24/09/04

Silva Go West, um conto de cóbois e pioneiros por Jócta Apitou Três Vezes

John Sanabagana sempre fora uma besta estúpida. Estamos em meados do século XIX mas a infância do estupor decorreu por inícios do mesmo século, em Boston, Machachucha, mais precisamente no matadouro do tio, ao fundo à esquerda da sebosa Downbythewaterfront Street. John cresceu órfão de pai e mãe e delirava com o abate do gado. Ao fim do dia divertia-se a escorregar pelo chão do matadouro, como quem patina, nas grandes poças de sangue das vacas e dos bois massacrados. Na escola fugia ao recreio para ir ver esfaquear animais de grande porte. Quando cresceu, depois de uma irregular carreira no negócio dos abates (a força física e o entusiasmo pela morte violenta dos animais não chegavam para compensar a inaptidão completa para gerir negócios ou outra coisa qualquer) e depois de estripar pela enésima vez um marinheiro nas docas da cidade numa noite de borracheira, John Sanabagana fugiu. Nos matadouros de Boston corria o boato que fugira para o West, tese credível na medida em que toda a gente em Boston naquela altura fugia nessa direcção sem lei, onde John poderia expressar livremente as suas potencialidades destrutivas construindo algo.
O John cresceu mais um bom bocado, e encontramo-lo finalmente em meados do século XIX, onde estamos. É onde vemos, afinal, Big John Sanabagana, grande rancheiro do Arizona, dono e senhor de um quarto do Estado (uma carrada de estádios de futebol) e das respectivas cabeças, de gado ou outras. A ascensão de John a Big não foi fulgurante. Nada disso, foi árdua, violenta e lenta. Épica! O John precisou de suar suor e sangue, dos outros, às golfadas, até chegar ao poder em que o encontramos em meados do tal século. Índios, outros sanabaganas, pretos, amarelos, mineiros, engenheiros dos caminhos de ferro, pastores luteranos, senhoras da Avon, mais índios, juízes, cobras, carteiros, xérifes, prostitutas, tatus, mulheres em geral, homens em geral, etc., etc., etc. Quase todos ali naquela parte do velho west dos states sentiram o fio aguçado da famigerada e grande faca de matar porcos de John, homem de aço e não de chumbo, zás-tum-tunga, mestre da naifa, zum… Foi longa e árdua a gesta do carniceiro de Boston. Big John Sanabanaga. The man.
Já soberanamente instalado no Big Ranch, em meados, John contemplava o seu império agro-pecuário. De pé no alpendre da enorme vivenda, o fazendeiro impiedoso e ignorante coça os tomates. Dá dois passos para a frente, escarra no chão do alpendre e diz para o xerife, que parecia esperar alguma coisa, humilde, de chapéu torcido à frente dos genitais, na poeira do acesso ao alpendre, dois metros abaixo do John:
- Hoje não quero conversa, nem boa tarde nem o caralho, nem quero olhar para ti que metes nojo. Amanhã de manhã vais ao Hotel da outra puta, da tua amiga, e metes um tiro nos cornos ao palhaço. À hora de almoço vens aqui dizer assim: está feito, senhor Big John Sanabagana, obrigado. Baza
Big John escarrou outra vez, desta vez na direcção do xerife, e assobiou com dois grossos e sebentos dedos de cada mão entalados nos lábios, soando com a potência de um sirene. Como que nascendo da terra, dos mais variados pontos do rancho, cerca de duas dezenas de cães grandes e feios como os trovões começaram a correr e a ladrar como demónios na direcção do dono odioso. O xerife entrou no carro em pânico e só voltou no dia seguinte, pela hora de almoço. Onze da manhã pelo horário de Big John. O palhaço morreu às sete da manhã. Morreu muito cedo porque o xerife estava ansioso por agradar ao aborto do rancheiro. Foi fácil, o palhaço não ofereceu resistência porque estava a dormir. Depois foi só uma questão de esperar pela hora de almoço indicada. No velho West, no entanto, os verdadeiros pioneiros sabiam ser pacientes quando era preciso.
- Está feito, senhor Big John Sanabagana, obrigado.
- Agora vai-te foder.
- Obrigado, senhor.
- Não, estúpido do caralho, estava a gozar contigo. Anda cá p’ró pé de mim, aqui juntinho ao meu ombro, anda cá, dá cá o teu ouvidinho, dá cá. Agora, quero que deixes o cabrão do palhaço morto estendido ao sol, uns tempitos, tipo um dia, depois cortas-lhe a piça e vais levá-la à puta da Laurinda, que há-de estar em casa dela. Embrulhas num paninho, entregas em mão e dizes só que vai da minha parte. Xô, andor daqui para fora, senão chamo os cães.
- Obrigado.
- Vai-te foder meu… ai os tomates... Rosnou Big John Sanabagana entre dentes, como quem chama por cães.
A Laurinda era a corista principal do saloon e compreensivelmente não gostou da prenda de Big John. Mesmo no antigo West há limites. Nem um palhaço merece tal sorte. Principalmente um palhaço que é pai. Mas sobretudo um palhaço que é nosso pai. O palhaço era, pois, pai da Laurinda, que fervia de ódio, qual Mercedes McCambridge. Olhando para a bolsa aberta, a corista fez umas contas de cabeça e gritou:
- Óh Silva!
Solicito, o Silva correu para junto da senhora.
- Diga, minha senhora. Disse o Silva, que era o idiota da aldeia.
- Olha, dou-te o dinheiro todo que tenho na carteira e faço-te um bóbó se me fizeres um favor.
- É para já, minha senhora.
- Vais lá acima ao Big Ranch e dás um tiro nos cornos ao Big John.
- Precisa para agora?
- Se puder ser.
- Vou ver o que é que posso fazer. Acho que tinha um servicito para as três, deixe cá ver no filo-fax… não, foi desmarcado. Pronto. Sendo assim estamos combinados. Até já… E o bóbó, como é, venho cá logo à noite a sua casa, vai lá à barraca, como é que é?
- Vens aqui ter.
- Está bem. E uma garrafita de tinto?
Silva nem sempre foi o idiota da aldeia. Ou melhor, sempre fora idiota e sempre fora da aldeia, mas não fora, de longe, O idiota da aldeia, The Number One. O português chegou, começou um negócio de cortumes, espalhou-se, concorreu a xérife, ganhou, veio o John e meteu-o no olho da rua porque naquele dia esquecera-se da faca de matar porcos na vivenda. O Silva nunca mais pensou no assunto e meteu-se nos copos e a fazer biscates às putas e às coristas. Hoje, em meados do século XIX, o Silva de Fornos de Algodres vai roto, bêbado e aos esses por uma vereda do Arizona. Ao chegar aos degraus do alpendre da vivenda do infame Big John Sanabagana, o Silva pára e diz.
- Olhe faz favor, mandaram-me dar-lhe um tiro nos cornos.
Big John Sanabagana nem tugiu nem mugiu porque dormia sentado no banco do alpendre quando levou com os chumbos grossos no meio da testa e ficou sem metade da cabeça, e um buraco enorme na parede da vivenda. Só então os cães despertaram do estupor da torreira, para fugir com o susto do balázio da caçadeira de canos serrados do imbecil do Silva.
À noite, Mary-Lou Laurinda, cuja avó paterna era natural da Ilha Terceira, fez o bóbó ao estúpido do Silva, que deixou de beber e voltou a apostar no negócio dos cortumes. Idiota crónico, espalhou-se. É outra vez xérife e correu com a Laurinda, que dava mau nome à aldeia.

23/09/04

BAD BOY, de ERIC FISCHL, por BOM RAPAZ

O quadro anexo chama-se “Bad Boy” e é do pintor americano Eric Fischl, que o pintou em 1981. Fischl, já anteriormente havia chocado as boas consciências, transportando para a arte um sentido voyeur e ilícito, quando em 1979 pintou o “Sleepwalker”, quadro que mostra um rapaz adolescente de pé, numa piscina de jardim, em pleno acto de masturbação. Com este “Bad Boy”, Fischl pregou mais uma cavilha no puritanismo americano. Como sempre e antes da consagração, o pintor foi repudiado e declarado maldito. Hoje faz parte de qualquer colectânea de pintura moderna, embora não certamente da colectânea da Irmã Wendy Becket, que até o Balthus relega para segundo plano.

Neste “Bad Boy”, o voyeurismo e a transgressão sexual invadem a tela. O rapaz vê a mulher e nós vemos tudo. A mulher, madura e nua, plena de luxúria, permanece na cama, indiferente ao tempo e à pressa. Não parece haver culpa da parte dela. Ao invés, o rapaz vestiu-se à pressa. Está completamente vestido e pronto a sair. Pela pressa da vestimenta, transparece alguma culpa no rapaz, a qual, contudo, o não demove de meter a mão na massa.

As cores usadas por Fischl são escuras e frias, mas o quadro transborda de calor e desejo. As persianas reflectem-se no corpo da mulher, num gradeamento sugestivo de prisão. O puto é novinho, macaco, mas está-se nas tintas para as bananas e prefere o roubo da carteira. Joga jogo duplo, certamente descansado de que não vai haver acusação pública.

A cena é tabu, obscena e perversa. Fischl transpõe nas suas telas o eterno jogo da transgressão, na arte como na vida.

21/09/04

Salvem as Sardinhas, Ó Pá!, por Tinó

Eu detesto golfinhos e tartarugas. O golfinho, então, é particularmente irritante, com aquele seu sorrisinho cínico de Giocônda. Há um mito segundo o qual os golfinhos são nossos amigos. Pois sim, com papas e bolos se enganam os tolos, e mais não digo para não me acusarem de alarmismo… Ainda por cima esses animais têm um tratamento privilegiado em relação aos outros animais, em nome de um estatuto hierárquico que nunca percebi. No outro vi uma reportagem na televisão sobre uma “inocente” tartaruga (reparem como coloco inocente entre aspas..) que tinha sido recolhida no mar com um anzol no estômago. Pois foi uma correria de zoólogos e veterinários a acudir à “inocente” tartaruga! E que fizeram então, para a reabilitar? Deram-lhe a comer… sardinhas. O operador de câmara filmou, sem vacilar, a cena do tratador da “inocente” tartaruga a atirar sardinhas para o aquário. Não vêm nada de ontologicamente errado aqui? Não haverá qualquer coisa de estranho em condenar um animal para salvar outro? Ora, eu julgo que está na altura de equilibrar as coisas, antes que seja tarde. Eu tenho um sonho. Eu imagino o dia em que finalmente saia a seguinte notícia:

Foi encontrada no Mar do Norte, por um arrastão de pesca ao golfinho, uma sardinha com um anzol cravado nas guelras. De acordo com o pescador que a recolheu, e que por isso está a receber tratamento psicológico, o animal estava debilitado e parecia sofrer bastante. A sardinha, a quem puseram o nome de Flipper, foi de imediato levada para o Centro Internacional de Reabilitação de Sardinhas do Cartaxo, onde está a ser vigiada por um grupo de cientistas e alimentada a pedacinhos de tartaruga. Em todo o país têm surgido manifestações de júbilo pelo salvamento da sardinha e as crianças têm enviado para o Centro postais com bonitos desenhos e poemas para a animar. Prevê-se que no prazo máximo de um mês, a sardinha recupere a sua saúde e estabilidade emocional e possa assim ser devolvida ao seu habitat natural.

Ou esta:

Um grupo de activistas da ONG “Save the Sardines”, invadiu ontem o Sardinha Fun, parque de diversões aquático no Jardim Zoológico, para exigir a libertação do cativeiro das sardinhas que ali se exibem para as crianças. “É impressionante que em pleno século XXI ainda se use a sardinha como motivo de diversão, atentando contra a sua dignidade de sardinha”, afirmou um dos activistas. O responsável do parque de diversões, por sua vez, disse compreender as preocupações dos manifestantes, mas garante que os animais são bem tratados. Segundo ele, e citamos, “a saúde das sardinhas é vigiada por veterinários e gastamos com elas cerca de vinte quilos de carne de golfinho por dia. E acrescentou: “Queria chamar também a atenção para o facto de muitas das sardinhas terem já nascido em cativeiro, pelo que é quase certo que não se iriam habituar ao mundo selvagem lá fora, ficando sem defesa para se defender de predadores daninhos como o golfinho e a tartaruga”

Ou ainda esta:

Foi descoberta na Lagoa da Vela, em Quiaios, uma praga de golfinhos. Um trabalhador da Câmara Municipal disse à nossa reportagem: “Caramba, ainda há pouco tempo andámos a arrancar o limo da lagoa e agora aparece-nos isto! Não há descanso! Se cai ali uma criança é que eu quero ver como é!”

Rosário de tristes contas, por Perro Caliente

O ministro das Finanças, Bagão Félix, nunca deixa de me atrair a atenção. Não só pelo que diz como pela curiosa mistura que o rosto e a expressão argamassam: sob um olhar jesuíta, aquele nariz semita e aquela fina boca de canivete. Tudo na figura dele me acorda para o mau pesadelo de Salazar. Nas mãos, em vez da papeleta do discurso ou da caderneta de poupança, adivinha-se-lhe um rosário. Na lapela, quase lobrigo um alfinete de ouro com a águia da Luz. Nunca estive perto do senhor, mas não me é difícil adivinhar que dele emanará uma fragrância mista de bolacha e água benta. Em seu gabinete, é natural que pondere entre madeiras escuras, numa meia-luz de sacrário que imporá aos assessores um silêncio de martírio tranquilo. Mas, enfim, nada isto é importante. Importante é o que sofremos por causa de o Governo ser constituído por figuras destas.
Quando gizou o novo Código Laboral, deve ter-se benzido: afinal, quem o sofre é quase tudo cristãos. Apreciei o ar de pardal repugnado com que esvoaçou, apesar de tudo incólume, entre a revoada triste do processo da Casa P(edofil)ia. Mas não gostei que lhe tivesse faltado a dignidade mínima de fazer o que Manuela Ferreira Leite fez: virar as costas a Santana e ir trabalhar, que é o que ele gosta de nos mandar fazer depois de nos condenar ao desemprego.
Agora empossado nas Finanças, apareceu na televisão com aquele ar entre o seráfico e o mefistotélico, aspergindo-nos com os perdigotos de extrema-unção das contas públicas. Que o Estado não tem cheta, diz ele (como se o Estado não fôssemos nós). Que o défice público vai deixar de ser uma obsessão (afinal, era uma obsessão, Manuela). Que vai haver crescimento (de número de assessores, suponho, não exactamente do PIB). Que o tabaco vai aumentar (deve aumentar os mesmo cêntimos que as pensões e os salários).
Acontece que eu acredito que o ministro acredite naquilo que diz. Eu é que não acredito. Não acredito, pronto. Falta-me a fé(lix). E ando sem bago, quanto mais bagão.
Com os anos, uma espécie de ateísmo político emaranha-se-me no optimismo, tornando-me incréu. Incréu e azedo.
Depois, penso com amargura nas pessoas que deram o corpo e a alma ao manifesto para que um dia este País proporcionasse trabalho aos cidadãos livres de o procurar. Educação para todos, idem. Saúde, habitação, justiça, essas coisas, ibidem. Mas não. Portugal descola-se cada vez mais dos campos, onde uma população inculta amanha a couve à espera que o filho venha do Luxemburgo em Agosto. As fábricas declaram falências não raro fraudulentas. Os mais abastados fogem ao fisco como o Diabo da Cruz, mas ninguém os obriga a prestar contas. Impostos e duplas tributações, que as paguem os raros empregados do comércio, os vendedores, os professores, os electricistas, os sérios, enfim.
O senhor ministro não concordará nada comigo, naturalmente. Por isso será ministro. Mas não do meu país, saiba o senhor. O meu país é outro, embora os meus impostos sejam deste. O meu país é o de Ruy Belo, que o senhor desconhecerá. Ruy Belo disse: “Portugal não é pátria mas país”. Ponha lá mais esta no rosário, senhor ministro.

18/09/04

Publicidade, por joctapc

PUB
DIA 2 DE OUTUBRO, EDIFÍCIO CHIADO, RUA FERREIRA BORGES, 3, AO FINAL DA TARDE

GRANDIOSA LIQUIDAÇÃO DE LIVROS NOVOS A ESTREAR E SEM MICRÓBIO! COM A PRESENÇA DE DISCURSOS (MAIS DO QUE UM) E DIREITO A UMA GENUINA RUBRICA DO AUTOR, A QUEM PODERÁ DIZER QUALQUER COISA E VICE-VERSA!
GRANDE STOCK DE LIVROS POR MANUSEAR E POR ABRIR A CHEIRAR A GRÁFICA! O LIVRO CHAMA-SE “DIÁLOGOS COM A CIDADE – COIMBRA, VERÃO” E FOI FEITO POR ESTE QUE ORA PUBLICITA E PELA FOTÓGRAFA SUSANA PAIVA QUE FEZ PARA ELE DEZ FOTO-FRAGMENTOS DA CIDADE! COMPRE COMPRE!
PODE COMPRAR SÓ UM QUE A GENTE NÃO SE IMPORTA! ACHAMOS TAMBÉM QUE A EDITORA, QUE É A MINERVA, PASSA FACTURAS.
LIVRO GARANTIDAMENTE RARO DAQUI A CEM ANOS! UM INVESTIMENTO DE FUTURO! FICA BEM EM QUALQUER ESTANTE!
AJUDAM NA VENDA PÚBLICA OS DOUTORES PIO DE ABREU E CARLOS DE ENCARNAÇÃO. NÃO PERCA E TRAGA DINHEIRO (ACHAMOS QUE NÃO HÁ MULTIBANCO).

Ps: Para provar que isto é verdade, enviei para o senhor que costuma pendurar aqui a bonecada um dos foto-fragmentos de Coimbra da Susana Paiva. Mais um exclusivo mundial do Taporco em primeira mão.
Pss: Dia 2 é um sábado e não servimos couratos.
Psss: Cuidado com as peças das exposições. Não é que sejam perigosas, mas podem estragar, se caírem, ou coisa parecida, e é chato, e fica mal.

12/09/04

As minhas férias, por Tom Cruze

Este ano passei as minhas férias de barco. Bom, parte delas, pelo menos. Para ser ainda mais preciso, vi um. Se bem que em rigor não possa assegurar que fosse um verdadeiro barco, isto porque nessa altura me encontrava na imensa pradaria do Arkansas. Pensando bem, aquilo que vi ao longe parecia-se mais com um camião com um longo atrelado. Bom, mas o que interessa mesmo é que cumpri um sonho de infância: atravessar a grande nação americana pela mítica Route 66, desde Chicago a Los Angeles. Tudo começou quando cheguei a esse notável país e, sem saber o que fazer, me dirigi ao guichet do American Dream, Inc.: Perdão, acabei de chegar e gostaria de saber o que um homem pode fazer de interessante por aqui. Well, pode comer um Big Mac com cebola e extra queijo, respondeu-me a recepcionista. Não me parece mal, disse eu, mas queria algo ainda mais emocionante, qualquer coisa que me faça sentir mais em casa nesta grande nação. Bom, se preferir, pode optar pelo menu completo, com batata frita, alface, e ainda um boneco do schrek à escolha. Tem também direito a chamar-se Steve durante um período de doze horas, automaticamente prorrogável. Aproveitei, claro. Depois dessa experiência, e como só tinha bilhete de regresso para daí a dez dias, voltei ao guichet e perguntei como deveria ocupar o resto do tempo. Bem Steve, respondeu a moça, agora temos para si este cadillac com mudanças automáticas e chifres no radiador para percorrer a Route 66 que sai de Chicago todos os dias às 15 horas e quarenta minutos. Que mais podia eu querer?. Dirigi-me então a Chicago e anunciei-me. Estávamos à sua espera, Steve, respondeu-me um rapaz de dentes perfeitamente alinhados. Aqui tem o roteiro, um pacote de pronúncias do midwest e uma harmónica programada com cinco melodias tocadas pelo Clint Eastwood, intercaladas com disparos de Smith&Wesson. E lá me meti ao cam inho. Não tinha rodado mais do que setenta milhas, quando me deparo com um marco de estrada que dizia: “Milha 70 da Route 66”. Hhhmmm, que mais me irá acontecer, pensei eu, emocionado. Estive por ali mais um bocado, e segui viagem. Mais setenta milhas decorridas, vejo uma paragem de autocarro, uma mítica paragem de autocarros americanos, que todos conhecem de filmes como Paragem de Autocarro ou Intriga Internacional. Estacionei e vi passar três autocarros. Um quarto autocarro parou e largou um homem magro e alto de suspensórios. Fiquei por ali a vê-lo afastar-se, heróico, até desaparecer no horizonte, como o Tom Joad no Vinhas da Ira. Continuei então a minha peregrinação e trezentas milhas decorridas deparo-me com algumas daquelas peculiares e extremamente cénicas formações de pó e lixo, que podem ser vistas em filmes como Duel o em OK Corral. Passei ali umas boas três horas a vê-las rodopiar com o vento, ao som da minha harmónica. Um pouco mais à frente, encontrei um posto de bombas de gasolina, do género dos que podem ser apreciados em filmes de perseguição automóvel. Encostei por ali e travei com um genuíno velhote, sentado numa genuína caixa de garrafas de coca-cola, o diálogo mais emocionante da minha vida: So… how are you? I,m fine, Steve. You are from out of town, aren’t you? Yes I am, I’m from Portugal! Where the hell is that? Is in Europe! So, where the hell is that? Is in the other side of the ocean! Damn japanese! Emocionado, verti uma lágrima e despedi-me. Ao fim do dia, parei, montei a tenda e fiquei durante toda a noite a ouvir coiotes e cavalos a trotar e cowboys a praguejar e manadas de vacas em direcção a Kansas City. Mas não estou bem certo. Talvez fosse antes o som de buzinas de camião, como as que se ouvem em filmes como O Comboio dos Duros, ou Perseguição na Auto-Estrada. Já de madrugada levantei-me, olhei em volta, e constatei emocionado que o meu carro tinha desaparecido, tal e qual como no…bem, vocês sabem. Definitivamente, estes eram os dias mais felizes da minha vida. Tive de percorrer então a pé as quinhentas e setenta milhas seguintes, seguido por aqueles maravilhosos pássaros, conhecidos por abutres, que povoam a minha imaginação desde que via aos domingos à tarde os filmes do John Wayne. E atingi então o destino, chegando a Los Angeles. Só então me dei conta de que não me tinha aparecido ao caminho um louco homicida a pedir boleia com um machado, um balde de ácido, ou com longas unhas de aço afiado. Oh well, pensei eu conformado, não se pode ter tudo. Agora que estou de volta vou fazer em casa um pequeno museu, com trezentas e cinquenta pontas de flecha usados pelos índios na batalha de Little Big Horn, que me foram vendidos pelo simpático velhinho das b ombas de gasolina, e quinhentas peças de esqueleto de bisonte que fui apanhando pelo caminho. Mas acho que preciso de descansar bastante primeiro. E como foram as vossas férias?

07/09/04

Campainha, por Cão

A trapalhada monumental que este (des)governo armou contra os professores e os alunos (e, portanto, contra o futuro) consubstancia a degradação da democracia à portuguesa. Apenas três décadas depois do 25 de Abril, o País vê-se devolvido, e aparentemente sem remédio, aos cabeças-de-abóbora, aos botas-de-elástico, e aos lambe-botas-de-elástico. Campeiam a ignorância voluntária, a cegueira ilustre, a desonestidade alegre e a peluda corrupção. As pessoas sérias, por nojo, afastam-se (ou são afastadas) dos lugares de decisão, deixando-(n)os entregues à viscosa lesma da irresponsabilidade.
O senhor Presidente da República não existe.
O senhor ex-Primeiro Ministro foi jogar para o Chelsea.
Quem agora manda é, de Caras, um artigo de Lux que trabalha quanto pode no sentido de fazer desta choldra uma espécie de Disneylândia com campinos e peixeiras. Tenho pena, mas isto é verdade.
Lembro-me vagamente de ter sido professor do ensino secundário. Na altura, havia aulas. Já então, os sucessivos ministros da Educação eram fraquinhos, mas nada permitia supor o pior. E o pior é isto: hoje.
Milhares de professores por colocar, gente casada e com filhos que desconhece a próxima porta, o próximo pão, o próximo dia. Em Lisboa, porém, tudo corre alegremente. Milhares de funcionários jogam às copas no computador. Um senhor a quem, decerto por piada, chamam secretário de Estado vem ao Louriçal desconhecer publicamente a Carta Educativa do concelho. Uma alegria. Entretanto, nada.
Tudo isto tornou o pessimismo coisa sinónima de realismo. Desprezar a Saúde é mau, porque intoxica o País. Desprezar a Justiça é mau, porque injustifica o País. Desprezar a Educação é mau, porque invalida o País. Mas quê, não tivemos a Euroforia? Não arrancámos três medalhas nos Jogos Olímpicos? Não vamos arrancar muitas mais nos Paralímpicos? Não começou já a Superliga para ver quem fica em primeiro a seguir ao Porto? Tivemos. Arrancámos. Começou.
O que não temos, nem arrancamos, nem começamos, é o ano lectivo, esse luxo a que habituámos (mal) crianças, jovens e docentes. Estudar para quê, realmente? Para ser caixa de hipermercado? Para adjunto de ucraniano? Para angariador de rifas de sorteio de cegos? Para arrumador? Para Tó Chico Dependente?
Se o tema me corrói de má bílis, é porque sim. Acredito que o povo mais bem educado e mais bem formado é o povo mais apto a viver em democracia. Por contraste, sei que o povo mais analfabeto é o mais fácil de governar pelos patos-bravos que só acreditam no dinheiro, no roubo, no estupro, na clientela, na prima e no espelho. Se vos pareço danado com o assunto (e com o Governo), é porque estou danado mesmo. Sinto-me mal governado, mal entregue, mal responsabilizado.
Mas se calhar nem é nada por causa da tragicomédia do arranque do ano lectivo. Se calhar, é porque ainda me não devolveram o IRS e eu tinha de dizer mal de alguém ou de alguma coisa. Pronto, já disse. Aula acabada.

03/09/04

A Dor, por Jóta

Ossétia do Norte, Beslan: 150 mortos e cerca de 500 feridos, entre 1500 reféns. Dezenas de crianças mortas. Vi há pouco pela Sic Notícias. Cheguei a casa e procurei na net por mais novidades deste horror. CNN, Reuters, TSF, todos a debitar horror em directo. Mais morto, menos morto, que mundo de merda é este? Porquê? Para quê isto? Para que é que serve o sofrimento humano afinal? Acho que cabe aqui uma justa homenagem a esta tragédia que nos devia angustiar a todos. Afinal, também são traumas e pesadelos. Proponho um pouco de dor por aquela gente, faço a mesma proposta de Munch naquele quadro desesperado e violento que ilustra este texto. Como que horrorizado com o seu próprio lado negro, o seu coração das trevas, a parte mais medonha de uma sua natureza íntima e irresistível, monstruosa. Porquê?