados para dentro de uma tripa de porco grossa e robusta quanto baste para amparar o embate. O que salta, depois da cura, é um delicadíssimo equilíbrio entre o sabor da carne avinhada e o aroma fumado do louro e do alho. Manjar finíssimo de corte à navalha para degustação entre amigos e camaradas de longas expedições.
Faz-se o fumeiro logo após a matança do porco, por alturas de Novembro a Janeiro quando os primeiros nevões assomam aos quintais e os estorninhos e os melros ficam cegos pela brancura alva da neve; a alheira pode pôr-se na brasa passadas algumas semanas, o recheio é fresco e evolui no calor, mas devem decorrer alguns meses até que se possa meter o dente nos primeiros salpicões. O Verão, os vastíssimos campos de trigo aloirado e as adegas frescas das aldeias de Penhas Juntas e Eiras Maiores, com aquele cheiro acamado a vinho tinto e pipas, são as melhores glorificações de um salpicão cortado em fatias generosas. A acompanhar, recomenda-se tão somente um pão escuro de centeio com côdea tosca e a estalar sobre a cantaria. (Não foi disto, de certeza, que tu morreste de overdose, Tonho... Sempre te disse que devias era meter porco para o sangue e não cavalo, meu grande bísaro!)
Ide por lá. Ide por Bragança, no Verão, quando as cerejas e as uvas “tomates de galo” amadurecem à sombra dos terraços, subi ao castelo que data do séc. XV e visitai a Domus Municipalis. Vereis que vale a pena. Se fordes em Maio, levai os miúdos à Feira das Cantarinhas. Mas se fordes na primeira semana de Fevereiro e passardes por Vinhais, acautelai-vos: o que aqui foi escrito e descrito, em nada se assemelha ou equivale ao que ireis saborear. Ide e depois me direis.
Contudo, para além das gentes e do pulsar sagrado de alguns lugares, algo se manteve imutável e preservado: a excelência do fumeiro tradicional, esse riquíssimo património de sabores e paladares cuja chancela e imagem de marca reside em Vinhais, mas que é extensível a todas as capelas nordestinas e na base do qual está a cura do porco bísaro. Contrariamente ao porco ibérico, espécie que abunda por terras alentejanas e que se alimenta essencialmente de bolota num clima ameno, o porco bísaro come forragem e castanha durante todo o inverno. O meu avô dava-lhes também batata, grelos e maçã de refugo, mas a castanhita estava sempre presente. O resultado é um suíno mais encorpado do qual se extrai uma carne mais gorda, mas muito suculenta e saborosa. Cá para mim, sempre achei que o porco ibérico é para presunto e o porco bísaro é para enchidos.
Recordo-me daquelas manhãs de Fevereiro em que a minha mãe acendia a lareira e, num ritual de gestos simples e acolhedores, torrava o pão, trepava a um banco e com a ponta da navalha cortava o fio de uma alheira que depois ajeitava numa tenaz aberta sobre as brasas. Que àquela lhe pusera fé, dizia-me a sorrir, como se de uma intenção devota fosse aquele instante mascarado. Afinal, tão igual a tanto outros nos quais punha ela as mãos. Simples e acolhedoras O aroma inconfundível daquela massa de pão caseiro, carnes e azeite, invadia a cozinha e pairava, como um lento desmaio, na luz fria da geada fora de portas. O cheiro de uma alheira assada pela manhã, é como o cheiro do alho em azeite a escaldar: cheira a vitória. Dir-vos-ei que não é qualquer pão que faz uma alheira distinta – fabrica-se em fornos de lenha com fermento levedado, água, farinha de trigo e sal, corta-se, depois de cozido, em fatias grossas que posteriormente se embebedam na calda resultante da cozedura das carnes onde não deverá faltar, obrigatoriamente, a cabeça do reco. São esta pasta rica e aromática e as carnes desfiadas de porco e aves, a razão do prazer. Essas salsichadas que se encontram por aí, lisinhas como balões insuflados e apregoadas como sendo de Mirandela são, muitas vezes, um produto industrial de qualidade rasca. À falta de rotulagem ou de menção “Produto Específico”, desconfiai da tripa: tripa lisa é tripa plástica e o fumeiro transmontano leva tripa de porco, ou de vaca no caso da alheira. Quando pendurada em fila numa estaca cimeira junto à lareira, a alheira, a chouriça de carne ou o salpicão, pinga os primeiros dias, baba o excesso de gordura junto à camada externa da tripa. Depois, e por acção do calor seco e do fumo, vai ganhando uma coloração mais baça e acastanhada. A tripa vai gradualmente perdendo o seu brilho e engelhando aos contornos suaves do recheio da alheira, ou dos bordos salientes das carnes no caso do salpicão e da chouriça de carne. Tal como o vinho que amadurece em cascos de carvalho, essa metamorfose é a essência da cura, dos aromas secundários e dos sabores apurados do produto final. Na minha cozinha, quando os últimos pingos mirravam em gota colados à tripa e desapareciam, era o sinal exacto das primeiras alheiras assadas.
O salpicão é outra loiça, é outro enlevo. Diz-se que é o marisco do transmontano, mas a comparação é pobre e infeliz. Primeiro porque os frutos do mar não têm a devoção artesanal da mão do homem; segundo, porque se a frescura e a integridade ao palato do marisco depende, regra geral, de uma breve escaldadela em água, um punhado de sal e frio mantido, já o salpicão, esse, é elaborado com as carnes de lombo imaculado do porco que se submetem a um adoba de vinho tinto, alho, sal, louro e colorau. Só após é que os nacos de lombo impregnados até à alma com estes temperos primários são calcados para dentro de uma tripa de porco grossa e robusta quanto baste para amparar o embate. O que salta, depois da cura, é um delicadíssimo equilíbrio entre o sabor da carne avinhada e o aroma fumado do louro e do alho. Manjar finíssimo de corte à navalha para degustação entre amigos e camaradas de longas expedições.
Faz-se o fumeiro logo após a matança do porco, por alturas de Novembro a Janeiro quando os primeiros nevões assomam aos quintais e os estorninhos e os melros ficam cegos pela brancura alva da neve; a alheira pode pôr-se na brasa passadas algumas semanas, o recheio é fresco e evolui no calor, mas devem decorrer alguns meses até que se possa meter o dente nos primeiros salpicões. O Verão, os vastíssimos campos de trigo aloirado e as adegas frescas das aldeias de Penhas Juntas e Eiras Maiores, com aquele cheiro acamado a vinho tinto e pipas, são as melhores glorificações de um salpicão cortado em fatias generosas. A acompanhar, recomenda-se tão somente um pão escuro de centeio com côdea tosca e a estalar sobre a cantaria. (Não foi disto, de certeza, que tu morreste de overdose, Tonho... Sempre te disse que devias era meter porco para o sangue e não cavalo, meu grande bísaro!)
Ide por lá. Ide por Bragança, no Verão, quando as cerejas e as uvas “tomates de galo” amadurecem à sombra dos terraços, subi ao castelo que data do séc. XV e visitai a Domus Municipalis. Vereis que vale a pena. Se fordes em Maio, levai os miúdos à Feira das Cantarinhas. Mas se fordes na primeira semana de Fevereiro e passardes por Vinhais, acautelai-vos: o que aqui foi escrito e descrito, em nada se assemelha ou equivale ao que ireis saborear. Ide e depois me direis.
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