21/08/15

Snobismo de Viajante, por Chac Mool



Leio as páginas de um livro de um viajante que visita Chichen Itza, a famosa ruína maia, no México, e o paradoxo é evidente. O escritor despreza as hordas ignaras de turistas anafados como se fossem pragas de gafanhotos predadores. Fala do lixo, do linguarejar barulhento, dos guias de camisa branca que vendem os seus clichés por 10 dólares e das multidões de aldeões que enxameiam as ruínas com as suas bancas de artesanato tétrico, feito de caveiras, serpentes, jaguares e guerreiros decapitados. Conclui que Chichen Itza, como todos os lugares turísticos do mundo, seria muito melhor sem a praga de turistas arrebanhados em agências low cost. E, no entanto, a contradição é evidente: este escritor é, também ele, um turista. Porventura o mais nocivo de todos porque o livro que escreveu possui o tremendo poder de ampliar a sua mensagem e de lhe multiplicar a potência, atraindo, desse modo, muitos mais turistas que o simples passa-palavra da maioria. Ele reclama, à partida, um estatuto de observador etéreo que não tem, o do viajante aureolado que paira sobre as multidões de gordos. Mas está de má fé. Para todos os efeitos, naquele momento, ele é só mais turista, um entre muitos, que contribui na exacta medida de todos os outros para aumentar a pegada ecológica que vai estragando Chichen Itza, a baía de Guanabara, Veneza, Benidorm, Albufeira, o mundo... De nada lhe vale – a não ser enquanto mecanismo de sublimação – tentar convencer-se de que é o viajante-querubim sem corpo, a voz sem língua nem saliva do escritor imaculado. Errado – ele pesa os mesmos 100 kilos de todos os outros. É um turista, um vil turista!
É por isso que todos os textos que escarnecem o turismo de massas estão feridos de um snobismo implícito e inevitável que é ainda pior quando não tem consciência de si. No preciso momento em que escrevo uma palavra que seja a denunciar os horrores do turismo, o viajante transforma-se num possidónio e é essa a armadilha em que caem todos os escritores – grandes ou pequenos – de viagens.
Talvez fosse mais honesto se o viajante que não quer ser turista reconhecesse o óbvio: que sem o malfadado turismo de massas os destinos de sonho jamais passariam de locais virtuais. Graças ao turismo de massas somos colocados nas ilhas Phi Phi, na Tailândia, com mais umas centenas de indesejáveis. Lamentamos estes magotes que nos conspurcam o sonho. Mas sem eles, pura e simplesmente, não poderíamos lá ir e Maya Beach continuaria a não passar de um paraíso inacessível de que apenas usufruiríamos enquanto espectadores espojados num sofá a telever o filme A Praia e a invejar o Brad Pitt. Estar nos sítios com todos esses milhares de anafados é a única forma do real não nos escapar completamente como areia por entre os dedos. Devíamos estar gratos e não zangados com as multidões que fazem bichas intermináveis no Louvre e no Guggenheim e com as algas castanhas que conspurcam as águas azul cobalto dos resorts caribenhos. Afinal, somos todos turistas e, no mundo real, só existem duas formas de o evitarmos:
- uma, autêntica e eficaz, é não sairmos de casa. Mas isso significa a redução do nosso mundo à forma de famélicas imagens que poisam fugazmente nos écrans do computador e da televisão ou nas páginas mentirosas de um livro ilustrado. A outra, a falsa, é estar de má fé. Consiste em auto convencermo-nos de que somos antes viajantes e, como dizia Paul Bowles, «o viajante é o contrário do turista». O problema é que cada um dos milhares de turistas que grelham ao sol de Albufeira está convencido de que é ele esse ser excepcional, o viajante, e que todos os outros são os malfadados turistas. Era bom que os nossos paraísos estivessem desertos, à nossa espera, mas isso é cada vez mais difícil.

14/08/15

Banhistas, por Ikkil

Playa del Carmen, México, 3 da tarde. Multidão a banhos. Vêm-se cabeças e braços, não se sabe se pertencem a pessoas altas ou baixas, louras ou morenas, mulheres ou homens, pretos ou brancos. Contudo, no meio daquela babilónia, identifico, sem margem para dúvidas, dois indiscutíveis americanos de quem, praticamente, só vejo os braços. E como se reconhecem braços americanos? Fácil: pela forma como lançam a bola um ao outro, a técnica é de basebol. É notável como transportamos a cultura connosco, mesmo imersos a banhos numa praia no meio de uma multidão de cabeças anónimas. Basta um gesto e está lá, agarrada e indissociável,  a marca da identidade.

O japonês, esse só o identifico a postereori: é o tipo de olhos em bico que está há uma hora com água pela cintura a recolher o sargaço-praga-do-mar e a atirá-lo para os lados enquanto roga pragas furibundas de sol nascente. Maldito sargaço que lhe estraga o postal, a praia, as férias, vem um tipo de tão longe para isto...

13/08/15

Rambutões, por Quetzal

O rambutão é um fruto de contrastes. Por fora parece um ouriço marinho, mas é um fruto terrestre. Quando maduro oscila entre um vermelho vivo e um castanho amarelado. A polpa tem escamas pontiagudas que parecem espinhos mas que, afinal, são dóceis como fios pendentes e inofensivos. Abre-se e, lá dentro, o fruto é branco aquoso, de textura aveludada como a pele de um bebé. É doce ao gosto e muito fresco, quase licoroso, mas no final vem a surpresa - o caroço. O caroço é ácido, o que é notável porque contrasta e corta o doce do fruto. Bem se pode dizer que não se chega a saber o que é um rambutão até chegar ao caroço e sentir este maravilhoso contraste entre a polpa dce e o caroço ácido (e tóxico, segundo alguns entendidos, mas não importa). Eu nunca antes tinha provado um fruto cujo caroço fosse tão decisivo. Geralmente o caroço (da cereja, da ameixa, do pêssego ou da nêspera) é uma excrescência que não está ali a fazer nada e que só serve para se deitar fora. Mas no rambutão não é assim, a acidez do caroço é tão fundamental que sem ela, provavelmente, o fruto tornar-se-ia excessivamente doce.
Espinhos que, afinal, são franjas; do mar e da terra; vermelho e branco; doce e ácido; tóxico e refrescante... O rambutão é o fruto  dos enganos, ou então, a luta feliz dos opostos.

Quintana Roo, 7/2015

15/04/15

The Beach, por Vietcong

Maya Beach é a prova de que Deus não existe. Porque se Deus tivesse o poder de criar sítios como este, então faria todo o mundo assim. Maya Beach sugere uma espécie de argumento de Leibniz sobre a perfeição do mundo mas ao contrário. Um mundo que não é todo como Maya Beach mas em que existe Maya Beach só pode admitir a perfeição como acidente. Diz-se que as maiores provas da existência de Deus são a harmonia e a beleza da sua criação. Para Leibniz este era o melhor dos mundos possíveis. Mas Maya Beach faz-me pensar no contrário: porque é que Deus não fez todo o mundo assim, porque é que apenas fez um sítio como este? Porque é que a maior parte dos sítios do planeta que habitamos são pardieiros miseráveis como o hotel Manolo em Madrid, o restaurante O Rei do Cozido na Baixa da Banheira ou o Iraque inteiro?  Maya Beach só pode ser um acidente feliz da natureza, um maravilhoso acaso cósmico, porque se houvesse realmente um Deus capaz de criar tal beleza, Ele fá-la-ia existir sempre e em todo o lado e não só aqui, nas ilhas Phi Phi, ao largo de Phucket na Tailândia. Porque é que Deus não fez todo o mundo assim? Pois, só pode ser porque não existe. (2/8/13)