11/01/16

Where Are You Now?, por The Buddha of Subhurbia

Acordo e ligo o rádio que me diz algo que julgo ter ouvido mal - «morreu David Bowie» - porque os Deuses não morrem. Fiquei a pensar, porque, precisamente, Eles nunca morrem, que só pode ter  sido dos meus ouvidos. Mas a seguir reparo que não é normal passarem na rádio o Young Americans áquela hora da manhã e depois o locutor acrescenta «mais informações no nosso noticiário das 8» e eu vacilo, mas ainda repito que não pode ser, que não é possível... Espero, ansioso, pelo noticiário das 8 e é mesmo verdade: morreu David Bowie e, ainda por cima, passam a minha música preferida, Heroes, aquele misto de revolta, desespero e paixão e é nesse preciso momento que eu me venho abaixo. Nunca julguei que fosse possível que a morte de alguém que não conheço mexesse tanto comigo!

Mas, como diz um amigo comum (meu e dele), é claro que o conheço, ele faz parte de mim, do que sou  e de como sou. É verdade, mas é também por isso que sinto tanto, porque com a sua partida é, também, um pouco (um muito) de mim que se vai para sempre. É certo, a sua obra permanece, as suas músicas estão cá para sempre, mas é triste saber que ele já não me vai voltar a surpreender com a sua espantosa criatividade (e ainda há poucos dias o tinha feito, uma vez mais, com Black Day)...

Um artista é verdadeiramente grandioso quando consegue estabelecer uma relação pessoal, íntima, insubstituível com o seu, não sei bem que palavra escolher, ia a escrever público, mas no momento em que um artista estabelece essa relação pessoal comigo, então eu já não sou público, já não sou fâ, já não sou admirador, já me tornei noutra coisa qualquer mais pequena e maior, um amigo, um íntimo, seja o que for... David Bowie é um dos poucos artistas com quem logrei estabelecer uma relação desse tipo: ele sabia mais de mim do que a maior parte das pessoas com quem convivo no dia a dia. Fã? Público? Não. Nunca fui fã de Bowie, fui e sou algo muito mais forte e por isso  agora me custa tanto que ele tenha partido.

Bowie acompanhou-me ao longo da vida, a partir dos meus 17 ou 18 anos, quando ouvi pela primeira vez Ziggy Stardust, num dia cinzento, ainda me lembro. Foi imediato, não precisei de mais que dois acordes para ficar completamente rendido àquela sonoridade. Num impulso corri a comprar todos os vinis que encontrei e que a minha mesada da altura permitia: Hunky Dory (mas não tinha nada a ver com Ziggy, que era eléctrico e este acústico, sendo, contudo, igualmente genial), Alladin Sane ( ainda rock mas mais pesado, mais básico, o disco de Jean Genie) e Diamond Dogs (com o inesquecível Rebel Rebel). Bowie acompanhou-me  em momentos que não interessam para aqui, mas que foram marcantes para mim e, mais não houvesse, o lugar dele já estaria seguro na minha escala de afectos. Gostei de tal maneira destes discos - os primeiros que dele ouvi - que me recusei a abdicar deles quando a namorada da altura os exigiu para si, a propósito daquelas partilhas infames que ocorrem sempre quando um casal se separa e já não se sabe o que é que pertence a cada qual. Ela não gostava assim tanto do Bowie, queria os discos, suponho, só para me chatear, sabia como eu os adorava e era uma forma cruel de se vingar. Mas não cedi, podes levar a casa, o carro, o dinheiro mas não me levas os discos do Bowie...

Ele voltou a surpreender-me mais tarde quando me rendi - como toda a gente na altura - ao maior sucesso da sua carreira, Let s Dance. Adorei China Girl, um original de Iggy Pop, a que ele deu uma nova dimensão como fez muitas vezes - com Let`s spend the night... dos Stones, com le port de Amsterdam de Brel, com the Long and windin road dos Beatles, com um disco inteiro de covers, Pin Ups, mas que espécie de génio é que desce do seu pedestal de super star para fazer um álbum só com músicas de outros autores? Depois foi a vez de Scary Monsters, outra obra prima absoluta, que eu ouvi milhares de vezes com outro amigo comum - Because You´re Young e o extraordinário Its no game (parte 2) foram marcantes...

Mas o melhor estava para vir quando descobri a frase electrónica dele e a sua parceria com outro génio , Brian Eno, em dois álbuns brilhantes e inqualificaveis (que género de música é aquela?), Low e, sobretudo, o seminal Heroes, para mim , a sua obra prima absoluta . Muito mais tarde, ainda, descobri a sua fase inicial, sobretudo, The man who sold... e space oddity, geniais, mais uma vez (e Memory of a Free Festival, que música!). Vi-o ao vivo, claro, na única vez que actuou em Portugal, na Sound and Vision Tour. Foi fantástico, apesar do estádio cheio e da multidão comprimida...

Bom, eu não posso mencionar aqui todas as sucessivas descobertas que fiz de Bowie ao longo da vida, posso só tentar exprimir a noção de que ele me acompanhou sempre,mas sempre, que foi a banda sonora de grande parte da minha vida, dos minhas angústias e alegrias, das minhas viagens interiores e exteriores. E é incrível, que homem é este que se multiplicou em tanto ser diferente, vertiginosa mas sempre, fielmente? Pode ser-se genial numa área específica; Bowie era-o em muitas, era uma espécie de personagem renascentista que transformava em ouro tudo aquilo em que tocava sem conhecer fronteiras de qualquer espécie. Talvez nos meados anos 80-90, assim reza a crítica , ele tivesse cedido um pouco, com alguns álbuns menos interessantes, como never let me down ou tonight. Mas recentemente reencontrei pérolas perdidas da sua discografia quando comecei a ouvir os seus discos pós-Hearthling. Todos os que ele fez depois...

E, ainda não estava refeito do espanto da descoberta deste último Bowie pós -Hearthling, eis que surge The Next Day, genial em tudo, até na capa espantosa, no sincretismo, na amargura de Where are We Now? (do melhor que ele fez). Ainda por cima, descobri este disco, da mesma forma genuína que descobri outros Bowies no passado: entre amigos, durante uma longa viagem de carro. The Next Day tem vida agarrada. E há aquela lição magistral que confirmamos, por exemplo, nos vídeos do álbum: Bowie assume sem medo as marcas («scars») do tempo, os golpes da velhice no seu rosto, a angústia do fim. É um álbum triste mas irresistível.
Na semana passada saiu Black Star e, mais uma vez, foi para mim um espanto absoluto (mas este homem não tem limites? Tinha, afinal, maldito noticiário das 8...). Até certo ponto parecia-me uma continuação de The Next Day, outra vez o mesmo esforço de síntese do passado e do futuro, o cruzamento de influências (jazz, ambientalismo, rock, sinfonismo...), o mesmo clima de fim de mais um ciclo e de início de outro (Lazarus...) e, acima de tudo, aquela proximidade da morte, a sua própria morte, que percebe-se agora, ainda faz parte deste disco. The Next day era a angústia do tempo que se lhe escapava;  Black Day é, uma aproximação da morte ( a faixa homónima) como eu só conhecia nos grandes requiens da grande música.