29/01/05

Arquivos do Porco: memória dos vinte e três dias de Dezembro do ano de noventa e nove

No dia 23 de Dezembro dos idos de 99, por oferta do Grande Bom (ex-Mau. não confundir com o Mau ex-Bom), o Porco comeu parte de um seu semelhante: aviámos numa noite a pata de um porco negro, cortado com requintes de sadismo canibalesco em finíssimas fatias. Inigualável, aquele saudoso Pata Negra. Mais inigualável ainda porque acompanhado por um Vega Sicilia de 86. Nada mais nada menos do que o melhor vinho que o Porco já bebeu e um dos melhores vinhos de sempre.

A prová-lo, o jornal El Mundo, de 31 de Dezembro de 2004 dava conta do record alcançado na venda de um Magnum de três litros: 65000 dólares! Eu repito: 65000 dólares! Por extenso: sessenta e cinco mil dólares! Por extenso e em maiúsculas: SESSENTA E CINCO MIL DÓLARES! SESSENTA E CINCO MIL DÓLARES, CARALHO! 3 litros daquele vinhão foram vendidos por 65000 dólares! E nós já bebemos daquilo! Uma 0,75, é certo, mas bebemos, é muito provável que cá pelo meio das minhas entranhas ainda circule uma molécula perdida, um vaporzito esquecido por entre as fissuras do fígado dessa magnífica bebida que acabou de ser vendida por um preço record! 65000 dólares! A prová-lo está a notícia do El Mundo. Clicar na imagem para ver a notícia completa (foto pesada)


23/01/05

Fitas de Ménes, por J Pimenta

A propósito desta rapaziada que emborca vinho fino, fuma charuto, coça os tomates entre um garfo de iconografia russa medieval e outro de Tom Waits e conversa aos gritos sobre gajas entre dois buchos recheados, lembrei-me dum poste que se calhar nem tem nada a ver mas não interessa. Se há coisa que mais se aproxima de um “Cinema Masculino”, com M grande, sem desprimor para os éfes, no sentido filosófico, histórico e telúrico de um Hemingway, por exemplo, será sem dúvida o Western, universo de homens por excelência. Tirando algumas excepções, como o Johny Guitar, de Nicholas Ray, ou A Desaparecida, de John Ford, as mulheres não passam de adereços que guincham, ou, quanto muito, de esposas ou noivas que, chorosas e resignadas, ficam para trás a cuidar do rancho enquanto o homem vai viver o filme. Ou então são putas.
O universo John Wayne é macho. Como macho é o universo de Jack London ou de Herman Melville no Moby Dick, obra prima sobre muitas coisas em torno de obsessões quiméricas eminentemente masculinas, como a vingança sangrenta e impiedosa (nas mulheres convencionou-se que é mais subtil, prato frio e cerebral) ou a supremacia, num cenário obrigatoriamente masculino, como era o dos baleeiros no século XIX, que resultou noutra pérola do cinema com a setinha para baixo: A obra de John Huston com o mesmo nome. Podia referir outras correntes, os filmes de guerra, por exemplo, ou quase todos os filmes embarcadiços, mas os casos anteriores creio que reflectem muito melhor a tal masculinidade existencial, a condição de se ser Homem. De se ser Homem só perante as forças adversas deste mundo e do outro, perante as suas ambições, deveres, dilemas terríveis, imperativos éticos, solenes, políticos, o destino de povos, desígnios maiores que o quotidiano. Aqui, as mulheres ou ficam a varrer a casa ou simplesmente não existem, nestes exemplos cinematográficos e literários que creio que exploram com mais intencionalidade, até, esse tipo de reflexão e contexto “homocêntrico”.
Mas tenho para mim que há dois, dois filmes seminais, que reflectem esta questão com uma profundidade e uma dimensão estética verdadeiramente ímpares e arrebatadores. Refiro-me a “Lawrence da Arábia”, de David Lean, e a “Dersu Uzala”, de Akira Kurosawa. Em ambos, mais no primeiro, se destaca numa primeira abordagem a quase completa inexistência de mulheres. Na história do major inglês T. E. Lawrence (Thomas Edward) filmada por Lean não há qualquer vestígio feminino marcante. Penso que a única vez que se vislumbram mulheres ao longo de todo o filme é, ao longe, um ruidoso grupo de beduínas vestidas de preto dos pés até aos pés e empoleirado nas encostas de um desfiladeiro árido, muito ao longe enquanto um exército de homens domina um majestoso plano aberto penetrando no deserto, ao encontro da sua missão de homens/guerreiros maiores que a vida. Com Lawrence à cabeça. A história - verídica mas nebulosa, deste aventureiro e oficial do exército britânico no Médio Oriente, figura controversa mas fascinante que viveu entre 1888 e 1935 e que, antes de ingressar na vida militar, fez arqueologia na Síria e no Egipto e se misturou com os locais, aprendeu a língua, os usos e os costumes dos árabes, lutou ao seu lado contra os turcos e o império Otomano, negociando o apoio das forças expedicionárias inglesas na região, nomeadamente financeiro – de Lawrence, como a do capitão Ahab, também é uma história de vingança, de um ódio mortal, sangrento e víril. A Moby Dick de Lawrence são os turcos (como se revela, por exemplo, na insana e cruel carga sobre uma coluna de tropas turcas destroçadas, indefesas e em fuga). Mas é também uma história de glória e de um homem só perante o seu destino. Ao lado das tribos do deserto que derrotaram os turcos em Tafila em 1918 e (re)tomaram Damasco, e integrando a delegação árabe à Conferência de Paz posterior, Lawrence inscreveu o seu nome na História, sendo uma das peças-chave no novo “desenho” político do Médio Oriente que dali emergiu e ainda hoje dá dores de cabeça a toda a gente. Grande parte da sua vida no deserto, de resto, está contada no seu livro “Os sete pilares da sabedoria”.
O superlativo filme de David Lean (mais ninguém filmou o deserto daquela maneira, nem mais ninguém o compôs tão bem como Maurice Jarre, numa banda sonora arrebatadora), ao contrário do de Kurosawa - que é uma história “assexuada” de homens perante a solidão, também perante a imensidão mas sobretudo perante a amizade - é um filme masculino, mas ao mesmo tempo de uma sensualidade extraordinária, explorando a dúbia e inconfessada condição sexual “desviante” de Lawrence, alegadamente homossexual e alegadamente violado por um oficial turco. Nada disto se vê mas tudo isto se sabe, ou adivinha, neste filme matreiro e subtil, escondido por detrás da sua grandiosidade, como a areia movediça dissimulada na vastidão desértica que engole um dos dois jovens criados pessoais de Lawrence, idealista, sim, mas também guerreiro impiedoso e calculista, mas destroçado pela morte do dilecto servidor beduíno. O filme de Lean tem, então a particularidade de ser masculino e quase erótico, com Peter O’Tolle compondo um extraordinário e dramático narciso egocêntrico e sensual, como são de uma sensualidade fantástica as cenas de Lawrence vestido com as longas túnicas brancas árabes, andando pelas lânguidas dunas do deserto tórrido como se desfilasse numa passagem de modelos e como se mil espelhos o contemplassem dizendo: és belo, és desejável, és poderoso.
Já “Dersu Uzala” (apresentado em português como “A águia da estepe”), também sendo um filme de grandes paisagens (decorre essencialmente nas frias planícies da Sibéria) é um objecto completamente diferente, constituindo sobretudo um comovente e poético (para mim o mais poético, intimista e despretensioso dos filmes de Kurosawa) ensaio sobre a dignidade humana, com base nos fortes e improváveis laços que se geram e acabam por unir para a vida dois homens oriundos de dois mundos completamente diferentes: um topógrafo militar moscovita (ou talvez de São Petesburgo, não me recordo exactamente), urbano e culto, e um simpático, experiente e rude caçador siberiano que acaba por lhe servir de guia naquela região inóspita. Este filme, de como o respeito mútuo pode quebrar barreiras culturais e outras, corresponde à fase de “exílio” de Kurosawa (após o fracasso no Japão do também superlativo “Dodesukaden”, que terá levado inclusive Kurosawa a tentar o suicídio em 1971) tendo sido rodado e produzido na ex-União Soviética, que acolheu e apoiou os projectos do cineasta, acabando por vencer em 1975 o Óscar para melhor filme estrangeiro. De uma dimensão quase diria ecologista (um crítico francês chamou-lhe mesmo um «poema ecológico»), inclusive na reflexão sobre o homem e o seu papel, o seu lugar, na grandeza natural das coisas, “Dersu Uzala” é baseado no livro de memórias do capitão Arseniev, o topógrafo que em 1902 teve como missão mapear a infinitude siberiana e tropeçou numa criatura estranha chamada Dersu Uzala, que aprendeu a amar e a respeitar, como em relação à Sibéria.

Ps: Este último foi, de resto, o filme que projectou Kurosawa, justamente, para o estrelato mundial. Depois de Dersu Uzala, e para felicidade dos cinéfilos, o realizador fez o que quis, com o apoio e a admiração conquistados em Hollywood e entre gente como Coppola ou George Lucas, que ficaram incondicionais da obra do japonês, tendo sido determinantes (financiando) na concretização do seguinte projecto de Kurosawa: O triunfal “Kagemusha” (“A sombra do Guerreiro”), obra-prima que venceu em 1980 a Palma de Ouro de Cannes.
Seria injusto não lembrar aqui que “Lawrence da Arábia”, uma das mais caras e grandiosas produções cinematográficas até à data (15 milhões de dólares era uma pipa de massa em 1962), mereceu em 1963 os Óscares de Melhor Filme, Melhor Realizador, melhor Banda Sonora, Fotografia, Direcção de Arte, Melhor Som e Melhor Montagem. Teve também nomeações para Melhor Actor e melhor Actor Secundário.

14/01/05

Seinfeld Quê?, por Automotora

Sem qualquer espécie de ironia, nunca percebi o fenómeno de popularidade do Seinfeld. Para mim o êxito da série é um fenómeno tão estranho como estar no Times Square rodeado de néons a publicitar os Batanetes. Consta até por aí que é o maior acontecimento televisivo desde que apareceu a primeira voz no écran a fazer “alô, alô, teste”, e estão mesmo a pensar substituir a Estátua da Liberdade pelo Seinfeld, acção que se irá espalhar por todas as regiões do planeta onde haja Cristos-Reis. Ora eu, sinceramente, não sei o que é que justifica isto tudo, tanto que parece que já estão a preparar um filme em Hollywood com a minha história. Vou ser o outro irmão autista do Tom Cruise. Bom, um dia sentei-me à frente do televisor, a tremer de emoção, e a pensar “vou ver o Seinfeld, vou ver o Seinfeld!”. Fui vendo, um, dois, três ou quatro episódios e bocados de outros (cada vez mais curtos). Este sistema de amostragem, meio aleatória, é mais do que suficiente para descobrir genialidades. Mas eu não vi nada, zero. É verdade que o Grunfo diz que tem lá um episódio que me vai converter, mas eu acho isso estranho, porque ninguém se lembraria de dizer “achas que o leitão está mal assado? Prova lá então este bocado”. Ora bem, comecemos então pelo conceito geral do fenómeno: Um apartamento, um café, três ou quatro gajos, incluindo o típico gordo de óculos, uma gaja, com um penteado esquisito, todos a mandar bocas uns aos outros, a zangarem-se e amigos para a vida inteira. Até aqui, temos a descrição de dezenas de outras sitcoms. É o lugar comum mais utilizado na televisão. Aliás, os personagens das sitcoms são mesmo obrigados por contrato a serem amigos para a vida, pelo menos durante o período que dura a série. É como diria o Vinicius: O Amor é eterno enquanto dura o contrato. O genro do Archie Bunker, por exemplo, foi obrigado a partilhar o mesmo espaço com o sogro durante anos, como se fossem amigos inseparáveis. E os fantoches também são obrigados a andar à porrada dentro de um pequeno teatrinho e não deslargam nunca. É uma exigência logística, digamos. Até aqui, não há originalidade nenhuma, portanto. Vamos lá então ver se acontece alguma coisa nos diálogos e nas situações, que é onde neste tipo formatado de sitcoms se pode fazer a diferença. Lembro-me deste, completamente hilariante, genial, até às lágrimas: Um gajo deixa a porta aberta do apartamento. Vem alguém e rouba uma televisão. Seinfeld diz ao outro: olha, eu tinha comprado uma fechadura nova e tudo. Mas acontece que para a fechadura funcionar a porta tinha que estar fechada! É o clic! Sai uma gargalhada do enlatado e o planeta sacode e muda a rota com o impacte das gargalhadas gerais! Eu só achei vagamente engraçado, o que imagino seja um crime de Lesa-Seinfeld. E pronto, de repente não me lembro de mais nenhuma cena... Eu, em matéria de humor sou mais da escola inglesa. Não falo sequer dos Monthy Python (de joelhos!). Vejam o Big Train, para mim o maior da última década, ou o Liga de Cavalheiros, o The Office, ou o Coupling, noutro registo, mais “americano”. Americanos mesmo, não perdia, por exemplo, o The King of Queens, que passou cá com o título parvo de Eu, Ela e o Pai, sem nada de especial ou original, mas com diálogos inteligentes e bem escritos que me faziam rir às gargalhadas. E não me puxem pela língua senão ponho-me aqui a falar dos Sopranos, esse grande clássico da máfia psicanalítica….não, deste acho que não falo. Prezo muito a amizade dos meus amigos.

12/01/05

Arquivos do Porco: o dia em que os Stones tocaram no meu quintal, por Couve Flor

Pois é verdade, quantas almas de entre vós, ó mortais, se podem gabar de ter tido os Rolling Stones a tocar no vosso quintal. Roam-se de inveja e fixem esta merda: OS ROLLING STONES TOCARAM NO MEU QUINTAL. hehehehe! Isto é, no Estádio Cidade de Coimbra, a escassa centena de metros da minha varanda.
Esse concerto, no dia 27 de Setembro de 2003, foi um dos momentos altos do Porco. O Porco esteve lá unido: Tinóni, Mangas, Mau, Nini, Vaice, Grunfo, JP e Moi. Tudo com as respectivas famílias. Uns foram para a bancada, outros para a linha da frente. Ali, onde se podiam ver as rugas do Mick Jagger, a careca do Charlie Watts, a sola das sapatilhas aceleradas do Ronnie Wood e o que resta do Keith Richards: a guitarra.
Em Agosto, o Vaice tinha ido de férias para Espanha onde tinha conduzido umas centenas de quilómetros, sob um calor insuportável, para assistir a um anunciado concerto dos Stones em Marbella. Aí chegado soube que Lord Jagger estava ligeiramente indisposto! O concerto foi adiado. Fosse outro que não Sua Alteza Real, Cavaleiro do Império, e o Vaice teria proferido impropérios capazes de arruinar a reputação a uma virgem. Mas afinal, sendo quem era, o caso era compreensível, elogiável até, e o Vaice limitou-se a fazer as mesmas centenas de quilómetros, agora de regresso, sem balbuciar, sem murmúrio ou blasfémia.
Chegados a Coimbra no final das férias, os jornais locais anunciam em primeira mão: «Rolling Stones vão tocar no novo estádio». Incrível, Jagger é Deus e Deus é o mensageiro das súplicas do Vaice. Ainda a tinta estava fresca na primeira página do «Calinas» e já a malta estava no posto da Galp à espera que a bilheteira abrisse. No dia do espectáculo, lá estávamos, na linha da frente. No final, o papel do alinhamento das canções veio ter às mãos do Vaice. Ei-lo agora revelado ao Mundo, aqui mesmo no Tapor, digitalizado no topo deste "post". Como uma relí­quia do Sagrado Lenho, qual ossada de santo, cabelo de mártir em relicário de prata, o Vaice depositou-mo nas mãos, envolto em protectora capa de plástico, para que o digitalizasse. Este mesmo papelinho que aos pés de Jagger & Richards lembrava o alinhamento das canções, este naco de papel onde os mitos pousaram os olhos e onde, quem sabe, até podem ter tocado com a ponta dos dedos, está aqui no Tapor. Até pode ser que um gafanhoto, um pingo de saliva jaggeriana tenha saltado daqueles lábios carnudos que revolucionaram os costumes ocidentais cantando arrastadamente e com desassombro escandaloso que o homem não conseguia ter satisfação, e aterrado nesta folha de papel A4 de 80 gramas. É possível. É este papel que está neste preciso momento entre as minhas mãos, passou pelo meu scanner (yessss!) e ficou digitalizado para, assim imaterializado, poder ser por vós comungado num elevado momento de misticismo eucarístico.

04/01/05

A hipótese idiossincrásica na estruturação do substrato metanarrativo da filmografia de Manoel de Oliveira, por José Hersseling*

A afirmação do desiderato gnoseológico, de acordo com a tradição clássica que podemos fazer remontar aos ensinamentos de Hipocrofonte, no século VI a. C., leva-nos a supor que, numa perspectiva meramente metahistórica, o Homem não supera o seu estatuto imanentista pela simples inflexão dos pressupostos axiológicos. De facto, ao compulsarmos as recentes conclusões do professor Richard von Graefe, nomeadamente no terceiro capítulo da sua obra de referência Die Vereinbarkeit von gottliche Vorsehung und menschlicher Freiheit bei Boethirus facilmente concluiremos do solipsismo subjacente a tal processo. Urge portanto, analisar a filmografia à luz dos mais recentes avanços epistemológicos, de um prisma exclusivamente formal, escusado será adiantar.
Assim, temos em primeiro lugar, aquilo que podemos designar como a estupefacção do sujeito remanescente, o que é dizer, a radicação do Eu cósmico profundo na tradição de raíz anglo-saxónica, demonstrável, por exemplo, pelas suposições lógicas da Escola Hermenêutica Formalista de Salzburg. Dentro deste ângulo, escatológico e pampsiquista, somos forçados a considerar a personagem como um exercício redundante. Caso contrário, a perspectivação teleológica resolver-se-ia pela futilidade nominal.
Consideremos, depois, o argumento da introspectividade derivativa. Aplicado o modelo sociológico e feito o tratamento estatístico adequado, concluiremos pela formulação do enunciado seguinte: se A resulta da intersecção do grupo B na trajectória de C, logo o confronto de A com C- implica que consideremos o efeito da chamada variante de Vaerhagen que, como todos sabemos, só é aplicável aos casos prescritos na tabela de Hasnundssen. O que não é o caso. Logo, resulta inválida a tese que R. Schneider propôs ao 3º Congresso Cinéfilo de Tributação Exponencial.
Fica pois demonstrado que Oliveira continua igual a si mesmo.

* Bolseiro Avançado da Fundação Friederich Schweissmuller no Portugiesisch Institut da Universidade de Munchen