30/06/05

Coimbra, por Mangas

Coimbra nunca foi um bom sítio para fazer amizades: aqui, quando amamos verdadeiramente alguém, acompanha-nos para sempre e dói-nos, mas nunca queremos que seja de outra forma. Ao longo dos anos sustentamos por correspondência a troca de emoções dos livros que lemos, porque é melhor escrever as coisas quando precisamos de as sentir de mais do que de menos. Ainda que todos os universos desses livros sejam apenas um, neles aprendemos a saltar do primeiro para o último consoante nos apetece rir ou resistir. Admiramos uma vez por ano a pontualidade dos jaracandás a desabrochar no tal dramático violeta-fogo e, com o pretexto de estarmos juntos, passamos noites inteiras a comer, a provar vinhos às cegas, a achar que o único pecado capital é a estupidez, e a discutir sobre coisas do género: pedir meias doses, porque raio se chama dose?, é porque está calculado: é uma dose!, um homem, uma dose!, quem pede meia dose é meio-homem!; cozido à portuguesa é comida de homem, meia dose de cozido é... paneleirice!; o pior é pedir meia dose de qualquer comida terminada em inho ou inhos, a saber - meia dose de bifinhos, meia dose de lulinhas!; e nunca esquecer que comidas que são de homem, para além do cozido, são a feijoada, mão de vaca, coelho à caçador e todas as partes do porco, porque tudo o que tiver porco é de homem...
Em Coimbra sobra-me o tempo que sempre me falta para fazer tudo o que me propus. Contemplar é uma variante artística da solidão porque esta cidade é dos raros sítios que conheço onde a peculiaridade de cada homem é tão secreta quanto passível de ser admirada em silêncio por outro homem. As tradições não fazem crer a ninguém que de facto ainda existem, a história é feita de graves mas festivos gestos a cada volta do sol quando as noites são bailarinas e os dias densos como azeite virgem. Uma vez sonhei que o bosque, em Vale de Canas, me engoliu numa noite incendiada e que de Coimbra perdurará o vento que a atravessou reconhecendo os passos descalços de uma mulher nas águas. Amanheceu três vezes nesse meu sonho, quase sempre, com o suor a saber a desejo. Acordei numa rua que se chamava “Todas as Ruas Conduzem ao teu Nome”. Porém, eu nunca saberei se naquele preciso instante, Coimbra dormia a sonhar comigo nem o quanto o significado desse sonho é claramente revelador do nosso elo de ligação ou alienação. Estando cá ascendi ao conhecimento do mundo. Parti muitas vezes, de todas elas, o mais distante que estive de alguma coisa foi de mim mesmo. Convenci-me disto pelo sentidos órfãos de nunca ter pertencido a lugar algum, e embora as minhas paixões sejam livres de imigrar, acredito agora, quanto mais não seja pela recordação de um rio ou de uma praça que, os teus braços Coimbra, são um cais condenado onde se regressa sempre.
Coimbra tem personalidade de um duplo. Quer dizer: faz o papel do tipo que não é a estrela do filme, mas é imprescindível para rodar as cenas mais perigosas, arriscando as costelas e a carne sem que no final seja convidado para a sessão de autógrafos. No passado acredita-se porque foi jovem e indestrutível, envolveu-se em brigas monumentais e venceu sempre. Mesmo quando foi derrotado. Quem souber escutar vozes e comportamentos, aplaca o saudosismo de quem gosta de contar histórias. O lugar ao sol que muitos procuram pode não estar aqui, pacificamente, à sua espera. Não é como um tipo que imigra para Antuérpia, encontra meia dúzia de judeus com quem não se dá, trabalhos baratos que, sem grandes alternativas, aceita para pagar o quarto, as refeições e tem a noção clara de ter sacrificador algo que deixara para trás quando decidira partir, porém, aguenta até ao fim esperando que a sorte lhe sorria um dia. Nunca é tão linear para quem chega, nem tão dolorosamente patriótico para quem cá nasceu e cresceu.
Coimbra podia ser apenas capa de um disco em vinyl da Amália. Uma fotografia tirada sobre a ponte mostrando mulheres lavadeiras entretidas a esticar mantas e lençóis na areia das pequenas ilhotas, das quais o Mondego se escondia há muitos anos atrás quando ninguém lhe impunha ser poderoso. Se Coimbra fosse banhada pelo oceano, seria uma viúva por quem cantariam guitarras solenes aos barcos de partida para preservar a saudade eterna de uma mãe ou de uma puta amante.
Coimbra é uma conversa por terminar que se tem com alguém pela madrugada adentro, quando as grandes ideias surgem mais facilmente. É como permanecer sentado nos minutos seguintes, no mesmo banco de jardim onde ela esteve sentada por nós, até se ter cansado de esperar e ter partido.
Coimbra não tem estradas planas que permitam percorrer de bicicleta a distância mais curta entre dois lugares, mas tem velhos a vender o Borda D`Água. Em Agosto pode ser uma experiência devastadora e solitária, mas quando chove, o cinzento dos finais de tarde poderia muito bem ser o recolhimento mais afável e constrangedor de todos os lugares, se possuísse aquele cheiro característico a terra molhada que nunca mais existirá nas cidades. Certa tarde em Coimbra ocorreu-me que devia haver mais homens com nomes que lembrassem algo parecido a alguns títulos de filmes como, Tragam-me a Cabeça de Alfredo Garcia ou Os Duros não Dançam. Machos sensíveis. Serenos. Capazes de explodir em furiosas lideranças. Inspirando um misto de temor e respeito nos outros homens e, ao mesmo tempo, sofrer até à morte pelas mulheres que os amam. Capazes de tudo sem que fossem postos em causa.
O meu avô paterno era assim. Chamava-se Leonardo. Foi ele a razão de eu para cá ter vindo viver um dia.

28/06/05

LADRÕES!, por Denunciador Implacável

Aqui há tempos, roubaram esta ideia:







Agora, roubaram esta:








São BURROS porque pensam que não serão descobertos, são LADRÕES porque usufruem do trabalho alheio. Ficarão Impunes? (a página já não está on-line)

Urbanismo, por Cãocomsono

Desmantelaram as fábricas, empacotaram-nas e levaram-nas para longe.
Agora, os terrenos vão ser, como se diz agora, urbanizados.
Eles querem dizer (mas não o dizem, limitam-se a fazê-lo) - dormitórios.
O que aí vamos ter é tão fácil e tão deprimente: gaiolas de periquitos empregados nos hospitais, nos bancos, nas seguradoras e no que resta de comércio na cidade.
A minha cidade.
A minha cidade adormecida nos dormitórios, a minha deprimida cidade universitária e tesa, plebeia e beata, bonita e triste como uma noiva contrariada.
Posso bem com a minha cidade – voltarei a partir.
É um domingo. Hoje, dormirei, também eu, por cá. Tropeço já na sonolência, aliás, pelo cair do dia.
Cairei eu na noite dormitória.

27/06/05

Ai Portugal, por Metágua

DESARROLLO-PORTUGAL:
Lejos de Europa. Mario de Queiroz

LISBOA, 21 sep (IPS) - Indicadores económicos y sociales periódicamente divulgados por la Unión Europea (UE) colocan a Portugal en niveles de pobreza e injusticia social inadmisibles para un país que integra desde 1986 el ”club de los ricos” del continente.

Pero el golpe de gracia lo dio la evaluación de la Organización para la Cooperación y el Desarrollo Económicos (OCDE): en los próximos años Portugal se distanciará aún más de los países avanzados.

La productividad más baja de la UE, la escasa innovación y vitalidad del sector empresarial, educación y formación profesional deficientes, mal uso de fondos públicos, con gastos excesivos y resultados magros son los datos señalados por el informe anual sobre Portugal de la OCDE, que reúne a 30 países industriales.

A diferencia de España, Grecia e Irlanda (que hicieron también parte del ”grupo de los pobres” de la UE), Portugal no supo aprovechar para su desarrollo los cuantiosos fondos comunitarios que fluyeron sin cesar desde Bruselas durante casi dos décadas, coinciden analistas políticos y económicos.

En 1986, Madrid y Lisboa ingresaron a la entonces Comunidad Económica Europea con índices similares de desarrollo relativo, y sólo una década atrás, Portugal ocupaba un lugar superior al de Grecia e Irlanda en el ranking de la UE. Pero en 2001, fue cómodamente superado por esos dos países, mientras España ya se ubica a poca distancia del promedio del bloque.

”La convergencia de la economía portuguesa con las más avanzadas de la OCE pareció detenerse en los últimos años, dejando una brecha significativa en los ingresos por persona”, afirma la organización.

En el sector privado, ”los bienes de capital no siempre se utilizan o se ubican con eficacia y las nuevas tecnologías no son rápidamente adoptadas”, afirma la OCDE.

”La fuerza laboral portuguesa cuenta con menos educación formal que los trabajadores de otros países de la UE, inclusive los de los nuevos miembros de Europa central y oriental”, señala el documento.

Todos los análisis sobre las cifras invertidas coinciden en que el problema central no está en los montos, sino en los métodos para distribuirlos.

Portugal gasta más que la gran mayoría de los países de la UE en remuneración de empleados públicos respecto de su producto interno bruto, pero no logra mejorar significativamente la calidad y eficiencia de los servicios.

Con más profesores por cantidad de alumnos que la mayor parte de los miembros de la OCDE, tampoco consigue dar una educación y formación profesional competitivas con el resto de los países industrializados.

En los últimos 18 años, Portugal fue el país que recibió más beneficios por habitante en asistencia comunitaria. Sin embargo, tras nueve años de acercarse a los niveles de la UE, en 1995 comenzó a caer y las perspectivas hoy indican mayor distancia.

¿Dónde fueron a parar los fondos comunitarios?, es la pregunta insistente en debates televisados y en columnas de opinión de los principales periódicos del país. La respuesta más frecuente es que el dinero engordó la billetera de quienes ya tenían más.

Los números indican que Portugal es el país de la UE con mayor desigualdad social y con los salarios mínimos y medios más bajos del bloque, al menos hasta el 1 de mayo, cuando éste se amplió de 15 a 25 naciones.

También es el país del bloque en el que los administradores de empresas públicas tienen los sueldos más altos.

El argumento más frecuente de los ejecutivos indica que ”el mercado decide los salarios”. Consultado por IPS, el ex ministro de Obras Públicas (1995-2002) y actual diputado socialista João Cravinho desmintió esta teoría. ”Son los propios administradores quienes fijan sus salarios, cargando las culpas al mercado”, dijo.

En las empresas privadas con participación estatal o en las estatales con accionistas minoritarios privados, ”los ejecutivos fijan sus sueldos astronómicos (algunos llegan a los 90.000 dólares mensuales, incluyendo bonos y regalías) con la complicidad de los accionistas de referencia”, explicó Cravinho.

Estos mismos grandes accionistas, ”son a la vez altos ejecutivos, y todo este sistema, en el fondo, es en desmedro del pequeño accionista, que ve como una gruesa tajada de los lucros va a parar a cuentas bancarias de los directivos”, lamentó el ex ministro.

La crisis económica que estancó el crecimiento portugués en los últimos dos años ”está siendo pagada por las clases menos favorecidas”, dijo.

Esta situación de desigualdad aflora cada día con los ejemplos más variados. El último es el de la crisis del sector automotriz.

Los comerciantes se quejan de una caída de casi 20 por ciento en las ventas de automóviles de baja cilindrada, con precios de entre 15.000 y 20.000 dólares.

Pero los representantes de marcas de lujo como Ferrari, Porsche, Lamborghini, Maserati y Lotus (vehículos que valen más de 200.000 dólares), lamentan no dar abasto a todos los pedidos, ante un aumento de 36 por ciento en la demanda.

Estudios sobre la tradicional industria textil lusa, que fue una de las más modernas y de más calidad del mundo, demuestran su estancamiento, pues sus empresarios no realizaron los necesarios ajustes para actualizarla. Pero la zona norte donde se concentra el sector textil, tiene más autos Ferrari por metro cuadrado que Italia.

Un ejecutivo español de la informática, Javier Felipe, dijo a IPS que según su experiencia con empresarios portugueses, éstos ”están más interesados en la imagen que proyectan que en el resultado de su trabajo”.

Para muchos ”es más importante el automóvil que conducen, el tipo de tarjeta de crédito que pueden lucir al pagar una cuenta o el modelo del teléfono celular, que la eficiencia de su gestión”, dijo Felipe, aclarando que hay excepciones.

”Todo esto va modelando una mentalidad que, a fin de cuentas, afecta al desarrollo de un país”, opinó.

La evasión fiscal impune es otro aspecto que ha castrado inversiones del sector público con potenciales efectos positivos en la superación de la crisis económica y el desempleo, que este año llegó a 7,3 por ciento de la población económicamente activa.

Los únicos contribuyentes a cabalidad de las arcas del Estado son los trabajadores contratados, que descuentan en la fuente laboral. En los últimos dos años, el gobierno decidió cargar la mano fiscal sobre esas cabezas, manteniendo situaciones ”obscenas” y ”escandalosas”, según el economista y comentarista de televisión Antonio Pérez Metello.

”En lugar de anunciar progresos en la recuperación de los impuestos de aquellos que continúan riéndose en la cara del fisco, el gobierno (conservador) decide sacar una tajada aun mayor de esos que ya pagan lo que es debido, y deja incólume la nebulosa de los fugitivos fiscales, sin coherencia ideológica, sin visión de futuro”, criticó Metello.

La prueba está explicada en una columna de opinión de José Vitor Malheiros, aparecida este martes en el diario Público de Lisboa, que fustiga la falta de honestidad en la declaración de impuestos de los llamados profesionales liberales.

Según esos documentos entregados al fisco, médicos y dentistas declararon ingresos anuales promedio de 17.680 euros (21.750 dólares), los abogados de 10.864 (13.365 dólares), los arquitectos de 9.277 (11.410 dólares) y los ingenieros de 8.382 (10.310 dólares).

Estos números indican que por cada seis euros que pagan al fisco, ”le roban nueve a la comunidad”, pues estos profesionales no dependientes deberían contribuir con 15 por ciento del total del impuesto al ingreso por trabajo singular y sólo tributan seis por ciento, dijo Malheiros.

Con la devolución de impuestos al cerrar un ejercicio fiscal, éstos ”roban más de lo que pagan, como si un carnicero nos vendiese 400 gramos de bife y nos hiciese pagar un kilogramo, y existen 180.000 de estos profesionales liberales que, en promedio, nos roban 600 gramos por kilo”, comentó con sarcasmo.

Si un país ”permite que un profesional liberal con dos casas y dos automóviles de lujo declare ingresos de 600 euros (738 dólares) por mes, año tras año, sin ser cuestionado en lo más mínimo por el fisco, y encima recibe un subsidio del Estado para ayudar a pagar el colegio privado de sus hijos, significa que el sistema no tiene ninguna moralidad”, sentenció. (FIN/2004)

22/06/05

Sábios Despachos, por Brilhantina das Águas





in «Diário da República»; IIIª série; nº 110; 8 de Junho 2005; p. 12328.

20/06/05

O Chapelle, por MuambaEArrozDoce

Numa daquelas noites de pasmaceira em que só apetece fazer zapping, fui ter a um episódio do Chapelle Show, da galáxia do Comedy Central, na Sic Comédia. Nem sequer conhecia o Chapelle, mas como tudo o que é Comedy Center me parece bem, estacionei por ali, à espera. Se naquele momento tivesse estacionado um pouco mais atrás tinha perdido o sketch mais genial que vi até hoje. Vale a pena começar por dizer que tudo vale a pena nas stand up comedy deste humorista negro com um sorriso sonso, de bom rapazinho, que é ao mesmo tempo uma espécie de destilaria de ácido sulfúrico. Mas este episódio em especial merecia ser exibido todos os dias em canal aberto e horário nobre. Contado perde um bocado, mas vou tentar: Um negro cego de nascença é criado na convicção de que é branco. Mais: é criado na convicção de que, por ser branco, é superior aos negros. Chega assim a velho, agarrado a uma bengala, a fazer discursos inflamados contra os “damn niggers” e a discursar numa assembleia do KKK, com um capuz na cabeça, à boa maneira do Klan, numa cena completamente hilariante. Se bem me lembro, ninguém terá coragem de dizer ao pobre velho que é negro. É o sketch mais demolidor que vi até agora contra o racismo e acho que por causa dele nunca mais vou conseguir ver uma manifestação de “orgulho branco” sem me rir às gargalhadas. Branco ou negro ou amarelo, não importa. Se estivesse estado no Martim Moniz no sábado, acho que ia partir o coco a ver aqueles atrasados mentais com problemas de queda de cabelo e a lembrar-me ao mesmo tempo do velho do Chapelle. Uma atitude nada sensata, é verdade, mas o riso é uma função incontrolável, paciência. E de qualquer forma, existem poucas coisas mais ridiculas do que o racismo. Já é suficientemente hilariante que aqueles patetas achem que descendem em linha directa de uma qualquer divindade celta. OK, esqueçam agora estas patetas e fixem isto: Dave Chapelle e Chapelle Show. E Comedy Center, onde se reune uma quantidade impressionante de malucos geniais e politicamente incorrectos, incluíndo o Jon Stewart, que acho que todos conhecem.

16/06/05

Bragança Revisitada e o Fumeiro, por Mangas

Eu cresci em Bragança e lá fiz o ciclo e o liceu. Quando parti, há muitos anos atrás, prometi que regressaria muitas vezes para ver os amigos e os lugares nos quais fiz as primeiras aprendizagens de emoções e sabores. Mas a jornada teceu-me novos laços, outros caminhos, e o passado nem sempre me esteve à mão de alcançar. Bragança, hoje, guarda poucas lembranças desses tempos em que nos conhecemos – a cidade cobrou a exigência de um desenvolvimento urbano que estivera adiado durante décadas, expandiu-se, criou alternativas de fixação, viu nascer institutos politécnicos e casas de putas; a minha expansão física foi meramente em largura. Houveram livros, ilusões e outras cidades nas quais cresci entretanto, mas isso não é para aqui chamado. O lameiro onde jogava à bola, é agora um bairro dividido por uma avenida de duas faixas. O Tonho morreu com uma overdose, o César casou e foi para o Brasil. Já não se vende pão com chouriço no forno da Mãe de Água. Abateram aquele pomar no bairro dos ciganos onde costumávamos ir roubar fruta. Fizeram lá um bar...

Contudo, para além das gentes e do pulsar sagrado de alguns lugares, algo se manteve imutável e preservado: a excelência do fumeiro tradicional, esse riquíssimo património de sabores e paladares cuja chancela e imagem de marca reside em Vinhais, mas que é extensível a todas as capelas nordestinas e na base do qual está a cura do porco bísaro. Contrariamente ao porco ibérico, espécie que abunda por terras alentejanas e que se alimenta essencialmente de bolota num clima ameno, o porco bísaro come forragem e castanha durante todo o inverno. O meu avô dava-lhes também batata, grelos e maçã de refugo, mas a castanhita estava sempre presente. O resultado é um suíno mais encorpado do qual se extrai uma carne mais gorda, mas muito suculenta e saborosa. Cá para mim, sempre achei que o porco ibérico é para presunto e o porco bísaro é para enchidos.

Recordo-me daquelas manhãs de Fevereiro em que a minha mãe acendia a lareira e, num ritual de gestos simples e acolhedores, torrava o pão, trepava a um banco e com a ponta da navalha cortava o fio de uma alheira que depois ajeitava numa tenaz aberta sobre as brasas. Que àquela lhe pusera fé, dizia-me a sorrir, como se de uma intenção devota fosse aquele instante mascarado. Afinal, tão igual a tanto outros nos quais punha ela as mãos. Simples e acolhedoras O aroma inconfundível daquela massa de pão caseiro, carnes e azeite, invadia a cozinha e pairava, como um lento desmaio, na luz fria da geada fora de portas. O cheiro de uma alheira assada pela manhã, é como o cheiro do alho em azeite a escaldar: cheira a vitória. Dir-vos-ei que não é qualquer pão que faz uma alheira distinta – fabrica-se em fornos de lenha com fermento levedado, água, farinha de trigo e sal, corta-se, depois de cozido, em fatias grossas que posteriormente se embebedam na calda resultante da cozedura das carnes onde não deverá faltar, obrigatoriamente, a cabeça do reco. São esta pasta rica e aromática e as carnes desfiadas de porco e aves, a razão do prazer. Essas salsichadas que se encontram por aí, lisinhas como balões insuflados e apregoadas como sendo de Mirandela são, muitas vezes, um produto industrial de qualidade rasca. À falta de rotulagem ou de menção “Produto Específico”, desconfiai da tripa: tripa lisa é tripa plástica e o fumeiro transmontano leva tripa de porco, ou de vaca no caso da alheira. Quando pendurada em fila numa estaca cimeira junto à lareira, a alheira, a chouriça de carne ou o salpicão, pinga os primeiros dias, baba o excesso de gordura junto à camada externa da tripa. Depois, e por acção do calor seco e do fumo, vai ganhando uma coloração mais baça e acastanhada. A tripa vai gradualmente perdendo o seu brilho e engelhando aos contornos suaves do recheio da alheira, ou dos bordos salientes das carnes no caso do salpicão e da chouriça de carne. Tal como o vinho que amadurece em cascos de carvalho, essa metamorfose é a essência da cura, dos aromas secundários e dos sabores apurados do produto final. Na minha cozinha, quando os últimos pingos mirravam em gota colados à tripa e desapareciam, era o sinal exacto das primeiras alheiras assadas.

O salpicão é outra loiça, é outro enlevo. Diz-se que é o marisco do transmontano, mas a comparação é pobre e infeliz. Primeiro porque os frutos do mar não têm a devoção artesanal da mão do homem; segundo, porque se a frescura e a integridade ao palato do marisco depende, regra geral, de uma breve escaldadela em água, um punhado de sal e frio mantido, já o salpicão, esse, é elaborado com as carnes de lombo imaculado do porco que se submetem a um adoba de vinho tinto, alho, sal, louro e colorau. Só após é que os nacos de lombo impregnados até à alma com estes temperos primários são calcados para dentro de uma tripa de porco grossa e robusta quanto baste para amparar o embate. O que salta, depois da cura, é um delicadíssimo equilíbrio entre o sabor da carne avinhada e o aroma fumado do louro e do alho. Manjar finíssimo de corte à navalha para degustação entre amigos e camaradas de longas expedições.

Faz-se o fumeiro logo após a matança do porco, por alturas de Novembro a Janeiro quando os primeiros nevões assomam aos quintais e os estorninhos e os melros ficam cegos pela brancura alva da neve; a alheira pode pôr-se na brasa passadas algumas semanas, o recheio é fresco e evolui no calor, mas devem decorrer alguns meses até que se possa meter o dente nos primeiros salpicões. O Verão, os vastíssimos campos de trigo aloirado e as adegas frescas das aldeias de Penhas Juntas e Eiras Maiores, com aquele cheiro acamado a vinho tinto e pipas, são as melhores glorificações de um salpicão cortado em fatias generosas. A acompanhar, recomenda-se tão somente um pão escuro de centeio com côdea tosca e a estalar sobre a cantaria. (Não foi disto, de certeza, que tu morreste de overdose, Tonho... Sempre te disse que devias era meter porco para o sangue e não cavalo, meu grande bísaro!)

Ide por lá. Ide por Bragança, no Verão, quando as cerejas e as uvas “tomates de galo” amadurecem à sombra dos terraços, subi ao castelo que data do séc. XV e visitai a Domus Municipalis. Vereis que vale a pena. Se fordes em Maio, levai os miúdos à Feira das Cantarinhas. Mas se fordes na primeira semana de Fevereiro e passardes por Vinhais, acautelai-vos: o que aqui foi escrito e descrito, em nada se assemelha ou equivale ao que ireis saborear. Ide e depois me direis.

15/06/05

Lúcia e Cunhal, na hora do funeral!

Uma coisa é verdade: Lúcia teve mais malta no funeral. De resto, cada um se santifica à sua maneira.

09/06/05

"Bacalhau com Hortelã", Por Maria de Lurdes Automotora

Tem sido muito frequente, desde que o Tapornumporco existe, ser abordado na rua por desconhecidos que me reconhecem como um dos autores do blog. Confesso que tem sido agradável, mas ultimamente as pessoas têm-se dirigido a mim de forma agressiva, perguntando: “Então vocês, que tanto escrevem sobre comida e bebida, nunca se lembraram de fazer um post com uma receita de culinária?”. Bom, eu fico sem saber o que dizer e tento desviar a conversa: “E os jacarandás? O senhor já reparou nos jacarandás este ano? Olhe ali um atrás de si, olhe ali, rápido!” Não adianta…respondem-me sempre “quer-me parecer que vocês é só paleio…” e eu acabo por ter de fugir sob a ameaça de pedradas e chapeladas. É assim todo o santo dia, e tenho inclusive recebido imensas chamadas anónimas de húngaros aos gritos. Pois bem, é chegada então a altura de fazer um post de culinária apropriadamente chamado “receita de bacalhau com hortelã”, com uma receita de bacalhau com hortelã que já testei com muito sucesso.

“Receita de Bacalhau com Hortelã”

Esfrega-se um bacalhau com palha-de-aço até desfazer. Recolhem-se os pedaços do bacalhau assim desfeito e colocam-se numa panela. Põe-se a panela ao lume e deixa-se estar assim durante cerca de um quarto de hora em lume forte. Raspa-se então o bacalhau do fundo da panela com uma colher, coloca-se dentro de um alguidar de barro, junta-se natas frescas, duas cebolas e três folhas de eucalipto e põe-se ao sol durante três semanas. Findo esse período, coloca-se dentro do alguidar um raminho de coentros. Pequeno, um raminho pequeno. Em não se conseguindo arranjar raminho tão pequeno no mercado, à cautela não se colocam coentros. Deixa-se estar assim durante mais dois minutos ao sol, não mais, sob risco de as natas azedarem com o calor. É então a altura de encher o alguidar de água morna e colocá-lo ao lume. Passados dez minutos, enche-se até cima de massa de cotovelo de tamanho médio e tritura-se com uma varinha mágica, deitando ao mesmo tempo por cima, lentamente, um fiozinho de caramelo líquido. Enche-se de seguida o alguidar com licor beirão (um cálice), massa de tomate, um pouco de azeite, banha de porco, rosmaninho, hortelã, caril, açafrão. Sobretudo, não cair no erro, tão comum entre as donas de casa, de juntar torresmos. Não se conseguindo evitar, que se cortem pelos menos os caules e se raspem os pêlos. Mexe-se então um pouco e vai a alourar ao forno. Entretanto, à parte, vai-se esmagando duas gemas de ovo (ou múltiplos de dois) num almofariz (…). Retira-se o alguidar do forno quando se formar no cimo a habitual crostazinha e expõe-se durante quinze dias na mesa baixa da sala de estar. São curiosas as reacções das visitas, acreditem. Finalmente, serve-se. Para acompanhar, aconselhamos um Barca Velha, ou um qualquer outro vinho monoparental, misturado com licor de canela a dois terços. Há também quem goste de beber estreme o licor de canela, isto é, sem mistura. Para o gran finale, um pastel de Tentúgal, um Português Suave e uma cevada adoçada com drageias.

06/06/05

Jantar da RS.T na Adega da Portela, Coimbra, no dia 5 de Junho de 2005

Aos cinco dias do mês de Junho de dois mil e cinco, reuniram os membros da RS.T na Adega da Portela, Coimbra, sob a presidência do seu mui venerável Grão Mestre, com a seguinte ordem de trabalhos:
1. Entradas: polvo ensalsado, azeitonas, queijo fresco, morcela e enchidos vários
2. Prova aberta de dois vinhos: um sul africano de nome esquisito com rolha de plástico, apresentado pelo Vasco e Ana e um Ensaios da Filipa Pato 2003, apresentado pela Bette Davis / Vivian Leigh / Lauren Bacall / Katharine Hepburn (riscar o que não interessa).
3. Alhada de cação
4. Arroz de línguas de bacalhau com línguas panadas
5. 41ª prova cega de tintos com a presentação de 6 (seis) magníficos vinhos.
7. Sobremesas e café
8. Outros assuntos

Iniciou-se o encontro com a presença dos seguintes confrades e convidados: Grunfo, partenère e rebento, Guida P., partenère e amiga de infância, Vasco e Ana M., Catherine Deneuve / Fanny Ardant /Angelina Jolie (riscar o que não corresponde à verdade), Gustavo e Carla, Sábio Ressabiado capitão de canoas-de-mar-e-guerra, Banderas (o verdadeiro, autêntico e genuíno Antonio Banderas, mas pode optar por: John Wayne, Kirk Douglas ou Jimmy Stewart), Sô Silva, Mangas e Moi. Registaram-se a s seguintes ausências: Bom ex-Mau (não confundir com Mau ex-Bom), impossibilitado de estar presente porque ficou em casa com duas louras muita giras, Xeko que mandou sms à última da hora a dizer que não ia e implorando que o deixassem pagar as despesas (súplica aceite, cabem emolumentos no valor total de 20 euros), Biçoso que deixou de ser totalista (é favor devolver o louvor e a respectiva moldura, principalmente a moldura), Nini não sei porquê, Tinóni que deve andar a aprender a mudar fraldas, Corneteiro e os já conhecidos desaparecidos em combate: Galgo, Nikki man, Ari Vatanen da Lousã, o Assis Pacheco de Pombal e o Espírito Santo da Mealhada.
Como ponto prévio, informamos que o jantar foi precedido de uma excursão canoística desde Penacova até à Portela, na qual não participei porque fui para uma breve e solitária jornada golfística ao campo da Curia.
Iniciou-se a reunião cerca das 20:00, dando cumprimento aos dois primeiros pontos da ordem de trabalhos ao mesmo tempo. As entradas estavam fraquitas (isto é, uma merdunça), o vinho sul-africano (cuja capital é Tshwane) tambérm me pareceu fraquito, embora agradável e o Ensaios 2003 é muito melhor do que o outro.
A Alhada de cação estava boa e o arroz de línguas excelente. Menção especial para as línguas panadas. Quantidade e qualidade a merecer um louvor ao organizador Banderas (oral e sem moldura que é mais barato)
Quanto à 41ª prova cega, apresentaram-se a concurso os seguintes tintos: «Adega Cooperativa de Portalegre reserva 99», Guida P.; «Calda Bordaleza 2003», Grunfo; «Casa Santos Lima Touriga Nacional 2003» (acho eu), Sábio; um Bordeaux esquisito cujo nome não recordo, apresentado pelo Gustavo, que estava marado e que ficou em último lugar; um Dão de nome esquisito de cujo nome também não me lembro mas estou a ver o rótulo e que foi apresentado pela Filipa, conquistando um honroso penúltimo lugar e, finalmente, um sexto vinho que eu agora não me lembro, nem sequer do rótulo e muito menos de quem o apresentou. Nem sequer faço ideia do lugar em que ficou, mas não interessa porque se interessasse eu lembrava-me.
A 41ª prova cega foi ganha pelo «Adega Cooperativa de Portalegre reserva 99» com a seguinte pontuação: Sábio -1, Sô Silva - 7, Mangas - 5, Joaquim d'Almeida himself, o autêntico e genuíno - 6, Grunfo - 6, Moi - 7, Catarina Eufémia - 5, Carla - 6, Vasco - 6, Ana Maria - 6, e depois então a panelinha com Guida - 9, Amiga da Guida - 9, e Marido da Guida - 8, maravilhosamente sincronizados. Até parecia natação sincronizada! No entanto, que a panelinha não desmereça ou desqualifique o vinho. O vinho é bom, ainda que não para notas tão elevadas como o 8 ou 9 (máxima) e é, com o aval da crítica, o melhor vinho vindo a concurso, por mais que isso custe ao Sábio que ficou relegado para o segundo lugar do podium, vendo assim adiada a conquista do campeonato para a próxima jornada.
O jantar não se encerrou sem as sobremesas (banais) e sem as discussões habituais. O sô Silva arrebatou o prémio «boca mais foleira», o Sábio ganhou o prémio «fair play» e a Guida leva o prémio «cordelinhos».
No fim, e incluído no último ponto da ordem de trabalhos, discutimos onde haveríamos de ir beber uma caipirinha e seguiram-se os trâmites habituais, a saber: a) Galeria? b) Tu és doido, é sempre Galeria; c) 'Bora ao Galeria d ) Espera lá, e se fôssemos antes à "x". Desta vez a variável "x" foi preenchida com o Irish Bar. Eu bebi um gin tónico que estava uma merdunça.