31/07/08

Os Marcianos São Danados Pá Brincadeira, por Dr. Nlle

Crónicas Marcianas do mais célebre escritor norte americano de ficção científica, Ray Bradbury, é uma obra indispensavel. O livro tem uma unidade de conjunto mas também pode ser lido no formato crónica, uma vez que cada pequeno conto tem uma coesão própria e acabada. No seu todo Bradbury relata/sonha com a futura colonização do planeta Marte nas suas várias etapas, desde a chegada dos primeiros foguetões terrestres até às hordas de colonos que fundam as novas cidades. Mas Marte esconde muitas surpresas e mistérios...

Entre as várias questões que o livro levanta, há uma que já tinha visto desenvolvida em leituras anteriores - nomeadamente em Carl Sagan e nos grandes teóricos comunicacionais de Palo Alto, como Paul Watzlawick. Imaginem que vamos para um planeta cujos habitantes não têm qualquer ponto comum aparente connosco. Podemos comunicar com animais, até certo ponto - toda a gente percebe quando um cão está com um ar ameaçador ou amigável. Os seus códigos expressivos são-nos mais ou menos familiares e existe até uma disciplina chamada Zoosemiótica que procura, precisamente, estudar os signos usados pelos animais na comunicação. Mas... E os Etês? Quer dizer, se eles não forem, como são commumente imaginados, seres humanos mais baixotes com grandes cabeçorras nem homenzinhos verdes do H.G. Wells nem aquele personagem kiducho do Spielberg? Mesmo com os alienígenas completamente ameaçadores ainda há um esboço de comunicação connosco, quanto mais não seja percebemos as suas intenções agressivas, como se passa com a saga Alien. E não esqueçamos o bizarro Tim Burton com os seus cáusticos etês a gozarem e a chacinarem os inocentes terrestres...

Mas imaginemos que vamos dar a um planeta onde nos deparamos com a alteridade radical que não sabemos sequer interpretar como amigável ou ameaçadora... Imaginemos que os etês são inverosímeis luzes ou balões... Como podemos comunicar com um balão? Ou com uma luz? Como podemos comunicar com balões de fogo, os marcianos de Bradbury? Percebo que foi aqui que Watzlawick e Sagan se devem ter inspirado: os balões ígneos de Marte deram que falar e não foi só junto dos cultores da ficção científica. E vocês? Como comunicariam com balões ígneos? A caixa dos comments está à vossa disposição. O tema promete...

30/07/08

Porizemplo, por Cão


O senhor Presidente da República pode promulgar quantos acordos ortográficos quiser. Cavaco Silva nunca ligou muito a estas coisas, aliás. Quando ainda primeiro-ministro, não sabia quantos cantos tinha (e tem) a epopeia de Camões. Saberá, hoje, quantos?
Eu não alinho nesta ortografia premiadora da ignorância. Comigo, muitos milhares de portugueses não vão abrasileirar-se por razão alguma. Falar e escrever correctamente são vinculativos da vera nacionalidade. E não, eu não disse “nacionalismo”. Disse “nacionalidade” – é diferente.
A riqueza de uma língua (qualquer língua) está na sua diversidade natural, não na sua artificiosa “unidade” artificial. Sei muito bem que o evoluir de um idioma está sujeito ao mesmo princípio físico do menor esforço. Mas não é por isso que a rapaziada da Costa do Marfim se lembra de ir a França ensinar os franceses a escrever… francês. Nem ao-zamericanos, lerdos como são, passa pela corneta chegarem ao pé de Sua Majestade britânica e tentar convencê-la a escrever, como eles escrevem, “center” em vez do inglês “centre”. Pois não é assim? É.
Atente-se, a título de fundamentado exemplo fonético, nos fenómenos de acrescentamento e nos de supressão de sons na oralidade: prótese, epêntese, paragoge; e aférese, síncope, haplologia e apócope. “Depois” pode ser, na fala, “ódespois”. E “estou” é muitas vezes “tou”. Mas atenção: isto é na oralidade. À norma escrita cumpre a vigilância regulamentar destes atropelos, afinal naturais pelo menor esforço, à ortoépia. Sim, à ortoépia.
Senhores: em português de Portugal, a humidade do adjectivo “húmido” está toda no “h”. Não está no Brasil? Paciência. Eles que escrevam “úmido”.
A Escola primacial (para não dizer “primária” nem “básica”) deveria voltar a ensinar a ler e a escrever (ou seja, a pensar). Já chega de “pedagogias” da irresponsabilidade, de “estratégias” pró-ignorância e de procrastinações da treta: é ver o desnível ortográfico e sintáctico dos estudantes universitários nacionais de hoje em dia.
E, senhor Presidente, “Os Lusíadas” é coisa para 10 cantos. (Escreve-se “dez”, não “dés”. Até porque “dés” é a primeira sílaba de “déspota”, porizemplo.)

Crónica nº 62 da série Rosário Breve, n'O Ribatejo (www.oribatejo.pt) de 25 de Julho de 2008

28/07/08

El Hereje de Miguel Delibes, por Matías Sangrador

Miguel Delibes, nasceu em Valladalid em 1920 e não sei mas espero que ainda não tenha falecido. É um grande escritor, justamente reconhecido e premiado em Espanha e praticamente desconhecido entre nós. Da sua vasta obra, o único livro traduzido é El Hereje de 1999. É pena que seja o único, pior para nós.
Foi o nosso basco quem me falou de El Hereje e quem fez o favor de mo emprestar há cerca de 15 dias. Acabei de o ler na última sexta feira no castelhano original. Acho que é um grande livro e apesar de perder um ou outro vocábulo por falta de prática em ler na língua de nuestros hermanos, a experiência linguística acaba por compensar porque há sempre sentidos que se perdem nas traduções. Por isso, embora, El Hereje, seja o único livro de Delibes traduzido em português, mesmo assim, eu aconselho a leitura no original espanhol.

El Hereje conta-nos a história de Cipriano Salcedo e da sua família na época conturbada que se seguiu à proclamação da Reforma em 1517. Como se sabe a espanha do imperador Carlos V foi dos países que mais fortemente reagiu à expansão do Lueteranismo, tendo avivado a força do santo ofício e a perseguição aos herejes. Salcedo foi uma das suas muitas vítimas, tendo sido queimado no auto de fé de Valladolid a 21 de Maio de 1559.
Delibes coloca-nos dentro da cabeça do protagonista e faz-nos viver o horror da sua experiência. O tema é difícil e, à primeira vista, parece um projecto literariamente impossível, escrever um capítulo inteiro sobre o Auto de Fé (o último capítulo do livro) sem resvalar para o mau gosto ou para a porno-lamechice ao estilo do cineasta Mel Gibson. No entanto, Delibes arrisca. É um grande escritor que desafia um tema tabu, percorre sensivelmente a fronteira do escabroso e do mau gosto sem a mínima concessão. Entre outras - muitas - razões que não cabem no espaço apertado de um post foi também por isso que adorei o livro. Oxalá o D. Mau se continue a lembrar dos amigos quando encontrar lá pelas Espanhas mais coisas com o nível deste Miguel Delibes...

26/07/08

Paradise - (1966-2004), por Mangas

Paradise está bêbado e conduz o velho Opel a toda a mecha por uma estrada não policiada. Na mão esquerda segura um cigarro, a direita alterna o volante com as mudanças, e com ambas faz um longo discurso sobre o mar que ele vê como a pátria. No banco de trás, latas de cerveja vazias e um saco plástico com mais algumas quantas. Olho pelo retrovisor e digo-lhe para abrandar, mas ele inverte os tempos dos verbos e o sujeito, regressa ao passado e fala-me da pátria que ele vê como o mar. O meu joelho esquerdo está inchado. Sinto-o latejar como se fosse o terceiro ocupante. As batidas do meu coração a bombear sangue do qual ele se vai alimentando para manter o calor e a inflamação que o sustenta. É quase como se o meu próprio joelho fosse revestido por um segundo músculo cardíaco, autónomo e independente do restante funcionamento do meu corpo, das células que o organizam, das funções vitais como dormir ou transpirar. O carro voa literalmente no alcatrão. Paradise orienta o volante como se lesse um jornal, está-se nas tintas para os sinais de limite de velocidade, atira o filtro do cigarro pelo vidro, aponta para mim, grita,

MEU RAPAZ!!,

e inicia um longo monólogo sobre a fenda na continuidade das nossas vidas e a sua relação com o jazz. Se é possível antever o ciclo a fechar-se e como se fecha, ou se ele fecha realmente. Acaba sempre por dar resposta às suas perguntas e continua por ali fora. Observo-o de perfil, rosto hirto, a nadar no som de um contrabaixo que ecoa à nossa passagem na estrada deserta, a testa contraída, os esgares extáticos de dor pungente quando cerra os dentes e os olhos e acompanha um riff prolongado do Charlie Parker. Abro mais uma lata para mim e outra para ele. Embala-me o som em surdina do motor. Um confortável alheamento à paisagem em sentido único que mergulha no alcatrão negro como breu. A ideia tinha sido sua e eu sabia de cor o enredo daquela fuga e como assassinar o tédio e o silêncio que nos separara até esta noite, enterrá-lo bem longe, deixá-lo por lá, debaixo de uma duna que não pertencesse a nenhum homem e que o mantivesse prisioneiro. Paradise aumenta o volume. Marca o ritmo com os dedos descrevendo pequenos círculos no vazio. Diz,

o que marchava agora era uns bolos de amoras com um copo de vinho de bagas de sabugueiro, se nunca bebeste vinho de bagas de sabugueiro rapaz, não sabes o que perdes acredita, os tipos fazem aquilo no sul de Inglaterra e na Nova Caledónia logo nos primeiros dias de Outono quando os plátanos se transfiguram e as folhas ficam muito amarelas, depois manchadas de vermelho, cor de terra e vinho novo, tens de ver, tens de lá ir, tens de ver os plátanos, são criaturas instáveis como as mulheres, chega o Outono e finalmente as coisas parecem ser mas não são, na realidade parecem mas não, percebes, conheci uma gaja assim, conheceu um gajo, abriu-lhe as portas das pernas, convidou-o a entrar e depois obrigou-o a rastejar que te parece?, pergunta a concluir. Interrompe a minha resposta com uma gargalhada e cita Marco Aurélio em inglês, num tom de epílogo: It`s a dream... A frightful dream life is!

Paradise partiu da Austrália atrás dos dólares e da aventura. Conhecemo-nos numa tarde de Inverno no Michigan, ele a falar-me das praias em Brisbane, eu a mostrar-lhe as páginas centrais da Bola, depois de me ter confessado ser adepto do Benfica desde miúdo. Ganhou a minha confiança quando me mostrou a sua colecção infindável de jazz. Possuía peças únicas dos primeiros tempos da Blue Note, colectâneas de Jelly Roll Morton, as primeiras edições de Art Tatum. Paradise tem também entradas marcadas dos dois lados da testa e penteia desalinhadamente o cabelo para trás. Um dia virou-se para mim em tom de caso sério e disse-me,

só há pouco tempo descobri que a entrada do meu cabelo no lado direito está mais acentuada por causa da posição fetal para esse lado em que me habituei a dormir, como a testa fica pressionada no colchão a circulação sanguínea nessa zona é menor e o metabolismo capilar diminui, sabes fiz esta descoberta sem quê nem porquê enquanto falava com uma tipa loira parecida com a Kim Novack no Vertigo que os pais baptizaram com o nome do ciclone Harriet, mas que eu tratava só por Harry, e até hoje tento descobrir a relação entre uma coisa e outra.

Estamos perto da praia. Paradise avisa-me que vai meter uma terceira a fundo, contornar o areal e as dunas e entrar pelas ondas, nós os dois dentro do carro, o meu joelho esquerdo incluído. Solta uma gargalhada demoníaca, os olhos raiados de sangue, lábios secos, gotas de suor na testa que ele ignora rolam-lhe pelo rosto e desaparecem na linha do pescoço que mergulha na camisa suada. Faz uma derrapagem com o travão a fundo, os pneus resvalam até onde o alcatrão termina, sai para fora, saio também, cheira a borracha queimada e sopro marítimo, caminhamos alguns metros nas dunas e sentamo-nos de frente para o oceano prateado. Acende um cigarro.

Um dia tenho de te levar a Sandy Cape, perto de Brisbane, tens de ir comigo e as pranchas, nunca viste ondas daquele tamanho e vais ver que não queres que aquilo acabe nunca, fuck!, vai ser como quando o Benfica espetou seis ao Sporting, estávamos nós em Detroit lembras-te, pá? mas lembras-te mesmo?

Depois, acrescentou que Normam Mailer é que tinha razão, com aqueles olhinhos a piscar de velha raposa quando falava sobre a América, que a América já não era uma esposa tão nobre como nos bons velhos tempos porque existia algo de errado na sua estrutura básica, algo decomposto e sanguinolento que lhe incha as entranhas, que tudo nela era tumular como um pesado medo. E que um tipo corre o risco de se deixar contagiar se nela passar muito tempo, e que eu tinha feito bem em ter vindo embora, que ele próprio, desde que lá chegara, já tinha sentido o coração mais leve. Um silêncio intangível vacilou na escuridão. Ao fundo, os dedos fantasmas de Oscar Peterson caceteavam um piano frenético e eu regressei ao meu joelho aceso.

Durante o Verão de 93, chegava a vir descalço da casa dele à minha em atalho pelos relvados dos vizinhos, com uma caixa de cervejas Foster para se deitar no chão da sala e ficarmos ali, a conversar horas a fio sobre a geração beat e a ouvir a sua colecção, Monk, Charles Mingus, Weather Report. O demónio solta outra gargalhada que ecoa nas dunas para disfarçar a melancolia no olhar. Paradise ocasionalmente usava um chapéu Akubra autêntico. Era um dos objectos que aos seus olhos o distinguiam como indígena australiano dos yankees que odiava visceralmente. O outro era um enorme saco de lona verde, AUSTRALIAN ARMY em letras impressas e desbotadas e para o qual enfiava sem qualquer ordem pré-estabelecida, roupa, livros, sapatos, cervejas, fotos, recortes, discos e outros fragmentos dispersos de uma vida passada e futura na estrada. No dia em que me vim embora de vez do Michigan, acordou cedo, apareceu em lá em casa e levou-me ao aeroporto. Almoçámos juntos e sentámo-nos à espera. Nunca se separou de um saco plástico que trazia na mão. Falou muito pouco, ao contrário do que lhe era habitual. Quando chegou a hora do embarque, abriu o saco, tirou o Akubra e enfiou-mo na cabeça.

Abrimos a última lata e ficámos pela madrugada a recuperar canções perdidas para sempre. O que exprime é autêntico e sem reservas, como o jazz que ouvimos nas dunas proveniente do velho Opel com os faróis apontados à espuma da noite. Há ali um poder liberto e arbitrário de sons, sensações e entendimentos. Digo-lhe que é um tipo que se move entre existências e buscas, chamo-lhe compositor de tretas e ele ri-se na minha cara. Mostra-me os dentes de marfim muito branco, o rosto engelhado como se fosse o cenário de fundo daquele olhar tubarão encalhado em terra, com fome, mas incapaz de morder. Respondeu-me que o Miles Davis era um arqueólogo de sons com um volume residual inspiratório muito acima da média. Atira-me, É um sonho. A vida é um sonho assustador. Acreditas...? Eu acreditava.
Foto: Amphibious Landing Craft & Tea Kettle, de f/1.4

23/07/08

O Campo, por Mangas

Ramon soltava zunidos e inventava esgares ao som do baixo de Take a Walk on the Wild Side. Emborcava uma garrafa de aguardente comprada nos chineses para esquecer a solidão calcinada por dentro. Durou aquilo algum tempo até ter decidido ir sentar-se na esplanada, estoiravam foguetes sobre o rio, a superfície das águas sangrava vermelho, branco e depois verde. Pais com os filhos às cavalitas, sogras em cadeirinhas de encosto desdobráveis, putas abraçadas a militares, cisnes que deviam achar aquilo tudo muito estranho, de pescoço empoleirado para o cheiro a pólvora queimada e farturas. Ramon pensou na amante no instante em que saiu de casa com um pontapé a meia altura na maçaneta da porta. Palpitou-lhe que se regressasse, ela ainda lá estava. Sem mexer um dedo. As garras hesitantes na asa partida de um falcão. Se a encontrasse morta, nunca se saberia ao certo o que tinha dado cabo dela, se as garras, se o falcão. Saiu dali para fora. Caminhou ao longo do rio até perder de vista o Lou Reed.

Encontrou uma acácia e enroscou-se nela. Falou-lhe para o tronco. Longos monólogos, tagarelava para dentro, frases deixadas a meio. Redemoinho no rio. Campos de milho no lusco-fusco. Cheirava a erva húmida e bosta de cavalo. Sons de folhas ao vento como castanholas abafadas. Sentou-se na margem do rio e ateou uma fogueira. O negro anilado da noite, esparso, cortado aqui e ali pelo frio silencioso e inegociável. Deu um pontapé nas brasas, acendeu o cigarro com uma delas e lembrou-se de ir mijar contra o tronco da acácia. Circundou-a com o jacto de urina como se lhe estivesse a humedecer as raízes. Ela não esboçou nenhum protesto. Tirou a navalha do bolso das calças e gravou-lhe na casca um R. Prometeu-lhe que viria por ela um dia. Até lá, que se mantivesse por ali, que não se afastasse para muito longe porque vir rega-la seria sempre mais perto.

Ramon descalçou-se, caminhou até ao fogo, sentiu a caruma picar-lhe os pés. Daquele lugar, pouco ou nada conseguia ver para além do rio, mas era uma grande vista. Depois, deitou-se e adormeceu com a aurora, a pensar que não havia maneira de ser noite outra vez.
Foto: Wood Nymph, de Maggie-Me

21/07/08

Chuva, por Mangas

Durante muitos anos, a velha negra que dormia no quarto das traseiras guardou um sabre de Cavalaria no armário, enrolado num tapete persa. Eu era o único que sabia desse segredo, mas ela nunca suspeitou. Uma noite, a velha negra ouviu passos no quintal, junto à nespereira. Recordo-me que me acordou, segurou-me contra o peito, agarrou o tal sabre e esperou. Os passos eram cada vez mais nítidos, aproximaram-se da persiana corrida do quarto e esperaram. Ouvimos o estalido abafado de um isqueiro e depois um breve silêncio. Os passos regressaram agora mais perto da persiana. A velha negra embrulhou-me numa manta, enfiou-me debaixo da cama, olhou-me nos olhos e colocou o indicador à altura dos meus lábios, descalçou-se e saiu de mansinho com o sabre na mão direita.

A memória mais distante que guardo de África é o cheiro da terra molhada que abafava o quintal, na estação das chuvas. O voluptuoso odor do solo fendido pelas águas, a terra escurecida antes de se transformar em lama, a fina neblina evaporada que se distinguia no horizonte. Apetecia tocar naquela terra. Cheira-la, cravar os dedos e desenhar pequenos buracos. Apetecia come-la, ficar com o sabor atravessado na boca para além do calor sufocante esperado no dia seguinte. Sabia a salgado metálico.

No último momento, os passos silenciosos provinham do centro do quintal na direcção da janela. Por vezes recuavam ou surgiam lateralmente como se estudassem o terreno na escuridão. Depois, veio o silêncio e os passos não mais se fizeram ouvir. Um silêncio estranho, absoluto, como o de um sono profundo que demorou longos minutos apenas cortado pelo som de água a cair de uma torneira junto ao muro.

A velha negra entrou no quarto com o sabre na mão esquerda, enrolou-o no tapete persa, puxou-me para a cama e deitou-se ao meu lado até eu adormecer.

A nespereira nunca mais deu nêsperas depois daquela noite.
Foto: These fleeting moments, de Jason Ertel

20/07/08

As Capas dos Meus Discos, Sémen Up e Ohio Players, por Gabiru

Retomando o fio à meada dos covers eróticos que começou lá em baixo, a propósito dos vis Scorpions, aqui ficam mais dois exemplos: a primeira é a «portada» do single Lo Estás Haciendo Muy Bien dos espanhóis Sémen Up. Nos gloriosos anos 80 da célebre Movida, esta música deu brado e a banda destacou-se pelo uso e abuso das referências «orais». A começar no nome da banda é tudo muito explícito. E reparem bem no gajo da portada... Tem um ar tenebroso, parece o Saddam Hussein, mas o que é engraçado é que a inocente moçoila parece sentir-se confortada, fecha os olhos e tudo. No entanto há uma tensão que paira no ar: até o rosto do Saddam aparece censurado (só que a venda não é negra mas rosa, uma cor mais suspeita), não se sabe se em nome da protecção da vítima se do verdugo... Um must, esta portada, ainda por cima com o título sugestivo «Lo Estás Haciendo Muy Bien», vá-se lá saber o quê, a conduzir, talvez... Se quiserem ouvir/ver o vídeo aqui a referência do you tube: http://www.youtube.com/watch?v=jufSNtxn9aQ.

O segundo exemplo, ainda dentro do tema que o Porco tem explorado nos últimos tempos - o Verão escalda é o que é - é a capa de um grupo de dinossauros dos anos 70, a banda Funk, Ohio Players no seu Honey. A rapariga tem fome e come à colherada o mel das abelhinhas. A música não vale um chavelho, mas deviam substituir o retrato do cavaco nas escolas portuguesas por este cover. Sempre funcionavam como um incentivo para que a criançada se começasse a alimentar melhor. É só macs, só macs e depois queixam-se que são obesos. Comam mel, carago, é o que parece dizer a foto da capa de Honey...

18/07/08

«Caminhos Que Não Levam A Nenhuma Parte», por Duende Que Caminha

Não há nenhum livro fechado: estão todos abertos, ligados por cadeias secretas que só os leitores podem abrir. Um livro é sempre uma porta por onde se entra em mundos com novas portas e de onde nunca se sai definitivamente. Um livro só não existe porque os livros nunca existem isolados mas numa infinita cadeia de infinitos livros irmãos. Dizer «um livro» é uma contradição nos termos - a palavra devia ser plural e não admitir singular. Apenas existe o acto de ler. Ler sem parar. Ler eternamente.

Só tenho dúvidas num aspecto: se esta cadeia que une todos os livros é apenas uma construção (subjectiva) de cada um ou se é uma teia real e invisível que nos limitamos a descobrir (objectiva). Por exemplo, é difícil não descobrir um nexo invisível que une o misticismo filosófico d`O Jogo das Contas de Vidro de Herman Hesse e a sabedoria serena d`Os Jardins de Luz de Amin Maalouf. Parece que os ambos encontraram uma parcela de uma mesma verdade mais profunda, à qual só o leitor dos dois tem acesso. Quem segue, então, por Maalouf adentro depara-se com Samarcanda e com a saga do Omar Kahyam e de Hassan Sabbah. Daqui é fácil ir dar a Alamut de Bartol e deste chegamos à literatura de despojamento de Sheltering Sky de Paul Bowles. Daqui à angústia serena de Todo o Mundo de Phillip Roth é um passo e a conexão nunca mais pára (neste momento já vou em El Hereje de Miguel Delibes, mas demorava uns posts a explicar a cadeia que a ele me conduziu). Interessam-me, para além dos livros propriamente ditos, estes nexos invisíveis que nos fazem ir de uns para outros, essa espécie de intra-literatura que nos faz viajar de livro em livro.

E vocês? Como é a teia que vos faz passar de um livro para o outro? Era engraçado que expusessem aqui essas cadeias que cada um descobriu entre os seus livros. Os comments estão à vossa disposição…


Pic: Mondrian, Manhattan

17/07/08

Multiópticas, por Vesgo

Mudei de óculos. Infelizmente estes novos vêm com defeito: sempre que ligo a televisão e está a dar um programa com aqueles senhores engravatados dos partidos, muitos, muitos, muitos, mais que as próprias mãezinhas!, vejo-os a todos com máscaras, como se fossem os irmãos Metralhas. É só com eles que isto acontece porque vejo muitos filmes de terror e nem no Massacre do Texas aquela família que se diverte a chacinar jovens incautos me aparece de mascarilhas. Mas quando me sai esta gente dos pêesses e essedês e afins, pimba, vejo-os a todos de mascarilhas. Eles lá estão, felizes da vida, com os seus salários que dizem magrinhos, tadinhos, com os seus subsídios de reintegração para quando voltarem «à vida profissional», com as suas reformas de miséria ao fim de 12 anos no parlamento, com os seus cursos de injenheiros tirados ao domingo no estio de Agosto… E eu olho e volto a olhar com os meus óculos novos e só vejo mascarilhas. Raios partam os óculos. Vou voltar a pôr lentes de contacto. Assim como assim é capaz de ser mais fácil que mudar de políticos.

GRATIDÃO BARATEIRA, por Cão

É preciso não confundir “silicone” com “silly season”.
O primeiro é aquilo das micropeças de computador (não sei quais) e dos implantes mamários em actrizes de certos filmes (sabeis muito bem quais, fazei favor de me não puxar pela língua).
A “silly season” pode ser livremente traduzida por “estação das baratas tontas” e, por norma, era associada ao Verão. Era. Agora é fruta de todo o ano, como o tomate de estufa espanhol e a tesúria do consumidor. (Redacção intermédia: O Verão era uma das quatro estações do ano. Eu gostava muito do Verão. No Verão, eram as férias grandes. Já está.) Agora, o Verão só se nota pelas páginas e páginas de jornais de inquéritos “à la minuta” tipo onde-vai-passar-as-férias-que-livro-vai-levar-a-sua-avó-está-melhor-do-alzheimer-ou-ainda-reconhece-o-Júlio-Isidro? Sim – o Verão é isto e é os programas matinais de TV invadindo as praças municipais à mama do tacho orçamental do Poder Local (essa “conquista” do 25 de Abril que redundou em rotundas e em taxas de disponibilidade do contador da água).
Quem já viu o resultado do implante de silicone, não pode deixar de trepidar por dentro com as maravilhas da técnica. A tumefacção respiratória das actrizes é praticamente inabalável. Mas abala, ai não que não abala.

A barata tonta é diferente. Digamo-lo “com toda a clareza”, à maneira de um Paulo Portas e de um Francisco Louçã: a barata tonta é vilegiatura que veio para ficar, como o toyota de antigamente e o sorriso-ricto-esgar da Catarina Furtado dos nossos dias.
E está tudo muito bem assim. A realidade é o que nenhum de nós pode que ela não seja. Ainda bem. O horror seria, por exemplo, uma realidade à minha maneira. Ai eu proibiria logo quatro aspectos: o Portas, o Louçã, a Furtado e a TV matinal. Depois, imporia a obrigação do fabrico em silicone de toda a barata tonta que se pusesse… à mama. Mas isto nunca será. Só tenho pena de que a vossa realidade também não venha nunca a ser real. Sempre gostaria de saber quais as vossas interdições, qual a fractura exposta do vosso mais íntimo desejo (ninguém está a falar dos tais filmes), qual o verdadeiro aspecto de você(s) na TV.
No fundo, porém, deveríamos todos estar-lhes gratos: como as coisas estão e andam, as tontas devem ser as últimas coisas de facto baratas.

Pic: Manet

13/07/08

Paula Cole, Courage, por Libidinosa


Não se deve julgar um livro pela capa. É popular e bem aceite.
Mas há covers e covers. À sombra de uma hipotética psicologia barata, gosto de perder-me nas análises às imagens (e vejo que, por aqui, os observadores têm olho clínico) que à mercê de muita imaginação e com o apoio da tecnologia, lá vão trilhando caminhos de (insatisfeita) perfeição.
Uma imagem que ponha de joelhos os nossos cinco sentidos é um verdadeiro must.
E nestas coisas, primo pela simplicidade.
Esta, por exemplo, de Paula Cole (do seu trabalho registo com satisfação a banda sonora de City of Angels), a cujo tema Courage se associa uma boca, parece-me capa para um pequeno apontamento.
Dirão: imagem básica e muito óbvia. Com um primeiro olhar, sim.
Ela “ grita” coragem. Para quê?
Os lábios voluptuosos, carregados de um intenso vermelho tanto desenham um coração, e aqui registamos uma perspectiva romântica do produto (quanta inocência), como a dada altura o olhar que vai seguindo a linha indefinida – e intencional - que separa os lábios, se perde no contorno, esbatido pelo tom pobre da pele.
Lembra-me, e a vocês também, os lábios da vagina.
Tenho, pois, para mim, que com esta capa se aproveitou a ocasião para deixar um recado aos amantes mais tímidos.
Ficaria perfeita, com língua. E sem ser a dela.

11/07/08

As Capas dos Meus Discos: Carly Simon, Possum, por Blackbird

Ainda na onda do post anterior, que acham da capa deste Possum de Carly Simon? Aparentemente é só uma mulher de joelhos em roupa interior e boca aberta ( o que já de si é estranho). Mas se olharmos melhor aquele fundo parece ganhar vida e não digo mais nada. Se esta capa fosse dos Scorpions caíam-lhes em cima com a acusação de machismo e sexismo brutais. Mas sendo a capa do disco de uma mulher, a cantora americana Carly Simon, o que é que chamamos a esta?

09/07/08

As Capas dos Meus Discos: Scorpions, Animal Magnetism, por Transformer

Eu nem sequer gosto de Heavy Metal, quanto mais dos Scorpions... Mas merecem um post no Porco, pela coerência dos seus covers. Vendo bem também não se pode dizer que sejam grandes capas. Mas lá está: são coerentes, há uma tentativa sistemática de fazer passar uma imagem de marca de durões, sexistas e machistas. Do ponto de vista gráfico, os Scorpions são das bandas que levaram mais a sério aquela coisa da mulher-objecto. Dou dois exemplos: os covers de In Trance/Virgin Killer e de Animal Magnetism, que ilustram este post.


Nos dois casos a mensagem é primária, bruta, quase infantil. Em In Trance é clara a associação entre o título, a expressão orgiástica do modelo e a guitarra. A rapariga parece masturbar-se com a viola, ou pelo menos, quando se liga a ela (atente-se na ficha da corrente) e por isso vibra, num sentido explicitamente sexual. Simples e directo.

Em Animal Magnetism as alusões não são tão claras, mas ainda assim, estamos no domínio da evidência. Percebe-se que quem tem «magnetismo animal» é o homem que vemos fotografado de costas vestindo uns clássicos e másculos jeans como deve ser. A mulher, de joelhos à altura da breguilha está em pose religiosa, como se adorasse um santo ou um senhor todo poderoso. Parece indefesa, de braços inertes e à mercê do seu senhor. O tema faz lembrar a célebre série Le Clic de Milo Manara em que um homem consegue levar qualquer mulher ao descontrolo sexual mediante o manuseamento de um misterioso aparelho que basta premir, como se fosse um comando de TV. Em ambos os casos trata-se da redução total da mulher à objetidade sexual.

Em Animal Magnetism o olhar da mulher é quase suplicante: prescruta o rosto do seu superior, parecendo esperar uma ordem de cima, que não deve tardar. O cão, símbolo da fidelidade, acentua a dominância do macho. Não olha para cima, como a mulher, mas está concentrado no eixo central do «quadro», isto é, na posição em que emerge a breguilha - o mesmo eixo da face da mulher. É tudo muito óbvio e até brutal. Por fim, um toque de ironia delicioso ou de mau gosto, consoante a perspectiva: o homem segura na mão direita uma lata de cerveja, outro símbolo da indiferença machista.

O que é curioso nesta, como noutras capas da banda, é que esta peça é da autoria da mais famosa produtora Inglesa de Design - em particular de covers - a todo-poderosa e galáctica HIPGNOSIS. A HIPGNOSIS é a mesma empresa que fez as capas míticas dos intelectuais Pink Floyd (sim, o Dark side of the Moon, o Ummagumma, o Animals, o Wish You Were Here, é tudo deles), algumas dos Genesis (como The Lamb Lies...) dos Zeppellin, do Peter gabriel, dos UFO, em suma, de praticamente todas as bandas que atingiram o estatuto de Mega Stars. Experimentem digitar Hipgnosis no Google e vão ter uma surpresa: vão ver que uma boa parte dos mais famosos covers da história são deles. Mesmo quando a mensagem é simples convém que seja eficaz. Os Scorpions que, musicalmente, nunca passaram de um certo estridentismo exibicionista próprio do Heavy Metal, pelo menos, não facilitaram nas capas. E fizeram bem...

08/07/08

Foto-Choque, por Platinado

O Expresso publicou na sua última edição uma entrevista de páginas centrais com a Ministra da Educação da República. É das tais que não li nem vou ler - não estou propriamente interessado em ouvir as explicações de sua excelência para os resultados mágicos da Matemática Contemporânea Versão 2008. Não li, mas vi. Porque esta peça jornalística não é pra ler, mas é para ver. Esta peça vale pelos bonecos, isto é , pelo excelente trabalho fotográfico do repórter Tiago Tiago Miranda. Reproduzo aqui aquela que é para mim a melhor foto da série, mas quem quiser sentir a experiência do enjoo completo pode ver tudo em A Educação do Meu Umbigo (http://educar.wordpress.com/).

A primeira coisa que me chama a atenção nesta foto é a sua incongruência. Tudo aqui é incoerente. Sem falsas ironias é uma peça digna de figurar no recente volume coordenado por Umberto Eco, a História do Feio. Nesta obra Eco percorre as diferentes manifestações do Feio a longo da História e esta peça de Tiago Miranda enquadra-se como uma luva nas secções acerca do disforme, do horrível. Advirto desde já que não pretendo fazer ironia nem dizer mal do modelo da foto: falo apenas sobre uma foto na sua qualidade de produto estético.

A primeira incongruência é a da pose. A modelo ensaia uma pose de Diva não tendo obviamente corpo nem expressividade para tal. O resultado é uma quase deformidade. Uma pessoa com aqueles altos níveis de celulite não pode ensaiar uma foto assim, de perna traçada como se fosse a Sharon Stone na célebre cena do Instinto Fatal. O choque é flagrante porque a forma da pose é um arquétipo comum, mas o conteúdo - a adiposidade do modelo - acaba por nos ferir. O efeito é artístico. Embora mais subtil, não tão radical, é uma nova versão de alguns dos jogos explorados pela fotógrafa americana Cindy Sherman com os seus modelos repugnantes e artificiais. como este, por exemplo:O reforço desta primeira incongruência advém da roupa escolhida: o vestido preto, o decote discreto e o colar, a saia pelo joelho, mais uma vez arquétipos da coqueterie sofisticada. Podemos perfeitamente imaginar que a foto sairia discreta com outra roupa menos sensual/executiva, mais de acordo com o modelo. Assim só vemos reforçados os significantes de ruptura do nível anterior. E a noção de incongruência é maior. Quanto mais olhamos esta foto mais nos sentimos nostálgicos da mulher que lá não está, como se toda esta forma tivesse sido despojada/roubada do seu verdadeiro/adequado conteúdo.

O terceiro nivel de desajustamento é produzido pelo carácter institucional da personagem. Sabemos que é uma ministra. Da educação, ainda por cima, com toda a carga moral que isso tem. Conhecemos a personagem, habitualmente sisuda, carrancuda, tensa...E mais uma vez sentimos a incongruência da pose, da descontração que contrastam com o peso institucional da personagem. O efeito é mais uma vez devastador. Perguntamo-nos como é que o fotógrafo do Expresso conseguiu captar esta imagem surrealista. Será uma foto da Maria de Lurdes real ou uma foto de um sonho (freudianamente: de um desejo) da Maria de Lurdes a sonhar com a Maria de Lurdes?

E ainda há a magnífica economia do cenário, os fundos austeros e escuros para não nos distrairmos e nos concentrarmos na expressividade (falhada) da modelo. Repare-se no batom, num tom de vermelho velho-esbatido, tentativa desesperada de dar vida a um rosto e a um sorriso amarelos. Vem reforçar, mais que qualquer outro elemento de pormenor, a impressão de superficialidade da foto. O batom e o excesso de creme que se nota na tez polida da face de vaga reminiscência gótico-depressiva. É ainda de incongruência que falo...

Resta-me uma pergunta: como ler o olhar do fotógrafo Tiago Miranda? Foi um ingénuo que captou, sem querer, a vacuidade total de uma personagem sem dimensão para o voo (estético) que ensaia? Ou pelo contrário, foi um verdadeiro fotógrafo que soube captar com o cinismo dos bons artistas a verdade que está para além da aparência? Tiago Miranda é um Goya que ridiculariza a realeza do seu tempo, uma Paula Rego divertida a fixar para a história a futilidade de Jorge Sampaio (sobre este tema ver outro texto do tapor: http://tapornumporco.blogspot.com/2006/06/paula-rego-goya-e-o-cabea-de-cenoura.html)?
Ou um simples propagandista que pretendeu glorificar a Ministra e acabou traído pela força das suas próprias fotos? Não sei.

Seja como for este Tiago Miranda é um óptimo fotógrafo. Pode ser que ele não tenha o cinismo dos grandes, que seja inocente como um fotógrafo de casamento. Mas que o seu olhar tem qualquer coisa de perturbador, tem. Talvez estejamos mesmo perante o caso de um criador que se vê ultrapassado pela criação. Quando lhe pediam para explicar a sua música o grande Carlos Paredes dizia que não sabia, que apenas sabia tocar. Talvez Miranda seja um desses brilhantes ingénuos... Ou talvez não, talvez tenha a consciência plena do que mostra.Pra já está de parabéns: o seu trabalho vai muito para lá da vulgar foto de jornal.

07/07/08

República das Bananas Futebol Clube, por Mamadou Djalou Ialá

Eu sei que há leitores do Porco, como por exemplo o JPC, que não gramam nada que um gajo ocupe o blog a falar de futebol. Eu próprio tenho algum pudor a esse respeito. Mas o post que se segue só aparentemente é sobre futebol. É mais sobre o estado lamentável a que chegou este país. Mesmo para quem não gosta de bola eu peço um bocado de paciência porque vale a pena conhecer os factos que relato para se ter uma noção de como nos transformámos numa espécie de República dos Prakistão do sul da Europa ou norte de África como se preferir. Então tenham lá pachorra:

Hoje, segunda feira, é a data da realização do sorteio do próximo campeonato de bola nacional. Mas o Boavista pode descer de divisão e o Porto sujeita-se a apanhar um castigo que ainda lhe pode custar a presença na Champions League. Só não se verificarão estas desgraças se os órgãos competentes não se pronunciarem em tempo útil sobre as acusações de que são alvo estes dois clubes. Não havendo decisões nestas matérias nem o Boavista nem o Porto nem o Jorge Nuno,o da fruta, poderão ser condenados nos processos por corrupção de que são alvo.

Portanto só uma coisa os salvaria do holocausto: o prolongamento indefinido de todas as reuniões dos vários órgãos competentes de modo a que nada se decidisse e nada se comentasse. Hoje, segunda feira, não havendo qualquer decisão tomada, tudo continuaria na mesma como a lesma. E foi assim que numa das últimas reuniões da liga presidida, pasme-se!, por Valentim Loureiro, o dos frigoríficos, que é suposto estar suspenso mas que não faz caso da suspensão, deu-se o mote. Segundo os relatos da mesma, essa reunião durou um dia inteiro e nela nem se chegou a abordar a questão das acusações de corrupção aos clubes portugueses em causa nem os danos de imagem para a Liga e para o país. Nada, no pasa nada... Rezam as crónicas que entre pausas pra café e almoço discutiram-se magnas e decisivas questões como, por exemplo,«qual o número de apanha bolas que os clubes deviam poder convocar para os jogos» e «quais os critérios para atribuir lugares de estacionamento nos estádios», questões decisivas do nosso pontapé na chincha. Parece que Valenti, o dos Frigoríficos, dirigiu esta sessão com grande sentido de humor. Mas eu aviso: Isto é a sério e não deve ser tentado por amadores sob pena de se magoarem! Como estas são questões complicadíssimas duraram o dia inteiro a ser discutidas e sobre o que interessava - que os sócios da Liga se pronunciassem cobre a CORRUPÇÃO - nada. Não houve tempo e deu-se por encerrada a sessão...

O segundo capítulo e ainda mais vergonhoso passou-se na última sexta feira. Na reunião do último conselho de justiça, sendo óbvio que a votação dos conselheiros ia ser desfavorável aos interesses do fêcêpê e do boavista-do-major, o que é que foi feito? Pois, o presidente do órgão - que ainda por cima vem sendo acusado de incompatibilidade, pelo menos moral, do exercício daquelas funções por ligação à câmara de Gondomar de Valentim - decidiu alegar incompatibilidade de um dos membros do órgão. Não a dele, a de um outro. Não se sabe porquê, o senhor não explica, só diz que, na qualidade de presidente, tem o poder de o fazer... Então tá bem. Recusada a sua pretensão pelos membros do órgão a que preside, decidiu-se pela «suspensão da reunião» pegou no livro de actas e ala que se faz tarde. Os restantes indignados membros do órgão, menos um, decidiram mesmo assim continuar a reunião e confirmaram a decisão da primeira instância, isto é, a condenação do sr Jorge Nuno, o da fruta, e do Boavista.

Mas agora alegam os mestres da arte do protelamento administrativo que esta decisão não é «juridicamente válida» (!!!) e que não havendo decisões até hoje, segunda feira data do sorteio, o Boavista deve manter-se na primeira divisão (em prejuízo de um indignado Paços de Ferreira) e que o senhor da fruta e o fêcêpê estão limpos. Cada um que deduza daqui o que quiser... Se a moda pega não há órgão que funcione neste país porque basta um presidente ter a certeza de que o órgão vai decidir contra si, suspende a reunião, leva o livro das actas e prontos, o resto é ilegal...

Mas o espectáculo não para aqui. Entretanto que faz o nosso zeloso governo sempre tão preocupado e tão interveniente e tão corajoso e tão frontal e tão determinado e tão rigoroso e tão activo e tão decidido e tão, tão, tão, mas só cos pequenos que nunca o vejo tocar nos grandes? Na pessoa do seu anafado representante para as questões do desporto nacional, Laurentino Dias, alega que «o executivo não se deve meter nestas
coisas e que os órgãos próprios devem decidir sem interferências». Mas a imagem do país lá fora, sô tôr? As cambalhotas perante a Uefa, sôtôr? O «estava castigado mas já não está», sôtôr? Não interessa nada!, repete o Laurentino.

É preciso não ter qualquer decoro para vir fazer de invisual nesta matéria. Ainda por cima depois de, o mesmíssimo sôtôr Laurentino ter vindo berrar aqui há uns tempos atrás em conferência de imprensa convocada para o efeito e tudo, por causa da acusação de doping a um jogador do Benfica, Nuno Assis, que apanhou um ano de suspensão. Tratou-se de um caso individual mas o Laurentino extremoso achou que devia indignar-se publicamente, que a imagem do país e o rigor e isso, blá, blá,blá... Mas agora, perante estes episódios de uma gravidade comparativamente estratoférica, está calado, manda pra canto, deixa andar, diz que não é nada com ele, assobia pró lado... Haja vergonha, fónix! Este Laurentino é o espelho fiel da actuação do governo que representa sempre pronto a ser forte com os fracos e fraco com fortes... Proclamando o contrário.

E ainda acham que vivemos num país a sério? E ainda acham que isto é um assunto que diz respeito apenas e só à reserva privada do couto da bola? E ainda acham que isto era possível num daqueles países muito louros que nos estão sempre a atirar pra cima para comparações esmagadoras quando lhes convém? Eu acho que isto é demasiado vergonhoso para ser remetido a um mero fait divers do universo bolístico. Isto é o retrato do país, o estado do buraco profundo em que já nos atolámos. E ainda querem que nos comparem a países civilizados como a França e a Itália que lidaram de um modo completamente diferente com os seus casos de batoteiros desportivos que punem exemplarmente em poucas semanas? Só a brincar....

03/07/08

A Arte do Cover: The Clash, London Calling, por Ted Tampinha

London Calling, o melhor disco da melhor banda Rock depois dos imortais The Rolling Stones, os igualmente imortais The Clash, não vale apenas (!) pela qualidade musical. Tá bem, eu sei que é o álbum de Brand New Cadillac, de The Guns of Brixton, de Spanish Bombs, de Train in Vain, de Death or Glory ou de Lovers Rock, entre tantos outros clássicos da banda. É que a capa do disco é uma peça de arte ao mesmo nível da música. Da autoria de Ray Lowry (design) e Pennie Smith (foto), o tema do cover é simplesmente uma foto a preto e branco do guitarrista, Paul Simonon, a destruir a guitarra num concerto da banda no Palladium de NY em 1979. Surgido nesse ano, portanto, em plena euforia Punk, a capa reflecte a energia, a força, até mesmo o carácter violento da banda, valores de referência da linguagem rock. É por isso que, ainda hoje, este é considerado um dos melhores covers da história (não acreditam pesquisem no google as listas dos indefectíveis).

Trata-se de um cover marcante também pelo contexto em que surge, logo a seguir à explosão dos Sex Pistols e do Punk, quando as super bandas da época ligadas ao rock sinfónico se afastavam perigosamente das raizes mais primitivas desta forma de expressão. The Clash eram, como se sabe, dos maiores defensores do back to basics Rockeiro e a capa procura reflectir, justamente, esse carácter avassalador que a linguagem Rock estaria a perder. Mas o que é interessante é que este cover se tenha tornado um clássico, isto é, que tenha transcendendido largamente o contexto da época para se tornar num ícone intemporal de rebeldia.

As referências ao passado, a toda uma cultura Rock são subtis, mas qualquer iniciado pode dar com elas. A mais óbvia é a própria foto do acto em si de estilhaçar a guitarra, citação em jeito de homenagem aos The Who e a Pete Townshend que acabava muitos dos concertos a dar cabo da própria guitarra. The Who são parte do filão remoto em que os próprios The Clash se integram. E depois há, ainda, a tipografia, outra citação-homenagem, desta vez à capa do álbum do King, Elvis Presley de 1956. Na forma e nas cores (rosa e verde), na própria similitude das fotos, a citação é clara. É só comparar:



A título de curiosidade final uma referência aos seguidores: a banda espanhola Siniestro Total editou em 1983 o single Sexo Chungo, cuja referência aos Clash, na altura talvez a banda mais importante no activo, fala por si:















E porque é sempre dificil falar dos covers sem as referir às músicas que lá estão dentro, ainda aqui deixo esta referência para o you tube: Brand New Cadillac de London Calling, The Clash no seu melhor: http://www.youtube.com/watch?v=Z2WXlaWv2u0

02/07/08

AMIGÓPTICOS, por Cão





Tenho alguns amigos.
São como os meus olhos.

Tenho alguns amigos que
são como os meus olhos
porque nunca os olho mas
preciso tanto deles.