30/05/05

A Traição Francesa, por J Monet

Ver e ouvir fascistas, comunistas, nacionalistas, trotskystas, socialistas desiludidos, xenófobos e outros egoístas a cantarem em coro afinado a Marselhesa fez-me mal. Mas como é que o Le Pen pode cantar «Aux armes citoyens / Formez vos bataillons / Marchons, marchons» - em coro com os comunistas? É incrível. Como é que a Marselhesa se transformou num hino nacionalista? A Marselhesa é o hino de todos os que acreditam no progresso da Humanidade, no valor da Fraternidade e na universalidade dos princípios. Por isso, o Non do referendo foi a traição histórica da França relativamente ao seu maior legado civilizacional: a herança de 1789. Sem França não há Europa e a França veio dizer que troca a ideia de uma Europa unida por causa de uma comichão no umbigo! A comichão é o nacionalismo, é o particular a impor-se ao universal, é o imediato a toldar a visão do horizonte longínquo, é a conveniência, é o egoísmo, é o mesquinho a ditar regras à história. A França está com comichão e acha que a Europa deve pagar por isso.
O nacionalismo foi a principal causa de morte na Europa e no Mundo durante o século XX. Desde a guerra franco-prussiana, ainda no século XIX, até à guerra da Bósnia, milhões, dezenas de milhões, porventura centenas de milhões de europeus morreram em nome da causa mais estúpida e idiota que imaginar se pode: o amor da Pátria! Não contentes com esta burrice, a maior burrice da história, exportámos esta causa de morte para todo o Mundo. Na Ásia, na África, na América Latina e um pouco por todo o planeta, durante um século morreu-se à europeia: em nome da Pátria! Esta burrice tinha que acabar. Após a 2ª Guerra Mundial, a Europa lança-se no esforço de reconstrução e Jean Monet teve uma visão histórica: «Nous ne coalisons pas des Etats, nous unissons des hommes.» Monet foi um dos pais da ideia de Europa. O nacionalismo romântico, em parte herdeiro e em parte degeneração dos ideais revolucionários de 1789, era assim recolocado na sua justa direcção ao apontar o destino histórico da Europa. Relançar a utopia e, em nome de um ideal, construir uma Europa nova, a Europa dos cidadãos, unida do Atlântico aos Urais.
Não me venham dizer que a França disse Non em nome deste ideal! Não, a França disse Non porque tem medo do turco que diabolizou, porque é xenófoba e quer correr com os magrebinos, porque está farta de portugueses e polacos (o canalizador polaco, como disse a comentadora Teresa de Sousa na TV2 foi o símbolo da demagogia propagandista na campanha pelo Non), porque quer proteccionismo aduaneiro (onde já vai o laissez faire, laissez passer?), porque quer fazer da Europa uma cidadela de conforto isolada da ameça comercial dos chineses, da invasão de polacos e magrebinos, porque não quer que os seus netos tenham apelidos esquisitos.
A França, de motor porgressista da Europa, tornou-se na pátria do reaccionarismo. Isto já se adivinhava quando as multidões diziam que Noah e Zidane não eram franceses, quando subsidiaram artificialmente uma cultura oficiosa, quando quiseram impor que todas as palavras e frases, escritas ou ditas, fossem traduzidas para francês, quando quiseram combater Hollywood com filmes medíocres mas franceses quando, em suma, a França se tornou anti-americana. Jean François Revel já tinha mostrado como este anti-americanismo primário era sinal de uma decadência e de um espírito xenófobo latente. Em torno da demagogia simplória e da propaganda anti-americana, combatia-se pela mesma medida Bush e Hollywood, a Mcdonald's e o Texas, metendo no mesmo saco e agregando tudo contra a América. Ser anti-americano era ser contra a globalização, a globalização era a causa de todos os males e combatê-la era um acto de nacionalismo e devoção patriótica que unia esquerda e direita, ateus e agnósticos, católicos e marxistas, fascistas e gaullistas. Chirac foi a imagem polida desta idiotice histórica. Morreu agora, vítima da sua estupidez! Ele devia saber que a história não se decide nas ruas. Se queria Oui, fazia como a Alemanha e ratificava o tratado constitucional no Parlamento. Se queria Non referendava. Chirac queria Oui e referendou! Nunca me pareceu muito inteligente. A mim, nunca me enganou! Por isso, deixo a minha homenagem a Monet.

PS - Mas há esperança, porque houve 45% de franceses que disseram Oui! Os urbanos. As cidades votaram Oui.
Muito gostaria eu que a esquerda radical aplicasse os mesmos critériios que aplica quando os resultados referendários lhe não são favoráveis:
a) Repete-se o referendo daqui a um ano.
b) Até lá gastam-se milhões em propaganda oficial a favor do sim (lembram-se da Dinamarca?)
c) Associa-se o Non à rusticidade, fazendo passar a ideia de que o Non é provinciano, rural e retrógado, enquanto o Oui é progressista, vanguardista, urbano e intelectual
d) De preferência ratifica-se o tratado constitucional no Parlamento.

26/05/05

A lista dos 100, por João Bénard da Costa, by Mangas

I. OS GIGANTES
(por ordem alfabética de realizadores)
DREYER, Cari T - DU SKAL AERE DIN HUSTRU ; LA PASSION DE JEANNE D'ARC ; ORDFT ; GERTRUD
GODARD, Jean-Luc - VIVRE SA VIE ; LE MEPRIS ; SAUVE QUI PEUT (LA VIE) ; NOUVELEE VAGUE
LANG, Fritz - DER MUDE TOD ; M ; LILIOM ; DER TIGER VON ESCHNAPUR/DAS INDISCHE GRABMAL
RENOIR, Jean - LA NUIT DU CARREFOUR ; LA RÈGLE DU JEU ; LE CARROSSE D'OR ; ELENA ET LES HOMMES
ROSSELLINI, Roberto - GERMANIA, ANNO ZERO; EUROPA 51; VIAGGIO IN ITALIA; DIE ANGST (LA PAURA)
II . OS MUITO AMADOS
(por ordem alfabética de realizadores)

BERGMAN, Ingmar – SOMMARLEK ; PERSONA ; AUS DEM LEBEN DER
MARIONETTEN
BRESSON, Robert – PICKPOCKET ; AU HASARD, BALTHASAR ; LE DIABLE
PROBABLEMENT
BUÑUEL, Luis - BELLE DE JOUR; TRISTANA ; CET OBSCUR OBJET DU DÉSIR
DEMY, Jacques - LOLA ; LA BAIE DES ANGES ; LES PARAPLUIES DE CHERBOURG
MURNAU, Friedrich-Wilhelm - NOSFERATU; TARTÜFF; FAUST
OLIVEIRA, Manoel de – FRANCISCA; LE SOULIER DE SATIN; VALE ABRAÃO
OPHULS, Max – LIEBELEI; LA RONDE; LOLA MONTÊS
POWELL, Michael e PRESSBURGER, Emeric - I KNOW WHERE I'M GOING; A MATTER OF LIFE AND DEATH; GONE TO EARTH
ROHMER, Eric - LOUIS LUMIÈRE; LE BEAU MARIAGE ; LE RAYON VERT
SCHROETER, Werner - PALERMO ODER WOLFSBURG; DER ROSENKÓNIG; MALINA
SYBERBERG, Hans-Jurgen - HITLER, EIN FILM AUS DEUTSCHLAND ; PARSIFAL ; DIE NACHT
VISCONTI, Luchino – SENSO ; LE NOTTI BIANCHE; L`INNOCENTE
III . ALGUNS DOS OUTROS
(por ordem alfabética de realizadores)
ANTONIONI, Michelangelo - IL MISTERO DI OBERWALD
ARLISS, Leslie - THE MAN IN GREY
BAKY, Josef von - MUNCHHAUSEN
BARNET, Boris - U SAMOGO SINEVO MORIA
BECKER, Jacques - CASQUE D'OR ; LE TROU
COCTEAU, Jean - LA BELLE ET LA BETE
DOVJENKO, Aleksandr - ZEMLIA ; AEROGRAD
EISENSTEIN, Sergei Mikhailovich - IVAN GROZNY
ELEK, Judit - VIZGALATS MARTINOVICS IGNAC - SZASZVARI AP AT ES TACSAI UGYEBEN
ERICE, Victor - EL SOL DEL MEMBRILLO
EUSTACHE, Jean - LA MAMAN ET LA PUTAIN
GAD, Urban - DIE ARME JENNY
GARREL, Philippe - LA CICATRICE INTÉRIEURE
GENINA, Augusto - IL CIELO SULLA PALLUDE
GREVILLE, Edmond T. - BRIEF ECSTASY
GUITRY, Sacha - LA POISON
HARTL, Karl - DIE GRAFFIN VON MONTE-CRISTO
HITCHCOCK, Alfred - YOUNG AND INNOCENT
LORRE, Peter -DER VERLORENE
MONTEIRO, João César - RECORDAÇÕES DA CASA AMARELA
MUNK, Andrzej - PASAZERKA
MUR OTI, Manuel - CIELO NEGRO
PARADJANOV, Sergei - SAYAT NOVA
PASOLINI, Pier Paolo - UCCELLACCI E UCCELLINT; SALO O LE 120 GIORNATE DI SODOMA
REINHARDT, Max - DIE INSEL DER SEELIGEN
REIS, António e CORDEIRO, Margarida - TRÁS-OS-MONTES
RIEFENSTAHL, Leni - TRIUMPH DES WILLENS
RIVETTE, Jacques - LA RELIGIEUSE
ROCHA, Paulo - A ILHA DOS AMORES
ROZIER, Jacques - MAINE- OCÉAN
SCHMID, Daniel - IL BACIO DI TOSCA
SJOSTROM, Victor - BERG- EJVIND OCH HANS HUSTRU; UNDER THE RED ROBE
SKOLIMOWSKI, Jerzy - MOONLIGHTING
STERNBERG, Josef von - DER BLAUE ENGEL
STILLER, Mauritz - HERR ARNES PENGAR
STRAUB, Jean-Marie e HUILLET, Danièle - CHRONIK DER ANNA MAGDALENA BACH
TRUFFAUT, François – JULES ET JIM ; LES DEUX ANGLAISES ET LE CONTI NENT
VIGO, Jean - L`ATALANTE
WILDER, Billy - MAUVAISE GRAINE

in, “100 Dias 100 Filmes”, edição da Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema, 1994.

25/05/05

100 Filmes, por João Bénard da Costa & Mangas

A propósito de listas de filmes, preferências e da subjectividade que lhes é inerente, não resisti a publicar o texto que João Bénard da Costa escreveu para “100 Dias 100 Filmes”, catálogo publicado pela Cinemateca Portuguesa e integrado no programa de “Lisboa 94 – Capital Europeia da Cultura”.

«PRELÚDIO E POST SCRIPTUM AOS MEUS 100 MELHORES FILMES EUROPEUS.
“Um peru” - disse um gourmet célebre – “é um animal execrável. Pequeno demais para dois, grande demais para um”. Cem é um número igualmente execrável, quando se trata de uma lista destas. Parece que nos vamos poder servir à vontade e no fim verifica-se que ficamos cheios de fome. Não dá para o rigor mortal da escolha de “10” ou “20” ou “50”, mas também não permite qualquer esbanjamento. Dá-nos uma falsa ilusão de abundância, mas depressa lhe descobrimos a escassez.

A minha primeira lista (feita “à vontade”) quadruplicou o número de possibilidades. Na segunda, comecei a economizar e cheguei aos 200 títulos. Reduzi-os a 100, demorou-me meses e obrigou-me a opções penosas. Para o conseguir, tive de estabelecer uma regra para o meu jogo. Essa regra veio direitinha da “politique des auteurs” e da minha velha fidelidade a ela.

Na primeira jogada, perguntei-me quem eram, indiscutivelmente, os gigantes do cinema europeu, os maiores dos maiores. Dreyer, Godard, Lang, Renoir e Rossellini foi a resposta que ouvi no meu espelho mágico. Perguntei-lhe por Hitchcock e o espelho respondeu-me que Hitchcock só é Hitchcock por causa da sua fase americana. Com má consciência - miséria a quanto obrigas – deixei-me convencer. Obediente à hierarquia, escolhi cinco filmes de cada um desses cinco. Descobri, no fim de mais uma lista, que ainda ultrapassava os 100. Reduzi para quatro, o que me obrigou a sacrificar Mikael de Dreyer, À Bout de Souffle de Godard, Das Testament des Dr. Mabuse de Lang e La Bête Humaine de Renoir. Arranquei esses filmes – cinco dos meus filmes preferidos – como arranquei alguns dentes.

Depois, perguntei-me (segunda jogada), quem eram, indiscutivelmente, os autores que, além dos cinco citados, eu mais amava. Obtive 12 nomes, a que não podia fugir sem renegar pai e mãe: Bergman, Bresson, Buñuel, Demy, Murnau, Oliveira, Ophuls, Powell, Rohmer, Schroeter, Syberberg e Visconti. Escolhi, em primeira instância, quatro filmes de cada um. A consequência dessa verdade, fez-me ultrapassar, de novo, os 100. E reduzi para três, o que me obrigava a sacrificar Vargtimmen de Bergman, Les Dames de Bois de Boulogne de Bresson, La Voie Lactée de Buñuel, Trois Places pour le 26 de Demy, Der Letzte Mann de Murnau, Amor de Perdição de Oliveira, La Signora di Tutti de Ophuls, The Thief of Bagdad de Powell, Ma Muit Chez Maud de Rohmer, Der Tod des Maria Malibran de Schroeder, Ludwig de Syberberg e Vaghe Stelle dell`Orse de Visconti. Ou seja, menos doze dentes.

Com a boca tão desdentada, tinha já 56 filmes. Ficavam-me menos de 50 (menos de 50%) para as apostas simples, ou seja as não obrigadas a autor. Pelo caminho, foram desaparecendo os dezanove dentes que me restavam: Amphytrion de Schunzel, Fortini-Cani e Nicht Versohnt dos Straub, Aerograd de Dovjenko, Repulsion de Polanski, Desiré de Sacha Guitry, Le Rideau Cramoisi de Astruc, Un Soir... Un Train... de Delvaux, La Tête Contre les Murs de Franju, 1860 de Blasetti, L`Amour Fou de Rivette, Muriel de Resnais, Et La Lumière Fut de Iosseliani, La Chute de la Mison de Usher de Epstein, Hintertreppe de Jessner, Aguiree de Herzog, Die Buchse der Pandora de Pabst, San Toit ni Loi de Agnés Varda, Dorogoi Tsenoi de Donskoi, El Sur de Victor Erice e Poema o More de Yulia Solntseva.

Com as gengivas descarnadas, já engoli que Under Capricorn de Hitchcock e Pandora de Lewin eram filmes americanos, que Douglas Sirk nunca se chamou Detlef Sierk e que Muratova ainda está por provar.

Só no fim reparei – lapsus calami – que na minha lista não figura nenhum filme de Tati. Mas é verdade que me esqueci dele e, com tanta penúria e tanta miséria, aceitei a voz do meu inconsciente.

Se me tivessem deixado escolher 150 filmes, ainda tinha juntado aos 42 a menos (Tati figuraria com Playtime e Mon Oncle), Le Peti Théatre de Jean Renoir, Vredens Dag de Dreyer, Ansikte mit Ansikte de Bergman, Frenzy de Hitchcock, Madame De... de Ophuls, Der Tod des Empedokles de Straub-Huillet, Une Sale Histoire de Eustache, Les Enfants Désaccordés de Garrel, e Frankenstein Created Woman de Terence Fisher.
Mas o facto é que não deixaram e os cinquenta filmes que cito aqui são a homenagem que o vício presta à virtude. Demais se eu que para efeitos de contas, e para contas de efeitos, de nada me serve citá-los.
Os 100 são os 100. E, de acordo com os critérios explicados, vão a seguir.»

Bénard da Costa termina com uma lista de 100 filmes dividida em três partes:
I. Os Gigantes
II. Os Muito Amados
III. Alguns dos Outros

Confesso que nunca vi muitos dos títulos escolhidos pelo autor. E o que me ocorre de imediato, após ler esta catalogada incursão pelos filmes de uma vida, é a complexidade da escolha, a dor decorrente do sacrifício e a vastíssima celebração que o cinema pode proporcionar a quem o contempla. Amanhã vou ver o Episódio III da Saga. O fim de um ciclo que começou há 28 anos atrás. Amanhã vai ser dia de celebração.

24/05/05

Safoda a Bola, por J Trineto

São sempre uma delícia, as listas dos “melhores de”. Melhores do ano, melhores do mês, melhores do século, melhores da cantadeira, etc. Quando não se concorda, então, melhor ainda. São uns óptimos pretextos para desopilar a bilis , estes “rankings”. Desta vez são os «100 melhores filmes da história do cinema», e foram escolhidos pela última edição da prestigiada revista norte-americana Time. Não aparece nenhum português, mas os tipos, definitivamente, não foram facciosos. Grande parte das fitas até são “estrangeiras”, sobretudo europeias. À cabeça, destaco o facto de terem eleito o fabuloso e inesquecível Hable com Ella, do espanhol Pedro Almodóvar, como o melhor desta década. Bom prenúncio, portanto, para esta lista, onde os críticos de cinema Richard Schickel e Richard Corliss escolheram «nove grandes filmes para nove décadas», assinalando desta forma igualmente os 90 anos de existência da publicação.
Eis então, para a Time, os melhores filmes de cada decénio:
Anos 20 - Metropolis (1927), de Fritz Lang
Anos 30 - Dodsworth (1936), de William Wyler
Anos 40 - Citizen Kane (1941), de Orson Welles
Anos 50 - Ikuru (1952), de Akira Kurosawa
Anos 60 - Persona (1966), de Ingmar Bergman
Anos 70 - Chinatown (1974), de Romam Polanski
Anos 80 - Decalogue (1988), de Krysztof Kielowski
Anos 90 - Pulp Fiction (1994), de Quentin Tarantino
Anos 2000 - Hable com ella (2002), de Pedro Almodôvar.

11/05/05

Subtilezas, por Ó Jóta Arrendonda a Saia Ó Jóta Arrendonda-a Bem da Imaculada Conceição

Há pouco tempo falou-se aqui da relação entre o cliente/cidadão/consumidor e o trinómio instituições/comércio/serviços. Mestre Mangas trouxe para este fórum suino a sua gratificante experiência com uma cadeia de hamburgarias dos States, que trata os clientes nas palminhas e atende, de facto, às reclamações, por mais ridículas que pareçam. Em contraponto, claro está, ao panorama terceiro-mundista e relaxado do nosso país. Pelo meio, aconteceu-me um caso que pode ser encarado como uma excepção exemplar, além de remeter para a polémica da “arte útil” no que respeita à sinalização pública.
Há algum tempo fui a Serralves, aos jardins, ao Siza, etc., corri aquilo tudo. No fim, à saída do Museu de Arte Contemporânea, dei com a caixa de reclamações e sugestões, um grande cubo transparente, vazia e a pedir estreia. Peguei no papelito, elogiei o que havia para elogiar e fiz um reparo, relativamente à sinalética, designadamente aos símbolos abstractos que diferenciam os sexos nos sanitários, bonitos, talvez, mas incompreensíveis para o comum dos cidadãos. Por mais de uma vez passei perto dos wc’s e o panorama era sempre o mesmo: Senhoras e senhores, meninos e meninas, completamente baralhados, a olhar para os bonecos nas portas como bois para um palácio e a fazer complexas equações de cabeça para descobrir a qual pertenciam. Muitos, obviamente, arriscavam às “cegas” e entravam numa qualquer. Não raro, iam ao engano e saíam a fugir aos gritinhos, “ái que me enganei!”. Enfim, uma bonecada completamente abstrusa e nada prática ou informativa. Afinfei no papelito e sai dali satisfeito.
Passado cerca de um mês recebi via correio electrónico a seguinte carta, assinada nem mais que pela excelentíssima senhora doutora Directora Geral, Odete Patrício:

Exm. Senhor,

Gostaríamos, antes de mais, de agradecer a visita que efectuou à Fundação de Serralves, bem como a comunicação que nos endereçou e que mereceu toda a nossa atenção.
É para nós fundamental dispor das opiniões e apreciações dos nossos visitantes, para que possamos implementar acções que visem a constante melhoria dos serviços que prestamos. O nosso objectivo primordial é transformar cada visita efectuada à Fundação de Serralves numa experiência única e muito agradável.
Relativamente ao comentário que formalizou aquando da sua visita, não queríamos deixar de lhe referir o quanto o mesmo nos deixa satisfeitos por se traduzir na confirmação dos nossos objectivos diários. Quanto à sinalética dos sanitários estamos cientes que é bastante subtil mas faz parte integrante do projecto do Arq. Álvaro Siza, pelo que não a podemos alterar.
Aproveitamos para informar que no próximo dia 7 de Maio vamos inaugurar 3 exposições dedicadas às obras de Paulo Nozolino e Gregor Schneider no Museu e Ana Jota na Casa de Serralves, as quais, estamos certos, merecerão uma visita especial. Para mais informações acerca das nossas actividades, sugerimos uma consulta ao site www.serralves.pt, o qual é actualizado regularmente ou tornar-se AMIGO de Serralves usufruindo assim dos benefícios previstos para este núcleo de visitantes.
Agradecendo a disponibilidade em nos ter contactado, ficamos ao seu inteiro dispor para qualquer informação adicional através da DG – Relações Públicas – Assunção Cálem (22 615 65 28).

Com os nossos melhores cumprimentos,

tal e tal,

08/05/05

Vigor da Mocidade, 75 anos de... vida! , por Mangas

O fiel leitor do Porco que nos perdoe, mas todos nós somos animais de paixões e por elas nos debatemos, sobre elas teorizamos, com elas andamos ao sol, porque a sombra é boa para os pálidos de pele que lhes pica o suor, como cantava o Júlio Iglesias. Quer isto dizer que por aqui, ama-se um filme, como se ama um filho; relê-se um livro, vezes sem conta, porque o Porco é um animal de imaginário e nele viaja ao sabor dos vagalhões. O vinho que demoradamente se saboreia, a caldeirada que se mastiga e o charuto que se esvai na cinza da madrugada, são rituais de ardente religiosidade e inigualável apetite. O deporto em geral, e o futebol em particular, são práticas generalizadas por estas bandas e também fazem parte da lista desse debate ideológico. Como tal, o fiel leitor que nos perdoe a ousadia de encher o chouriço do Tapor com coisas da bola.

Mas, para terminar este ciclo de sapientes dissertações à volta do fenómeno futebolístico e desanuviar o ambiente, contar-vos-ei uma história que se passou comigo. Descansem: não vos trago a análise detalhada do jogo sustentado, tão pouco a observação in loco da pré-época do poderoso Chelsea ou do gigante A.C. Milan. O que compartilho com vocês é a face copo&bucha do amadorismo na Divisão Distrital. A grande diferença está no poder do negócio, no dinheiro envolvido, nas infra-estruturas, e enfim, em tudo o resto do qual a poderosa máquina do profissionalismo suporta e sustenta. Asseguro-vos porém que durante um jogo dos Distritais, o apoio dos sócios, vizinhos ou simpatizantes, namoradas, esposas, filhos e enteados, patrões ou colegas da fábrica, vale o mesmo que os cânticos de uma claque organizada nas bancadas do Cam Nou! E um derby entre equipas de terras vizinhas ou da mesma freguesia, não tenham dúvidas, é a doer! No seio de qualquer equipa, é limpinho que as faltas ou atrasos aos treinos são penalizadas com multas para um saco comum que revertem numa jantarada no final de época; quando os desafios são decisivos e podem ditar uma subida ao escalão superior, fazem-se pequenos estágios antes dos jogos, quase sempre em tasco patrocinador a designar pelo presidente ou na sede do clube onde o rancho, os matrecos e uma suecada antes da palestra do Mister, ajudam a relaxar os mais calmeirões antes da refrega e a fortalecer o espírito de grupo. É assim que pelas Distritais deste país se vive a paixão pelo futebol. Devo dizer-vos também, e por uma questão de justiça, que não são raros os casos em que clubes são veículos genuínos na prestação de bons serviços à comunidade, quer pela organização de iniciativas desportivas e recreativas, quer pelas Secções criados no seu seio de apoio a modalidades e ocupação de tempos livres para rapaziada mais nova.

Esta aconteceu-me a mim, que durante alguns anos dividi os ossos do ofício entre os crónicos do hospital e os cromos do Grupo Recreativo Vigor da Mocidade, esse Clube baluarte de Fala, que este ano comemora o 75º aniversário e ao qual se presta, com esta narrativa verídica, uma homenagem saudosista desses bons velhos tempos. O Vigor jogava nessa época 98-99 na 1ª Divisão dos distritais de Coimbra e o treinador, apologista dos jogos-treino a meio da semana com outras equipas, marcou a quinta-feira para irmos ao campo do Mirandense. Era Fevereiro e chegámos a Miranda debaixo de temporal! Chuva intensa, frio, fortíssimas rajadas de vento, trovoada. O único abrigo resguardado de toda aquela tempestade medonha era dentro do balneário. Um bom balneário, devo acrescentar, ao contrário dos muitos que apanhei, como em Gavinhos, onde havia apenas três chuveiros alimentados por uma caldeira ferrugenta lá fora, na parede esburacada junto ao solo barrento que escoava as mijadelas lá de dentro. O do Mirandense, não. Era grande, asseado, azulejos brancos, duches com saboneteira, tudo impecável. O jogo-treino em si foi uma desgraça! Campo completamente alagado a dificultar a progressão da bola, vento traiçoeiro, lama, aos suplentes nem havia coragem para lhes pedir que fossem aquecendo - ficavam-se nas imediações do balneário, enroscados nos impermeáveis como pintos, debaixo dos telheiros contíguos. Foi um alívio geral quando aquilo acabou e um duche quente era um prémio mais do que merecido a todos aqueles bravos que tinham para ali andado a saltar obstáculos 90 minutos como andorinhas na borrasca.

É aqui que a drama se precipita. Já com os jogadores todos debaixo do banho temperado, num ambiente característico de descompressão e espuma, entre a discussão calorosa daquele livre que podias ter dado para o lado e uma densa neblina de vapor condensado que tornava a coisa próxima de uma sauna colectiva, ouve-se um estrondoso relâmpago e falta a luz. Fica tudo às escuras. A primeira reacção foi uma assobiadela monumental, protestos, caralhadas, e quem é o filho da puta que me tirou a toalha! Passou-se um minuto, dois, o coro de protestos aumenta, a confusão é tão geral como o apagão, alguns jogadores apanhados a meio da secagem não conseguem localizar as roupas e berram com frio, o desconforto é cada vez maior. E é aqui que eu entro. Iluminado por uma ideia simples e armado em McGyver com moleirinha de Prof. Pardal, lembro-me que o no meu saco está a luz que iluminará as trevas. É que os vulgares sprays milagrosos têm na sua composição cloreto de etílico que em contacto com a atmosfera cria uma reacção de baixa temperatura que actua instantaneamente sobre a dor. Daí o lendário epíteto de spays milagrosos. Porém, esta composição é altamente inflamável e enquanto estudante, raros foram os estágios fora de casa em que um frasco não desse para assar, pelo menos, meia dúzia de chouriças. Os frascos que trazia naquela noite, ainda por cima, eram munidos de um dispositivo protector da natureza, sem SFC adicionado, logo sem pulverização, logo, mistura pura e líquida, logo, mais chama, mais luz. Brilhante! Desnecessário será descrever-vos os breves segundos que se seguiram à primeira esguichadela de cloreto de etílico no chão do balneário e ao resultado do fósforo que lhe deu vida: uma chama bonita, azulada e bem definida que resgatou das trevas e do frio aqueles rapazes. Pobres almas... Soubessem eles o que os esperava a seguir e não teriam aplaudido, cantado e sacudido os corpos nus à volta da fogueira, como demónios ressuscitadas.

Aquilo encheu-me a alma, caralho! Era o meu golo de penálti! Os cânticos saudavam o meu nome com o mesmo frenesim que o Profeta teria sido aclamado, alguns até dançavam como índios em homenagem ao grande Manitou. No espaço de um minuto, fiz outra fogueira, e outra, e outra, multipliquei a luz, era o Senhor das Fogueiras, o Feiticeiro das Labaredas que excomunga o medo da noite. Nem no Paleolítico os gajos celebraram tanto, acreditem-me! Mas a química não joga aos dados e os Deuses iraram-se com a minha cagança de alquimista distrital: o vapor circundante dos banhos impediu a propagação no ar do gás tóxico resultante das várias combustões e este condensou-se na atmosfera. Factor “X”: the unexpected. Nunca tinha visto, nem cheirado coisa semelhante àquela malina fétida e mortal, garanto-vos! Awschvitz devia ter começado assim. Rapidamente, uma onda gasosa impossível de respirar entranhou-se-nos nas gargantas, como cactos pela goela abaixo. Era como aspirar um veneno ácido que bloqueava os pulmões. Imaginai-vos a inalar uma espécie de água tónica sulfurada no estado gasoso, numa tarde quente de verão, dentro de uma sauna escura: assim era o tormento! Alguém tosse, ouço gritos de pânico e pressinto os primeiros sinais de perigo! Começo a apagar os pequenos infernos, (o que não foi fácil, como calculam!) e a encaminhar os rapazes para a porta. Por nesta altura, vários tossem em simultâneo e distingo claramente os berros de vários jogadores misturados pelos quatro cantos do balneário à procura da porta de saída. A visibilidade era quase nula, as tosses sufocadas multiplicam-se, e apercebo-me então que alguns conseguiram escapar e andam lá fora como Nosso Senhor os trouxe ao mundo, à procura de oxigénio como do pão para a boca, debaixo da chuva gelada batida a vento. Rapidamente e aos encontrões, seguiram-se-lhes os restantes com a ajuda de alguns directores que vieram em auxílio. Eu continuei lá dentro, já sem os anéis de pirotécnico iluminado e com uma toalha húmida no rosto para continuar a respirar, tentando desesperadamente certificar-me que não tinha ficado para trás nenhum defesa central latagão com perda de consciência. A cada passo, prometia ao Todo Poderoso um donativo generoso as bombeiros se, no final da tragédia, só sobrassem risos. Tentava gritar: “Está aí alguém?”, mas cada vez que abria a boca, a mistura pestilenta invadia-me os pulmões e bloqueava a respiração. Era escusado. Quando saí, os olhos ardiam-me e os brônquios ameaçavam saltar-me pela boca a cada inspiração. Tão célere foi o salvamento, como fugaz tinha sido o triunfo.

E só sobraram os risos. Felizmente. A luz veio logo a seguir e acabámos a noite a comer umas sandochas, a beber uns tintos para desentupir as goelas e a rirmo-nos do incidente. Não houve vítimas nem constipações, pois que no Vigor as gentes e os atletas são como o aço! Gente boa e generosa que ao longo dos anos sempre me privilegiou com amizade e afecto.

Mas ainda hoje, quando algum dos sobreviventes da noite mais tenebrosa dessa época gloriosa em que subimos à Honra, me procura para lhe tratar o joelho, enfrenta-me com um sorriso malandro a bailar-lhe nos olhos e atira-me, à procura da cumplicidade daqueles breves segundos que pareceram uma eternidade:
“- E naquela noite em que você nos ia assando a todos como a leitões nos fornos? Lembra-se...? AHAHAHAHA!”

Eu vou atrás da gargalhada, mas humildemente e num gesto discreto, levo a mão ao peito para tocar o crucifixo e lembro-me de dar outro donativo aos Bombeiros.

03/05/05

Coisas de Traduções - Primeira Parte, por Automotora


The Lady in the Lake, de Raymond Chandler

Tendo eu lá em casa duas edições diferentes da obra acima referida, nem perguntem porquê, e apanhando-me desocupado, pus-me a comparar as respectivas traduções. Para ver o que o escritor afinal queria, fui à net e a custo lá encontrei um bocado do original. Conclui então que são insondáveis e solitários os mistérios da cabeça dos tradutores. Reparem:

The Treloar Building was, and is, on Olive Street, near Sixth Avenue, on the west side. The sidewalk in front of it had been built of black and white rubber blocks. They were taking them up now to give to the government, and a hatless pale man with a face like a building superintendent was watching the work and looking as if it was breaking is heart.
(No original)

O edifício Treloar ficava e ainda fica na Olive Street, perto da Sexta Avenida, do lado poente. Por requisição do governo, andavam a levantar os ladrilhos da calçada, feitos em borracha preta e branca. Um homem macilento, de cabeça descoberta e aspecto de fiscal, vigiava a obra, que parecia despedaçar-lhe o coração.
(Tradução de Ruth Belger para Livros do Brasil, Colecção Vampiro)

Perto da Sexta Avenida, do seu lado oeste, situava-se o edifício Treloar. O passeio em frente fora construído em ladrilho de borracha preta e branca que, por ordem do governo, estavam agora a ser levantados. Um fiscal, de ar macilento e cabeça destapada, vigiava a obra, com a qual parecia não concordar.
(Tradução de Jorge Pinheiro para Biblioteca Visão, Colecção Lipton)

Chamou-me logo a atenção o facto de ambos os tradutores terem acordado tacitamente que o homem que vigiava, por ser pálido, devia ter um ar macilento. Ficou adoentado, talvez até tuberculoso, quando o problema se resumiria a alguma prolongada falta de sol ou a um recente desgosto. Ou talvez fosse simplesmente sueco. Ambos concordam também sobre as coordenadas do edifício, embora o primeiro, mais romântico, se sinta na necessidade de informar que esse é o lado onde o sol se pôe todos os dias. O segundo diz, no entanto, que o edifício “situava-se”, simplesmente, o que faz supôr que já não se situa. Terá entretanto sido demolido, ardeu, caiu, kaput. A narrativa foi empurrada para um futuro longinquo de grandes transformações imobiliárias. O narrador, o próprio Marlowe, coitado, terá também assim envelhecido cinquenta anos desde o original à segunda tradução. A tal rua é a Olive Street, como nos informa o escritor, mas o segundo tradutor, estranhamente, não lhe faz qualquer referência. Terá achado, talvez, que já não precisavamos de saber o nome da rua onde se situava o edifício defunto. Aliás, este tradutor é mesmo bastante avarento nas informações. Vejamos: enquanto no original e na primeira tradução os ladrilhos eram levantados para serem dados ao governo, na segunda eram levantados simplesmente por ordem do governo, sem se revelar se o seu destino imediato seria um armazém do governo ou o joe sucateiro. Não sabemos igualmente, nesta versão livre, qual o estado de espírito do homem que assistia à obra. Enquanto na primeira, mais fiel ao original, se informa que o pobre do homem ficou com o coração despedaçado, na segunda apenas se diz que o homem não concorda com o que vê. O leitor fica assim impedido de verter uma lagrimazinha pelo desgosto do homem. Convém ainda assinalar que nem no original nem na primeira tradução se informa qual a profissão do homem. Apenas se diz que tinha cara de fiscal de obras, seja lá o que isso for. Ora o segundo tradutor parece ter achado que se o homem tinha cara de fiscal de obras, era forçosamente fiscal de obras. Teriamos então que numa adaptação cinematográfica desta versão, o homem talvez aparecesse com farda de fiscal de obras. O pobre coitado, talvez já a gozar a reforma, que talvez tivesse ali parado por acaso, a caminho do Central Park para ir dar comida aos pombos, ficou assim nomeado para uma tarefa bem chata. Pensando bem, talvez o homem nem aparecesse de todo em qualquer filme. Não me lembro já bem do resto do livro, mas acho que o papel do homem se resume a estar parado naquele parágrafo com cara de parvo. A última vez que ninguém o viu, passada uma hora e meia hora, estava ele a ser comido por pombos no Central Park. Desconfio mesmo que nunca se falou tanto nele quanto neste pobre e efémero post. Ou talvez o homem seja uma breve aparição do próprio Raymond Chandler na sua obra, ao estilo do Hitchcok nos seus filmes.

E é tudo. Agora aceitam-se novas traduções fantasiosas, comentários críticos e manifestações de carinho sobre a lendária Colecção Vampiro. Da outra não vale muito a pena falar. Já agora, algum porco quer continuar com outras duplas ou triplas traduções?