Há cerca de um ano, aproveitando a visita de um amigo que
habitualmente reside em Paris e gosta, como eu, destas coisas da leitura,
pedi-lhe uma sugestão. Um novo autor, algo que valha a pena e que aqui
desconheçamos. O meu amigo não me faltou (como nunca falta um amigo) e levou-me
imediatamente à livraria mais próxima, onde, da estante da letra E, tirou Zone
do francês Mathias Énard. Compra-o à confiança. É o melhor escritor francês
actual e vai ser o maior nome das letras francesas. Comprei-o, pois.
Mas mais valia estar quieto. Logo ao desfolhar o livro
verifiquei que se tratava de mais um exemplar daquela corrente estética (?) que
defende que os livros devem ser escritos sem pontuação, sem distinção entre
maiúsculas e minúsculas e, sobretudo, sem jamais usar um singelo ponto final. Parece
que o autor, segundo li numa entrevista, tentou reproduzir o ritmo de uma
viagem de comboio – a história é narrada a partir dessa perspectiva – e como o
comboio não para, nós também não podemos ter apeadeiros…
Convém esclarecer que tenho uma espécie de posição de princípio
em relação a esse tipo de escrita, que pode resumir-se assim: não leio! Pode
tratar-se do mais genial escritor do mundo, não discuto. Simplesmente não leio
porque este estilo faz-me sempre sentir gozado pelo autor. Estou a perder
Saramago, certa partes de Joyce, algum Lobo Antunes. Talvez, mas felizmente
existem muitos outros autores igualmente geniais que usam pontuação. É verdade
que digo isto e que depois acabo sempre por dar uma chance (salvo seja)a certos
autores. E, por isso, não desisti logo de Mathias Énard e também tentei ler
Zone. Tentei, até ao momento de irritação fatal em que, simplesmente, atingi um
ponto de saturação tal, que corri à livraria e troquei o livro por outro (por
um bom velho e conservador Dostoievsky, se não estou em erro).
Na semana passada, porém, voltei a ouvir falar de Mathias
Énard a propósito do lançamento no nosso
país de Fala-lhes de Batalhas, de Reis e de Elefantes (D. Quixote). A história interessou-me
– fala de um convite que foi dirigido ao grande Miguel Ângelo pelo sultão
Otomano para que construísse uma ponte em Istambul, projecto já anteriormente
tentado, mas não concretizado, por da Vinci. Por curiosidade peguei no livro e
desfolhei-o. Primeira surpresa: não está escrito como Zone, Énard escreve
respeitando as regras elementares de pontuação! Grande vantagem. Fui entrando
no livro e, confesso, pasmei! Quando dei por mim tinha lido 100 páginas de um
fôlego. Trata-se de um livro fabuloso e
Énard é, afinal, tão genial como o meu amigo «francês» me tinha dito. A sua
escrita é de um lirismo arrepiante, a narrativa, a caracterização (Énard passou
três anos a recolher informação sobre o império otomano),a força persuasiva do
argumento, é a melhor edição do ano no nosso país… Achei brilhante a metafísica inerente: tudo é efémero na
passagem de Miguel Ângelo por Istambul – da qual nem sequer temos a certeza
absoluta de que tenha ocorrido, de facto. Até a sua ponte que terá ruído num
terramoto, tal como a sua funesta paixão andrógina e a sua amizade equívoca com
o poeta e calígrafo turco que o acolhe… Restou uma ferida de uma adaga a Miguel
Ângelo da sua efémera passagem por Istambul – uma ferida que rivaliza para ele
com as suas imortais criações. Vou ficar atento à espera do próximo livro de
Énard, autor de quem espero grandes feitos literários.
O caso deste autor é um exemplo flagrante de como um
pré-conceito estético/estilístico/ideológico pode, facilmente, matar um grande
livro e um grande autor. Acredito que, escrito de outra maneira, Zone também
poderia ser um grande livro. Ou melhor, acredito que o leria com o mesmo
entusiasmo – porque a genialidade do autor ainda lá deve estar - e que poderia
retirar dele tanto prazer como retirei de «Fala-lhes de Batalhas». O contraste
entre os dois Énards é chocante e, sinceramente, não vejo o que é que se ganha
em obrigar o leitor a colocar-se na pele do revisor do texto do autor,
obrigando-o a colocar a pontuação que já devia vir feita. Na arte como na vida
o preconceito – mesmo quando é assumido com a melhor das intenções – pode ser
um defeito terrível. E, não, não conto voltar a reler Zone. Mas espero
ansiosamente pelo próximo Énard.