24/05/06

A Epopeia Americana, parte 5ª: «Apocalypse Now», ou The End. Por Mangas

Introdução - O livro de referência ao filme de Francis Ford Coppola é o Coração das Trevas do escritor Joseph Conrad. O argumento foi escrito em parceria por John Milius e o próprio Coppola. Entre o projecto inicial e a obra acabada, ocorreu uma documentada saga de factos e lendas que asseguraram ao realizador a sua conta de inferno privado e transformaram a experiência limite da rodagem do filme num verdadeiro apocalipse dentro de outro. Tal não é para aqui chamado. Até porque à imagem do conceito original, um e outro, já fizeram correr rios de tinta e foram tema de profundas e exaustivas análises. Arrisco-me a dizer que cada sequência ou personagem dariam leit-motif para outros tantos textos iguais a este. A nós, e perante o sagrado, cumpre-nos tão-somente sublimar a paixão e fechar um ciclo – perdoai-nos, desde já, a extensão da prosa. Para tal, alternaremos a interpretação de cariz pessoal entre o livro e o filme com base em Kurtz e Marlow/Willard, porque os entendemos de relevância central no desenrolar da história. A América deve ser vista como cenário de fundo e simultaneamente personagem principal. Poderá ser lido ao som de Run Through the Jungle, dos Creedence Clearwater Revival.

Kilgore: Se eu digo que é seguro surfar nesta praia, é porque é seguro surfar nesta praia! Eu não tenho medo de surfar aqui e vou surfar nesta merda deste lugar todo! Apocalypse Now é um filme de helicópteros. O zumbido metálico das hélices em slow-motion sonora são o palpitar angustiado de um coração que perdeu o rumo, prestes a desferir um ataque mortal que nos tira dali para fora, do inferno para os céus, dos corpos esfacelados para o azul sobre os arrozais vulneráveis e pacíficos. É um filme sobre a América dos símbolos, desde as coelhinhas Play Boy ao surf, passando pelos The Doors à marijuana. A bestialidade colectiva e individual inerente a um campo de batalha, os abismos da alma humana e, a selva, são paradoxos, contemplações estéticas e analíticas em torno de um rio e o barco que o percorre naquela que é a mais perturbadora viagem ao fulcro da esventrada nação Americana no auge da guerra do Vietname.

Marlow: Mas a selva acabou por denunciá-lo e vingar-se terrivelmente dele e da invasão fantástica. (...) Ecoou muito fundo, porque o sr. Kurtz estava oco... O Coração das Trevas é um grande livro. Um dos melhores! De escrita delicada, bela e visceral. Quando estamos perante ele a primeira vez e não sabemos em que direcção nos empurra a corrente das palavras, a suspeita de que algo não bate certo com Kurtz instala-se logo na pág. 22 ao lermos: «Só ele manda mais marfim do que todos os outros juntos...» Há ali método. Compulsão. Obsessão. Génio. Não é apenas mais investimento do que os outros, não. Na África profunda daquele tempo, tamanha produtividade só poderia render dividendos se sustentada por processos, lógica e determinação, logo, a filosofia de Kurtz deveria obedecer a um plano para além da subjugação pela força, pelo poder. A explicação é-nos concedida muito mais tarde pelo próprio Marlow: «A questão estava em ele ser um homem de qualidade, e entre todos os seus dotes predominar um, ligado ao sentido de efectiva presença, que era o talento de falar, eram as suas palavras – o perturbante dote de expressão, o estonteante, o iluminante, mais exaltado e também o mais miserável, a palpitante corrente de luz ou o ilusório fluxo extraído ao coração de uma indevassável treva.» O Kurtz de Joseph Conrad, é um indivíduo ambíguo, complexo, dotado para as artes, líder nato, íntegro mas perigoso o suficiente para se auto-exilar das convenções colonialistas do Império. Por isso tomba e no ponto de ruptura, toca o abismo sem remissão.

Fotojornalista sobre Kurtz: O homem tem uma mente lúcida, mas a sua alma está louca! Noutro paralelo, a primeira imagem que nos é dada a testemunhar sobre o Kurtz de Coppola, é a sua voz. «Vi um caracol a arrastar-se sobre o fio de uma navalha. É esse o meu sonho. É esse o meu pesadelo. A deslizar, a escorregar no fio de uma navalha... e sobreviver...» A gutural nasalação de Brando gravada numa cassete. Pausada. Sonâmbula. Num arrastado timbre de lucidez demencial e convicção trágica. Willard (Martin Sheen), apercebe-se que aquele não é um homem qualquer. Em nós espectadores, cresce a suspeita convicção de que a ténue linha que enjaulava a loucura, foi violada – o fascínio é completo! Se confrontado, por exemplo, com Ringo Kid, o herói onde Ford sustenta o nascimento da nação, e assumindo as convicções diametralmente opostas de ambos, sobra-nos a esperança de um e a desilusão de outro. De comum, ambos são produtos da mesma pátria, a América mãe democrática da ilusão e do desencanto, da construção e da destruição inapelável de homens e sonhos, do nascimento à morte. Equação trágica esta a de uma nação que alimenta filhos e, de forma voraz, se alimenta dos irmãos dos filhos como se fossem bastardos. Será este Kurtz/Buda/Brando a América gorda, sem ideal, sem futuro, sem dignidade e sem moral, ou o único a possuir terrível esclarecimento e pragmática lucidez no meio de toda aquela insanidade?

Chef: Eu sou de New Orleans e fui criado para ser um grande saucier! Internamente, na década de 60, a América geria a questão racial, os confrontos étnicos nas grandes cidades, os sucessivos ataques de corda e archote do KKK aos activistas dos direitos humanos no Mississipi. E quando Lyndon Johnson acalentava o sonho das reformas sociais capazes de construir a Grande Sociedade, o confronto armado no Vietname rebentou-lhe nas mãos – a guitarra de Hendrix não sangrava o Star Spangled Banner apenas fora de casa. Longo caminho tiveram de percorrer Ringo e Dallas na diligência da esperança, os Jods na velha camioneta do desencanto, Dennis Hopper e duas gerações dos Fonda nas Harleys ao vento, o Capt. Kilgore nos helicópteros todos poderosos sobre a guerra do absurdo. A cavalaria que dominou o deserto do Arizona com carabinas de repetição, levou um século a conquistar os céus do Vietname com napalm, naquela que foi a maior derrota da história expansionista americana. Do Monument Valley à terra queimada de Saigão. Das raízes à epopeia fracassada da América no Mundo exterior

Willard: Uma parte de mim tinha medo do que iria encontrar e o que iria fazer quando lá chegasse. Eu conhecia os riscos, ou imaginava que os conhecia. Mas o que eu senti com maior intensidade, e se sobrepunha ao medo, foi o desejo de o confrontar. Mas há sempre uma metáfora. A própria América é uma metáfora poderosa de estrelas azul cintilante e listas cor de sangue. Cinco homens num barco subindo o rio Nung em busca da ovelha tresmalhada do rebanho. Neste tempo de matança, quer os perigos inerentes à viagem, quer as deambulações em torno da (ir)racionalidade da operação e da máquina que a sustém, são sinais claros das trevas em vigília e do seu território, físico/material e emocional/espiritual - a selva e o coração, o corpo e a mente. Kilgore (Robert Duvall), é provocação externa às manifestações pacifistas de Washington, o belicismo devastador do Uncle Sam unido por laços de afecto com a Morte com a qual não faz concessões nem prisioneiros. «Chalie don`t surf!» e Wagner são personal statements de patriotismo absolutista e grandiloquência psicopata. No mercy! e estilo, de mãos dadas na vingança de Custer. “Kill” em “gore” operático. Por oposição, Willard é a consciência do Capitão, ou o que resta dela e da sua contrição de pecado. E é a descoberta de si mesmo ao encontrar Kurtz – o rosto da loucura comum – o que transcende a personagem de Willard. Na realidade, ele foi porque o empurraram, porque lhe deram o treino e a prática da caça ao homem, porque se ficasse a única coisa que tinha como adquirida era um lar que já não lhe pertencia na América que perdera, um punho cortado contra o seu próprio fantasma reflectido e... «Saigon... Shit... Im still in Saigon...». Quanto a Kurtz, à sua maneira, foi um David Livingstone green barret que lia T. S. Eliott, o missionário filmado na penumbra que superou a Bíblia pela M-16, destruiu os inimigos pelo culto da guerrilha e difundiu o evangelho da aniquilação como factor imprescindível de sobrevivência, adiantando-se, pelo processo, à História com a qual aprendera que a força mobilizadora que adora a um Deus é tão mais eficaz quanto sangrenta; Willard que lhe foi no encalço, confere-lhe a revelação ao mundo, como Henry Stanley antes dele na busca pessoal de um objecto, o espelho e a metamorfose, o encontro e a resolução, o carrasco e o assassino, na essência, a mesma América unida pelo mesmo destino – a obrigação de matar!

Kurtz: Se eu tivesse dez divisões daqueles homens, os nossos problemas aqui desapareceriam num instante. A abordagem de Coppola ao romance de Conrad, é em muitos aspectos, tremendamente fidedigna e de transcrição, como o retrato do primitivismo nativo no ataque com setas ao barco. O desenlace final, contudo, é proposto de forma estruturalmente diferente pelo cineasta americano. O Marlow de Conrad subiu o rio com a intenção de trazer Kurtz de volta a casa. Tal propósito revelou-se impossível de concretizar e empurrado pela força dos acontecimentos que o ultrapassaram desde o primeiro encontro entre ambos, regressa à «cidade sepulcral» com uma maço de cartas e a fotografia da Prometida. De tudo o que ficou após esse encontro emocional entre Marlow e a rapariga, prevalece a imortalização de Kurtz após a morte, «Por isso permaneci fiel a Kurtz até ao último instante, ou para além dele (...)»; e perante a insistência dela em lhe repetir as suas últimas palavras, Marlow, por instantes breves, domesticou «O horror! O horror!» - as verdadeiras últimas palavras de Kurtz que ainda lhe ecoavam na mente - e fabricou a memória: «- A última palavra que ele disse foi – o seu nome.» Por sua vez Willard, ao contrário de Marlow, subiu o rio com o propósito específico de eliminar Kurtz. Em Apocalypse Now, Coppola subjuga a imortalização de Kurtz ao ritual do sacrifício. A entrega sem resistência aos golpes de machete, a queda digna do soldado às mãos de outro soldado, «Tu não tens o direito de me julgar... Tens o direito de me matar...», dir-lhe-á Kurtz. West Point tombada por terra às mãos de um ex-operacional da CIA. A casa dividida. Abel e Caim. Ou o inimigo interno quando há algo de poder no meu Reino. Missão cumprida para ambos. Dessa forma, a solução encontrada por Coppola para o final do filme... é nenhuma. Quer dizer, o factual é tragicamente harmonioso e, o após, é de múltiplas leituras. A sucessão no trono não tem retorno quando após o abate de Kurtz, Willard lança por terra o machete e é prontamente imitado pelos nativos – os pacifistas de Washington teriam rejubilado!

Willard: Um dia esta guerra vai acabar. E isso vai ser óptimo para estes rapazes do barco. Não procuram nada mais do que um caminho para casa. O problema é que eu estive lá e sei que esse lugar já não existe. Willard, como a América dos veteranos, não será nunca um integrado social, como tão pouco foi soldado de pelotão. Nunca assistimos ao seu regresso ao lar divorciado, mas talvez o encontremos nas canções de Bruce Springsteen sobre os desempregados das fábricas de aço na Pennsylvania ou os homeless de New Jersey. Jamais o reencontraremos na pele de super-herói Rambo na cruzada dos mísseis de Reagan sobre a Líbia, dando voz ao “America Is Back!”; mas talvez voltemos por ele com O Caçador, de Michael Cimmino. Com o testamento de Kurtz numa mão e Lance o surfista na outra, como se conduzisse uma criança a quem mostra um novo rumo após a expiação do Mal, o ecrã fecha-se com a sua partida pelo rio que o trouxe. Para trás fica o fim e o começo da última viagem. São sons surrealistas de sintetizadores metálicos, frios, arrepiantes e desconexos que completam o final da banda sonora no desaparecimento de Willard por entre a chuva e a bruma do rio. O mergulho final nas trevas, sucede à abertura explosiva de verde, azul, luz e chamas com que começou o filme. Quase nos apetece ir em busca, outra vez, da voz de Jim Morrison para atenuar o desconforto na cadeira.

This is the end, beautiful friend. This is the end, my only friend, the end. Of our elaborate plans, the end. Of everything that stands, the end. No safety or surprise, the end. I'll never look into your eyes...again.

18/05/06

Jornalismo, isto? por Valhamedeus

O nacional-parolismo não cessa de surpreender. Agora, atingiu novos cumes esquizofrénicos: o Barça, ontem, sagrou-se pela 2ª vez na história campeão europeu. Um grande jogo, com grandes exibições e muita emoção. os jornais portugueses: A BOLA: 1ª página a toda a largura com a eventual vinda de Eriksson para o SLB. RECORD: 1ª página com o balneário (sic!) a dizer que quer o Rui Costa no SLB aos 34 anos!! O JOGO especula com o novo treinador do SLB. Num cantinho, metem uma chamada discreta: Deco (sic. Meu Deus, não é o Barça, não é Ronaldinho, é o discretíssimo Deco) campeão pela 2ª vez! Não há vergonha nos jornais? Não há limites? Qualquer burro pode fazer 1ªs páginas?

14/05/06

A Epopeia Americana - Parte 3ª: «As Vinhas da Ira», de John Ford. Por Henry Bond

Depois d’ A Cavalgada Heróica (1939) e após a realização de uns filmes menores, John Ford adaptará em 1940 o romance de John Steinbeck, As Vinhas da Ira, convidando Henry Fonda para o protagonizar. Fonda, sendo juntamente com Wayne um dos preferidos de Ford, não deixa de ser o contraponto do herói épico americano, estatuto que Wayne assumiria a partir d' A Cavalgada Heróica. Mas, também do ponto de vista ideológico, o conservadorismo de Wayne se pode contrapor às preocupações sociais e ao intervencionismo político de Henry Fonda. Por estas razões, quando Ford adapta a obra de Steinbeck, Wayne está naturalmente fora de questão. Henry Fonda é a escolha acertadíssima, depois de no ano anterior ter desempenhado o papel de Abraham Lincoln (bíblico e épico nome este para um fundador da América) num filme realizado também por John Ford.

A família Joad busca os laranjais da Califórnia no épico de John Steinbeck, de claras ressonâncias bíblicas. Os Joads são um clã, à maneira das tribos de Israel, vivem na terra, possuem uma identidade construída sobre a ideia de territorialidade. Estamos nos anos da Grande Depressão, os bulldozers, ao serviço das grandes companhias financeiras, executam as hipotecas e tomam conta da terra. Desfaz-se a relação telúrica, vital, entre o homem e a terra, o que causa a tragédia maior: o abandono da casa e o desagregamento da família. A razão do abandono é forçada. Não se trata de um imperativo ético, ou de um esforço de conquista. Não é um resgate por razão de honra, nem uma cavalgada heróica. Fonda não é Ulisses nem Ringo Kid. N' As Vinhas da Ira o abandono da terra resulta de uma situação de necessidade extrema. O clã Joad é expulso do Oaklahoma, como tantos outros – oakies –, olhados com desprezo e desconfiança por onde quer que passem, como miseráveis sem terra e sem futuro, despojados do seu passado, com a identidade perdida. O pai Joad não assume o papel abraâmico de patriarca que lhe competiria. Essa função é desempenhada pela mãe. A mãe é uma fantástica personagem que lembra Brecht ou Gorki, o que fará Steinbeck um dos alvos do McCartismo. Steinbeck logra nesta personagem uma admirável síntese entre o paganismo primitivo matriarcal e pré-bíblico, a evocação de um poderoso símbolo de referências comunistas e o marianismo cristão. Para lá da ideologia e da fé, para além até da blasfémia e da política, a Mãe Joad cuida da família, alimenta-a e mantém-na unida, protege-a e compreende-a. Ainda que Rose of Sharon, a filha, esteja grávida e a redenção pelo nascimento anunciador de um tempo novo na Califórnia da abundância se adivinhe desde o início na protecção que a Mãe Joad constantemente lhe reserva, a verdade é que o final desilude completamente essa promessa messiânica. Não é um Nascimento que salvará os Joads, pois do ventre de Rose brotará um nado-morto. Um cadáver na Califórnia da desilusão, a família desagregada pela morte, pela deserção e pelo desespero. Sem casa e sem carro. Os Joads, desesperados e destroçados são uma metáfora cruel de uma civilização ameaçada. A América, depois de conquistado o Oeste, depois de se afirmar com Estado, confronta-se agora com a maior crise da sua História. Se Ford deu à América o seu herói épico, John Wayne, dar-lhe-á agora, o seu reverso necessário, Henry Fonda no papel de Tom Joad. De facto, é a este que caberá a missão redentora. Ford já mostrara, na Cavalgada Heróica, que a redenção não é messiânica. A criança que nasce durante a viagem através de Monument Valley é uma menina, um anti-messias portanto. Símbolo prospectivo é certo, mas sem qualquer valor salvífico. Agora, n’ As Vinhas da Ira, Tom, apesar de homicida, conserva a integridade moral, como é próprio das personagens de Ford. Como a prostituta, o Ringo Kid, o jogador ou o médico bêbedo. Tom, contrariamente a Ringo Kid que logo se assumiu como centro da narrativa, permanece num registo secundário mas que se adivinha de importância fundamental e eminente numa tensão narrativa que se desenvolverá até ao célebre monólogo que antecede a sua despedida. Tom é o portador da via da redenção. Pela revolta, pela ânsia de justiça, pela sublevação.

No filme de Ford, Tom vinga a morte à paulada de Jim Casey, um antigo pastor desencantado que retoma a esperança quando se envolve na defesa dos trabalhadores braçais. Casey é um profeta da justiça social, o seu novo múnus é político, depois de desiludido com a função pastoral. A sua morte é vingada biblicamente por Tom Joad que mata à paulada o assassino de Casey. Olho por olho. Mas o crime de Tom não lhe fere a dignidade, pois não se move por vingança. É justo, mata em nome de um ideal e o crime adquire legitimidade moral. Tom tem que fugir. Separa-se da mãe Joad num parto doloroso e de um simbolismo poderosíssimo. A Mãe oferece o filho à missão redentora. Este momento, em que Tom finalmente assume o protagonismo adivinhado desde o início e se descobre na sua missão redentora é, no filme de Ford, o momento chave em que Fonda profere as palavras épicas: “I'll be ever'where - wherever you look. Wherever there's a fight so hungry people can eat, I'll be there. Wherever there's a cop beatin' up a guy, I'll be there. I'll be in the way guys yell when they're mad - an' I'll be in the way kids laugh when they're hungry an' they know supper's ready. An' when our people eat the stuff they raise, an' live in the houses they build, why, I'll be there too.”

Volvendo ao livro de Steinbeck, o que resta da família, já sem a velha camioneta, essa espécie de nau dos argonautas da Route 66, deambula pela estrada até que a intempérie os obriga a procurar abrigo num velho palheiro. Aí, desenrola-se a polémica cena final, em que Rose of Sharon, lactante após a perda do bebé, amamenta um velho moribundo, salvando-o assim da morte por inanição. É uma cena patética, facilmente comparável a uma Pietá profanada. O leite, metáfora da abundância bíblica, brota dos seios de uma personagem até então inútil mas que agora se assume como símbolo de fertilidade, depois de frustrada a redenção messiânica.

John Ford, por seu lado, não se limitando a uma adaptação da novela e muito mais consciente do valor épico da gesta dos Joads, deixa partir Henry Fonda na sua cruzada justiceira, e recentra a narrativa na Mãe. Vão os Joads, os que restam, refeitos sob o comando esperançoso da Mãe. Al Joad conduz a carrinha, ambos recuperados por John Ford, pois que no livro, Al vai-se embora e a carrinha imobiliza-se definitivamente avariada na berma da estrada. Ford não quer os Joads a pé pelas estradas da Califórnia. A Mãe profere então a tirada final. Por maiores que sejam as adversidades, “We'll go on forever, Pa. We're the people.” E os Joads operam então o tal salto qualitativo, eles já não são um clã familiar, são um símbolo colectivo, as famílias americanas que, sobrevivendo a todas as provações, vêem agora a estrada esperançosa à sua frente. Ford fecha depois o filme, com a velha camioneta a ir pela estrada fora. É um final à Ford, esperançoso, de sentido oposto ao patetismo bíblico, frustrante e blasfémico de Steinbeck. A América de John Ford é indestrutível, alimentada de um idealismo personificado em Henry Fonda.

12/05/06

De Fátima a Coimbra: uma breve trajectória pela parolice nacional. Por Pequeno Burguês (PBatatum)

Andam as estradas portugueses cheias de peregrinos. Vão para Fátima. Com um prudente e fosforescente colete verde, caminham imprudentemente pelas estradas de Portugal. Pessoalmente, e sem que daí se retire qualquer ofensa, acho lamentável. Primeiro porque é perigoso. A peregrinação atenta contra a integridade física dos próprios e dos utentes da estrada. Segundo, porque é improdutivo. Nenhum bem vem daqui à sociedade. Terceiro, porque entendo a religião na sua dimensão íntima e espiritual. Acho que a fé, ainda que possa e deva ter expressão institucional e social, é essencialmente uma vivência interior que dispensa o suplício exibicionista e a auto-punição corporal. Finalmente, porque acho estas manifestações típicas de uma mentalidade pré-moderna em que a vontade humana se submete ao desígnio da Providência e se torna, desse modo, comprometedor da livre iniciativa e do livre arbítrio, do mérito e da criatividade. Foi contra estes condicionalismos que se fez a modernidade. O mérito individual e a soberania da vontade em vez da subordinação a um desígnio transcendente, o empreendedorismo contra o estaticismo orgânico de uma sociedade sacralizada, o trabalho como via de ascensão social. De preferência o trabalho intelectual, pois que o ofício mecânico era visto como vil. A lavoura era sinal de uma sujeição ao dono da terra. O ofício artesanal era sujo. As artes liberais permitiam as mãos limpas e facultavam a ascensão social, para além de promoverem a mobilidade ascendente pelo exercício do mérito e do trabalho. O mérito individual, bem como a dignidade de um trabalho que já é intelectual e não manual são dois valores que caracterizam sociologicamente a mentalidade burguesa. O desprezo para com a ordem nobiliárquica é outro traço desta mentalidade. Além disso, verberam o clero e a religião que consideram manifestações de obscurantismo, instrumentos de domínio social e obstáculos ao progresso. Encaram a exibição da fé como sinal de atraso e dependência. Este vanguardismo burguês, radical, ateu e jacobino, não tardará a moderar os seu discurso. A razão é política e cultural. Prende-se com aquilo a que os revolucionários chamaram a "traição burguesa". Ou seja, as classes médias, na sua esmagadora maioria provenientes dos estratos médios do campesinato e do operariado suburbano, viram na escola e no estudo universitário um irrecusável processo de ascensão e afirmação social. Almejavam um emprego na administração pública ou nas profissões liberais. Buscavam um ofício que lhes conferisse prestígio social e dignidade intelectual que os diferenciasse do grosso popular. Por isso, ao ódio inicial que endossavam à nobreza e ao corpo clerical, dirigem agora o desprezo e a sobranceria para as classes populares. Ao mesmo tempo, nas esferas mais elevadas, buscam título de nobreza e elegem as virtudes cristãs como modelo de conduta social. Uma nobreza reformada e um idealismo cristão anti-ultramontano. É neste contexto que a Universidade de Coimbra se torna um dos principais meios de ascensão social desta pequena burguesia que procura desesperadamente a realização pessoal pela ascensão social. Basta ler os livros de Camilo e de Eça para se perceber como aos intelectuais este tipo social causava repugnância e era alvo das maiores ironias. O bacharel de Direito é, para Eça mas também para Torga, o exemplo mais ridicularizado de uma mentalidade mesquinha e ensimesmada.
A partir dos anos 60, apesar do Estado Novo, a Universidade iniciou um processo de massificação que encontraria o seu auge nos anos dourados do cavaquismo. Floresceram universidades em todas as esquinas. Este facto, aliado ao crescimento económico, permitiu que as famílias possuíssem os meios financeiros para enviar os filhos para a Universidade. Em Coimbra, retomaram-se as tradições académicas, nas restantes universidades, órfãs de tradição, copiou-se o modelo conimbricense. Os trajes, as praxes e as festividades académicas que antes eram prática de grupos minoritários massificam-se agora a todas as cidades e a todas as instituições. Públicas ou privadas, universitárias ou politécnicas. Podemos dizer que se consumou um processo iniciado a partir da 2ª metade do século XIX, acelerado na República e irremediavelmente confirmado a partir da década de 60.
Estes jovens estudantes, naturalmente, não escondem o orgulho. Eles resgataram séculos de submissão. Eles são a razão de ser do sacrifício das famílias. Os pais não regateiam recompensas. É o carro, os livros, a mesada, a capa e batina, o computador portátil e o que mais calhe. Que a contenção não comprometa o futuro dos filhos. E os pais vão ao Cortejo da Queima, quando a estadia coimbrã se aproxima do final, largar uma lágrima de comoção. Os jovens quartanistas vêm para o espaço público alardear o novo estatuto. Distanciam-se da proveniência social de origem, demarcam-se relativamente ao gosto popular, exibem erudição, mostram os livros e as sebentas, encaixilham o diploma, encadernam as fotografias, mitificam a juventude num culto geracional que os auto-engrandece e auto-glorifica. Constroem uma memória triunfante. Vão ao baile de gala, cópia abastardada dos ambientes dos salões aristocratas. Deixam-se fotografar abraçados a moças trigueiras enfiadas em tules espalhafatosos e que não conseguem ocultar o seu digno estatuto de origem. Basta ver o «Diário de Coimbra» de hoje com o seu suplemento social dedicado ao evento. Fazem álbuns fotográficos que um dia mostrarão aos filhos, bem como os versos e as anedotas. Rir-se-ão, um dia, todos à lareira. O avô, o filho e o neto, uma dinastia de bacharéis por Coimbra! Que lindo é sonhar! O Cortejo é a ocasião para todos os excessos. É uma celebração colectiva, orgíaca, que, pelo excesso etílico e já não pelo excesso místico, como em Fátima, conduz a um êxtase, um adormecer da conscência que torna a experiência única e marcante.
O sonho é que os filhos ingressem na mesma Academia, que triunfem igualmente, numa estratégia de sucessão geracional equiparável à dos burgueses que deixam a presidência do conselho de administração ao filho dilecto. Assim se vence a morte e se conquista um espaço na memória futura. Pelo caminho, dão a mão às meninas da casa Elísio de Moura, numa muito digna e cristã prática pública da caridade, mostrando deste modo que o jacobinismo burguês está ultrapassado e que a síntese com os velhos alicerces da sociedade está retomado. Mesmo que abdiquem das práticas dominicais, das confissões e das devoções mais maçadoras, continuarão a casar pela igreja com cerimónias de arromba devidamente documentadas para a posteridade e a baptizar os pequerruchos.
O Cortejo da Queima das Fitas, visto muitos anos depois, alimenta as saudades. «Saudades de Coimbra»... Ó Meu Deus, as saudades de Coimbra, o Choupal e o Penedo da Saudade... Tornam-se estes lugares-comuns, de um sentimentalismo pacóvio, num traço de identidade desta mentalidade pequeno-burguesa. Perdoam-se os excessos da juventude de uma forma paternalista e condescendente. «São jovens, como nós fomos». Eu acho isto, mais uma vez, lamentável. Que me perdoem os adeptos da farra. Eu não gosto! Gosto da genuinidade do S. João do Porto, ou das sardinhas assadas na rua do Stª António de Lisboa. Gosto da Tomatina despretenciosa e excessiva, embora lá nunca tenha ido. Isso eu gosto.

06/05/06

O SINAL, por Baltazar

O secretário de estado da Educação, Valter Lemos, negou ter assinado o que só ele podia ter assinado. Eu não lhe chamo mentiroso. Recordo os factos. Há poucos dias, os jornais deram conta de um despacho da Direcção Regional de Educação de Lisboa que mandava regressar às escolas de origem os professores que se encontravam destacados noutras escolas desde o início do ano lectivo por motivo de doença devidamente comprovada por certificado médico e com autorização superior. Agora, a escassos dois meses do final do ano lectivo, a DREL considera essa mobilidade ilegal e fundamenta a decisão num despacho assinado pelo senhor secretário de Estado. Ele nega. Se não é mentiroso, então que demita imediatamente, por incompetência, toda a cadeia hierárquica que decretou esta ordem tão disparatada. Recordemos que Valter Lemos, aquando da greve dos professores, fez sair uma nota oficial (terá sido ele?) em que acusava, por grosso e genericamente, os professores de faltarem 9 milhões de vezes por ano! Eu não discuto o número, ainda que seja muito discutível. Acho até que a abstinência dos docentes é um problema e que os prevaricadores devem ser punidos. Não sinto dores corporativas. Mas acho também que cada um, individualmente, deve ser responsabilizado pelos seus actos. Por isso, acho que a atitude do senhor Valter Lemos foi cobarde. Além de demagógica e inoportuna. Porque incluiu todos na mesma suspeita, sem distinções nem respeito pelas situações merecedoras de respeito e porque esquece um facto decisivo: as faltas estão justificadas nos termos da lei! Se não estão, a sede é discilpinar. Se a lei está mal feita, faça-se lei bem feita! Face a isto, a revolta levou alguns sindicatos a lembrar que, no passado político de Valter Lemos, quando fora vereador da Câmara Municipal de Penamacor, perdera o mandato por faltas injustificadas! O senhor Lemos argumentou que não, que pedira a suspensão do mandato, que o não perdera. Preciosismo formal que o salva. Os jornais locais davam conta do contrário, o Presidente da Câmara local veio defender o secretário de Estado cuja assessora é filha do presidente! A história é rocambolesca e indigna. Sigam o link se quiserem. Eu não me ocupo de misérias.
Este mesmo Ministério da Educação anuncia agora uma medida que acha revolucionária e, nas palavras da senhora ministra, a decisão enquadra-se num conceito de acção política que não faz mais do que generalizar as boas práticas observadas nas escolas. Ou seja, o Ministério faz-se um Grande Observador e dá forma de lei às práticas que entende boas. Incrível! Por este peculiaríssimo método, o governo decretou que os professores quando prevejam a ausência devem deixar um plano de aula. Não vou discutir o alcance da medida, nem sequer a sua pertinência ou a sua exequibilidade. Vou apenas lembrar como este minstério navega à vista, improvisando e sem estratégia. Lembro que os despachos sobre as aulas de substituição foram publicados em Agosto e previam que todas as horas de redução, mais a diferença entre as 22 horas lectivas semanais e as 26 horas de serviço, fossem ocupadas em aulas de substituição. Ou seja, um professor com 30 anos de serviço, tendo 14 horas de actividade docente, teria mais 12 horas de aulas de substituição! Os protestos imediatos lembraram ao Ministério que tais despachos transformariam professores em substituidores. Uma espécie de pastores alemães encartados! Os sindicatos lembraram ainda que, nos termos do Estatuto da Carreira Docente, as aulas de substituição, de acordo com a determinação do Parlamento e do Governo eram entendidas como actividade lectiva suplementar, cabendo por isso remuneração extraordinária. Em face disto, o governo recuou e sugeriu que não fossem aulas, mas actividades de substituição, fazendo mais uma vez método do preciosismo formal. Quais? Perguntaram todos. Por exemplo, ler poesia, respondeu a ministra. O ridículo instalou-se e a ministra sacudiu a decisão para os órgãos directivos das escolas. Pouco depois, determinações posteriores dispensaram os professores com 22 horas lectivas atribuídas de prestarem serviço de substituição e, das horas de redução, só metade seria aplicada nestas actividades. Vejam como as ordens foram evoluindo à medida que se iam revelando absurdas. Agora, vem com esta medida que contradiz o despacho inicial e os remendos posteriores. Não são actividades de substituição, não é poesia, voltam a ser aulas. Planificadas pelos ausentes quando prevejam a ausência. Aposto que não vai ficar por aqui. E profetizo. No ensino básico, os alunos apercebem-se já da completa inutilidade de um sistema de substituiçlão que lhes veda o usufruto da escola como espaço de convívio e sociabilização e que supõe uma concepção punitiva e penitenciária da escola. Quando no próximo ano lectivo este sistema for generalizado ao secundário, antevejo vagas de insurreição e indisciplina. E não me venham dizer que são os professores que não querem trabalhar. Eu até peço que me marquem 35 horas semanais no horário. Com duas condições: não me peçam mais nada além dessas 35 e, por favor, deixem os miúdos em paz.
Para concluir, lembro que esta ministra é a mesma que já anunciara o fim dos exames do 12º a Língua Portuguesa aos alunos do ramo de ciências. O escândalo rebentou e o ministério recuou. Este ministério é o mesmo que mandou que as Direcções Regionais elaborassem listas com os nomes dos professores que aderiram à greve. Esta ministra foi aquela que, no início do mandato, proferiu uma das maiores enormidades que já escutei quando, a propósito dessa greve comentou um despacho judicial emitido num tribunal açoriano e que declarava inconstitucional essa elaboração de listas, afirmando sem pudor que os despachos dos tribunais açorianos não eram válidos em Portugal! (sic) Ninguém se indignou. Acharam que era um deslize, uma gaffe, um lapso. Não era. Era um sinal!

Foto: http://www.eb1-cambas.rcts.pt/anossaescola.htm