Coimbra nunca foi um bom sítio para fazer amizades: aqui, quando amamos verdadeiramente alguém, acompanha-nos para sempre e dói-nos, mas nunca queremos que seja de outra forma. Ao longo dos anos sustentamos por correspondência a troca de emoções dos livros que lemos, porque é melhor escrever as coisas quando precisamos de as sentir de mais do que de menos. Ainda que todos os universos desses livros sejam apenas um, neles aprendemos a saltar do primeiro para o último consoante nos apetece rir ou resistir. Admiramos uma vez por ano a pontualidade dos jaracandás a desabrochar no tal dramático violeta-fogo e, com o pretexto de estarmos juntos, passamos noites inteiras a comer, a provar vinhos às cegas, a achar que o único pecado capital é a estupidez, e a discutir sobre coisas do género: pedir meias doses, porque raio se chama dose?, é porque está calculado: é uma dose!, um homem, uma dose!, quem pede meia dose é meio-homem!; cozido à portuguesa é comida de homem, meia dose de cozido é... paneleirice!; o pior é pedir meia dose de qualquer comida terminada em inho ou inhos, a saber - meia dose de bifinhos, meia dose de lulinhas!; e nunca esquecer que comidas que são de homem, para além do cozido, são a feijoada, mão de vaca, coelho à caçador e todas as partes do porco, porque tudo o que tiver porco é de homem...
Em Coimbra sobra-me o tempo que sempre me falta para fazer tudo o que me propus. Contemplar é uma variante artística da solidão porque esta cidade é dos raros sítios que conheço onde a peculiaridade de cada homem é tão secreta quanto passível de ser admirada em silêncio por outro homem. As tradições não fazem crer a ninguém que de facto ainda existem, a história é feita de graves mas festivos gestos a cada volta do sol quando as noites são bailarinas e os dias densos como azeite virgem. Uma vez sonhei que o bosque, em Vale de Canas, me engoliu numa noite incendiada e que de Coimbra perdurará o vento que a atravessou reconhecendo os passos descalços de uma mulher nas águas. Amanheceu três vezes nesse meu sonho, quase sempre, com o suor a saber a desejo. Acordei numa rua que se chamava “Todas as Ruas Conduzem ao teu Nome”. Porém, eu nunca saberei se naquele preciso instante, Coimbra dormia a sonhar comigo nem o quanto o significado desse sonho é claramente revelador do nosso elo de ligação ou alienação. Estando cá ascendi ao conhecimento do mundo. Parti muitas vezes, de todas elas, o mais distante que estive de alguma coisa foi de mim mesmo. Convenci-me disto pelo sentidos órfãos de nunca ter pertencido a lugar algum, e embora as minhas paixões sejam livres de imigrar, acredito agora, quanto mais não seja pela recordação de um rio ou de uma praça que, os teus braços Coimbra, são um cais condenado onde se regressa sempre.
Coimbra tem personalidade de um duplo. Quer dizer: faz o papel do tipo que não é a estrela do filme, mas é imprescindível para rodar as cenas mais perigosas, arriscando as costelas e a carne sem que no final seja convidado para a sessão de autógrafos. No passado acredita-se porque foi jovem e indestrutível, envolveu-se em brigas monumentais e venceu sempre. Mesmo quando foi derrotado. Quem souber escutar vozes e comportamentos, aplaca o saudosismo de quem gosta de contar histórias. O lugar ao sol que muitos procuram pode não estar aqui, pacificamente, à sua espera. Não é como um tipo que imigra para Antuérpia, encontra meia dúzia de judeus com quem não se dá, trabalhos baratos que, sem grandes alternativas, aceita para pagar o quarto, as refeições e tem a noção clara de ter sacrificador algo que deixara para trás quando decidira partir, porém, aguenta até ao fim esperando que a sorte lhe sorria um dia. Nunca é tão linear para quem chega, nem tão dolorosamente patriótico para quem cá nasceu e cresceu.
Coimbra podia ser apenas capa de um disco em vinyl da Amália. Uma fotografia tirada sobre a ponte mostrando mulheres lavadeiras entretidas a esticar mantas e lençóis na areia das pequenas ilhotas, das quais o Mondego se escondia há muitos anos atrás quando ninguém lhe impunha ser poderoso. Se Coimbra fosse banhada pelo oceano, seria uma viúva por quem cantariam guitarras solenes aos barcos de partida para preservar a saudade eterna de uma mãe ou de uma puta amante.
Coimbra é uma conversa por terminar que se tem com alguém pela madrugada adentro, quando as grandes ideias surgem mais facilmente. É como permanecer sentado nos minutos seguintes, no mesmo banco de jardim onde ela esteve sentada por nós, até se ter cansado de esperar e ter partido.
Coimbra não tem estradas planas que permitam percorrer de bicicleta a distância mais curta entre dois lugares, mas tem velhos a vender o Borda D`Água. Em Agosto pode ser uma experiência devastadora e solitária, mas quando chove, o cinzento dos finais de tarde poderia muito bem ser o recolhimento mais afável e constrangedor de todos os lugares, se possuísse aquele cheiro característico a terra molhada que nunca mais existirá nas cidades. Certa tarde em Coimbra ocorreu-me que devia haver mais homens com nomes que lembrassem algo parecido a alguns títulos de filmes como, Tragam-me a Cabeça de Alfredo Garcia ou Os Duros não Dançam. Machos sensíveis. Serenos. Capazes de explodir em furiosas lideranças. Inspirando um misto de temor e respeito nos outros homens e, ao mesmo tempo, sofrer até à morte pelas mulheres que os amam. Capazes de tudo sem que fossem postos em causa.
O meu avô paterno era assim. Chamava-se Leonardo. Foi ele a razão de eu para cá ter vindo viver um dia.
Em Coimbra sobra-me o tempo que sempre me falta para fazer tudo o que me propus. Contemplar é uma variante artística da solidão porque esta cidade é dos raros sítios que conheço onde a peculiaridade de cada homem é tão secreta quanto passível de ser admirada em silêncio por outro homem. As tradições não fazem crer a ninguém que de facto ainda existem, a história é feita de graves mas festivos gestos a cada volta do sol quando as noites são bailarinas e os dias densos como azeite virgem. Uma vez sonhei que o bosque, em Vale de Canas, me engoliu numa noite incendiada e que de Coimbra perdurará o vento que a atravessou reconhecendo os passos descalços de uma mulher nas águas. Amanheceu três vezes nesse meu sonho, quase sempre, com o suor a saber a desejo. Acordei numa rua que se chamava “Todas as Ruas Conduzem ao teu Nome”. Porém, eu nunca saberei se naquele preciso instante, Coimbra dormia a sonhar comigo nem o quanto o significado desse sonho é claramente revelador do nosso elo de ligação ou alienação. Estando cá ascendi ao conhecimento do mundo. Parti muitas vezes, de todas elas, o mais distante que estive de alguma coisa foi de mim mesmo. Convenci-me disto pelo sentidos órfãos de nunca ter pertencido a lugar algum, e embora as minhas paixões sejam livres de imigrar, acredito agora, quanto mais não seja pela recordação de um rio ou de uma praça que, os teus braços Coimbra, são um cais condenado onde se regressa sempre.
Coimbra tem personalidade de um duplo. Quer dizer: faz o papel do tipo que não é a estrela do filme, mas é imprescindível para rodar as cenas mais perigosas, arriscando as costelas e a carne sem que no final seja convidado para a sessão de autógrafos. No passado acredita-se porque foi jovem e indestrutível, envolveu-se em brigas monumentais e venceu sempre. Mesmo quando foi derrotado. Quem souber escutar vozes e comportamentos, aplaca o saudosismo de quem gosta de contar histórias. O lugar ao sol que muitos procuram pode não estar aqui, pacificamente, à sua espera. Não é como um tipo que imigra para Antuérpia, encontra meia dúzia de judeus com quem não se dá, trabalhos baratos que, sem grandes alternativas, aceita para pagar o quarto, as refeições e tem a noção clara de ter sacrificador algo que deixara para trás quando decidira partir, porém, aguenta até ao fim esperando que a sorte lhe sorria um dia. Nunca é tão linear para quem chega, nem tão dolorosamente patriótico para quem cá nasceu e cresceu.
Coimbra podia ser apenas capa de um disco em vinyl da Amália. Uma fotografia tirada sobre a ponte mostrando mulheres lavadeiras entretidas a esticar mantas e lençóis na areia das pequenas ilhotas, das quais o Mondego se escondia há muitos anos atrás quando ninguém lhe impunha ser poderoso. Se Coimbra fosse banhada pelo oceano, seria uma viúva por quem cantariam guitarras solenes aos barcos de partida para preservar a saudade eterna de uma mãe ou de uma puta amante.
Coimbra é uma conversa por terminar que se tem com alguém pela madrugada adentro, quando as grandes ideias surgem mais facilmente. É como permanecer sentado nos minutos seguintes, no mesmo banco de jardim onde ela esteve sentada por nós, até se ter cansado de esperar e ter partido.
Coimbra não tem estradas planas que permitam percorrer de bicicleta a distância mais curta entre dois lugares, mas tem velhos a vender o Borda D`Água. Em Agosto pode ser uma experiência devastadora e solitária, mas quando chove, o cinzento dos finais de tarde poderia muito bem ser o recolhimento mais afável e constrangedor de todos os lugares, se possuísse aquele cheiro característico a terra molhada que nunca mais existirá nas cidades. Certa tarde em Coimbra ocorreu-me que devia haver mais homens com nomes que lembrassem algo parecido a alguns títulos de filmes como, Tragam-me a Cabeça de Alfredo Garcia ou Os Duros não Dançam. Machos sensíveis. Serenos. Capazes de explodir em furiosas lideranças. Inspirando um misto de temor e respeito nos outros homens e, ao mesmo tempo, sofrer até à morte pelas mulheres que os amam. Capazes de tudo sem que fossem postos em causa.
O meu avô paterno era assim. Chamava-se Leonardo. Foi ele a razão de eu para cá ter vindo viver um dia.
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