30/09/08

Clássicos do Tapor - Tratado Taurino II, Capítulo Restaurantes, por Luís Miguel da Veiga

Depois do Volume Primeiro dedicado às Repartições Públicas (vide post abaixo) eis o Volume Segundo do Tratado Taurino, sobre a lide na Arena Restaurativa.

O mastigante típico Português está habituado a “comer e calar”. Tem medo de devolver a sopa, tem pânico de fazer ondas, tem terror de que olhem para ele no tasco e sobretudo fica com pavor de que a sopa reclamada venha com uma escarreta de brinde.

Ora isto está mal e tem que mudar. Há que reclamar. Há que tourear. Se a coisa não está aceitável vai para trás e sem hipótese de remissão. No limite é preferível devolver, não comer e pagar, do que engolir a zurrapa nefanda com que por vezes nos brindam nos tascos.

No Porco é ponto de honra a lide restaurativa. Tal lide, é uma arte refinada e apurada em muitos anos de arena, e rege-se por alguns princípios universais e sagrados, uma vez que os toiros marram sempre da mesma maneira seja qual for o nível do tasco.
Antes de mais há uma regra base que o Porco segue sempre que é o “AVISO À NAVEGAÇÃO”. – São canónicas as amêijoas?, As queijadas foram feitas com que percentagem de leite de ovelha? – O Arroz é Carolino ou Agulha? – E se é Carolino é do Vale do Mondego ou do Sorraia?, etc e tal. Deve haver sempre um aviso prévio. Este aviso alerta o garção, quase sempre recém vindo da guarda de vacas pró serviço de mesas, que o mastigante em presença é um animal de respeito. Por outro lado o “Aviso Prévio à Navegação” faz com que o comensal ganhe legitimidade moral para depois reclamar. Permite ganhar ascendente e terreno na faena.

Nos tascos bairradinos de leitão por exemplo, pergunta-se sempre e previamente, à mocinha: “olhe lá têm leitão assado de agora e podem-nos trazer só desse, ou não?”. Em regra nem ouvem a pergunta e automaticamente respondem que Sim. A seguir trazem uma dose com um bocadinho de leitão quentinho a estalar de frescura e dois bocadelhos de mau aspecto com a pele engelhada do reaquecimento, por ser leitão do almoço ou do dia anterior. Azar. Há sangue na arena a seguir.

Aqui chegados, com ou sem “Aviso à Navegação”, impõe-se o respeito do segundo princípio básica da reclamação, a que chamamos: “O PADRINHO”, e que se pode traduzir por “Quando um burro reclama os outros Baixam as orelhas”. Seja em grupo avantajado, seja em casal ou em família, só um e apenas um, previamente combinado, é que reclama. Il Capo di Tutti Capo. O Padrinho. De preferência, é o mesmo que fez os pedidos e que, se for profissional, já se sentou pensadamente de frente pró curro de onde sai o toiro, isto é, de frente para os serviçais e a sua saída da cozinha. Qualquer reclamação passa obrigatoriamente por essa única pessoa e por mais ninguém. Só ele fala, só ele gere a situação, porque a lide só pode ser feita por um toureiro. Dois toureiros distraem o toiro e levam marrada mais cedo ou mais tarde.

A regra Terceira é a “CORNADURA BAIXA”, isto é, havendo que reclamar e definido que esteja o toureiro, todos os restantes toureiros saem da arena. O toureio é um acto solitário, que exige concentração. E, mais importante que a concentração do toureiro, é a concentração do toiro. O toiro não pode ser distraído. Assim, todos os restantes comensais baixam a cabeça – bolinha baixa – fecham a boca e baixam os olhos. Jamais podem sequer trocar um simples olhar com o toiro enquanto ele está a ser lidado. Qualquer olhar da parte de qualquer outro comensal que não o reclamador toureiro, leva a que o toiro procure automaticamente por simpatia, compreensão ou benevolência nesse olhar que lhe foi concedido, nessa porta que se lhe abriu. E é por ali que ele foge. Jamais. Boca calada e bola baixa. A comiseração a ser concedida, sê-lo-á pelo lidador e nunca pela público do sol ou sombra. Desta forma toda restante mesa se cala e baixa a cabeça e os olhos. E jamais levanta a cornadura até terminar a lide.

A quarta regra relativa à calma e temperança, é por nós apelidada de “O POVO É SERENO”. A calma e a Serenidade, são o sal e o pão da terra que nos pode faltar na arena. O toureiro reclamante jamais pode perder a calma, exaltar-se ou enervar-se. Perde logo a razão e a lide. O toureiro tem que estar mais gelado que uma pescada do pólo norte, mais sereno e contido que um cágado alentejano. Serenidade, calma e cortesia são armas do toureio. Permitem a lide, não invertem a razão e deixam sempre margem para uma qualquer retirada estratégica. Só se reclama do que se sabe, se não se sabe pergunta-se mas sempre com calma e educação. Sem isso, o toiro marra a esmo, não se mete onde a gente o quer e não se deixa lidar. No limite há mortos e feridos e uma berraria desgraçada que pode só terminar na esquadra da zona.

A regra quinta e última é a de mais difícil aplicação. Constitui a estocada final. É ela que define o bom toureiro e é ela que faz desembestar o toiro. É a regra sublime e carinhosamente chama-se: “O SILÊNCIO É DE OIRO”. Pode parecer esquisito, mas numa lide destas, um bom toureiro distingue-se pela gestão do silêncio. Do seu silêncio. O lidador está de frente pró toiro, capta-lhe e concentra-lhe a atenção. Espeta com calma a primeira farpa. Silêncio. Sereno, espera-se a investida. Se o toiro fica quedo, leva com a segunda farpa. Contida, fria, gélida mesmo, mas que se enterra pela carne adentro. Silêncio. A besta investe, em regra sem norte e sem razão. Leva a estocada final e das duas uma ou cai de joelhos na arena ou destrambelha por completo. Toiro nenhum aguenta o silêncio. Não lhe entra no cérebro. A gente agarra-lhe a atenção, foca-o na Verónica, isto é na reclamação, não lhe permitimos a menor distracção e gerimos o silêncio. Lindo. “ – Tá a ver, este leitão geme água, vê…? (silêncio – uns segundos, só os necessários para o silêncio se evidenciar e incomodar, depois interrompe-se) – É que isto não aceitável para um restaurante deste nível, não acha…? (silêncio até incomodar de novo). Se a seguir lhe pedirem a patroa grelhada o gajo traz. Tá de joelhos aniquilado, encadeado, não tem por onde marrar, não tem por onde fugir.

Se o toiro, digo, o garção cai de joelhos, o toureiro é magnânimo, até porque isto é arte e não pura crueldade. Se marra desenfreado ou pior destrambelha por completo, dá-se uma estocada final no animal e apela-se pró director da corrida, mandando-se retirar o toiro da arena, coisa que um Director de Corrida jamais recusará. A estocada é sempre a mesma: “Vá-me chamar quem mande em si!, que o Sr. está um pouco enervado!”

Vindo o Director da Corrida, digo, o gerente, volta-se ao início da faena e começa a lide de novo, respeitando os mesmos princípios. Com o toiro de gerência, a lide só pode terminar de duas formas, ou com o animal ajoelhado a nossos pés pela arte e força da lide, ou pelo ferro da estocada final. Solene e à Matador: “Faça-me o favor de me ir buscar o livrinho de reclamações!”
Até espumam quando levam com este ferro. Já o fiz dezenas de vezes e nunca, mas nunca, me deixam lá escrever alguma coisa. Ajoelham e deixam-se lidar. A sangrar, mas ajoelham.

26/09/08

Clássicos do Porco: Tratado Taurino, por Mestre Baptista



Hoje precisei de ir à 14ª Repartição de Finanças de Braga, ver um artigo da matriz fiscal em nome de um cliente.
Estacionei, e fui de fisco.

Às 14 horas e 3 minutos, dei entrada nas Finanças e dirigi-me para o balcão da Matriz.
Bicha. Enorme.
À minha frente, era só samarras e flanelas, pelo que os 15 contribuintes, digo, 15 brutos, que se me adiantavam faziam desde logo adivinhar, que me queriam fazer perder a manhã toda.
Linde, pensei logo. Vai haver Tourada.

Pra quem não saiba, o Toiro é sempre o bicho que exerce o seu poder de imperium, atrás do balcão. Toiro de Balcão, portantos.
Por seu lado e ao contrário de outras espécies, que só se divertem nos bares e discotecas, o Advogado é uma espécie que também se diverte nestes sítios onde há Toiros. Uma Repartição de Finanças com bichas, dá mais pica a uma Advogado, do que o supremo gozo de conseguir condenar um inocente ou absolver um culpado. As Conservatórias também são boas, mas esses cabrões levam tanto e todos os dias, que na sua maioria, já estão vacinados e permanecem indiferentes e a ruminar, perante o toureiro. E aí, o aficionado não gosta, e apupa. Mas nas Finanças não, os gajos são em geral Toiros de Balcão Virgens, porque normalmente as pessoas batem a bola baixa nas Finanças, não reclamam, nem marram. Afinal, sempre se trata dp fisco, dos gajos que meteram o Al Capone dentro e se um gajo levanta muita garimpa com o Imposto de Dez, os cabrões armam-se em garimpeiros e descobrem que devemos mais Dois Impostos de Vinte.
Adiante.

Perante a arena e os Toiros, a pessoa ou amocha e aguenta ou lida a toirama. Se opta por lidar os Toiros, tem três tipos de lide à sua escolha.

O primeiro tipo de lide, é a Lide de Aficionado.
Na Lide de Aficionado, este não entra na arena e nem entra na lide própriamente dita, provoca-a, mas não se expõe. À partida, esta posição de Aficionado, é a que dá mais gozo e mais pica. Demora é muito tempo e aí reside a sua desvantagem.

Na Lide de Aficionado, o toureio faz-se da seguinte maneira. A pessoa coloca-se na bicha, aguenta 5 minutos pra ganhar legitimidade e começa a resmungar. Aos 10 minutos, começa a mexer-se, incomodado. O resmungar e o mexer-se, levam a atrair a atenção da bicha pró Aficionado.
Quando capta a atenção da Bicha, o Aficionado passa então para o passo seguinte, que se traduz em desencadear a ira da Bicha contra o Toiro, picando-a. O bichedo contribuinte é manso, mas se for picado, marra, e se for bem picado por uma aficción bem feita, até investe!
Para o picanço, podem-se usar palavras muito diferentes, de caso para caso, mas no Toiro das Finanças, estas são as mais usuais: "Isto é inadmissível, está-se aqui há meia hora e atendem uma pessoa ou duas!", "A gente vem pagar impostos e é isto que apanha", "Pelo andar da carruagem nem de tarde daqui saímos". Isto é dito baixinho e só pró bichedo.
Se repararam, acentuou-se o destino colectivo, mau, e provocou-se a indignação do bichedo, que nesta altura começa também a resmungar e a mexer-se. Se a coisa for bem feita, o Toiro do lado de lá do balcão, nem sequer se apercebe de quem desencadeou a lide.

Acendido o rastilho, o Aficionado deve dar mais um empurrão antes da retirada estratégica e confortável. Assim quando o Bichedo está aceso, deve-se atiçar a fogueira com a segunda fase: "Só um funcionário para atender tanta gente, e os outros todos que estão ali atrás sentados?", "E o chefe não vê isto?", "Só vêm e resolvem quando a bicha chegar à porta ou alguém partir tudo!"

Se bem repararam, nunca houve palavras ofensivas e indicou-se à turba o caminho a seguir na estampida, rematando-se com o incentivo final.

Nesta fase, já dois ou três samarras e quatro ou cinco flanelas, tomaram as rédeas do bichedo e já desataram no tradicional: "malandros", "se eu mandasse é que era", "é tudo uma comunistagem", "não fazem nenhum", "antigamente não faziam isto, ora se faziam", etc, etc.

Perante isto, o Toiro de Balcão investe e marra no bichedo. É a sua primeira e primária reacção e é sempre a sua perdição, porque a um bichedo perdido ninguém acha, e estes, porque nem achados, nem rogados, partem para a fase final de puro delirio niilista e desembestamento, com os consequentes: "era só à metralhadora", "chupam o sangue todo ao povo", "gatunos", "ladrões", "cabrões", "filhos da puta", etc, etc.

Nesta fase, o Toiro de Balcão vê que não aguenta a turba e chama o Toiro Chefe de Repartição.

A toirada está montada e resta ao Aficionado apreciar e gozar a obra feita.


Como já se disse, a Lide de Aficionado, é a que dá mais gozo, mas é muito demorada.
Foi usada por exemplo e com sucesso diga-se, nas bichas da Galp da prós bilhetes dos Stones, pelo Xiita, esse grande cultor da Aficionado, que só peca por não a aplicar nos tascos, onde come tudo o que lhe metem na manjedoura.
Nos meils confradais, tal forma de lide é usada amiúde também, com grande destaque e proveito, para o Manolete


Não tendo tempo para perder, a pessoa não se pode dar ao luxo de fazer uma lide de Aficionado, que por natureza é demorada. Se não se tem tempo, então tem que se descer à Arena, assumindo então a segunda alternativa. Isto é, passa a Toureiro, fazendo a chamada lide directa.

No caso em concreto, de hoje, apesar da abundância de samarras e flanelas, bichedo sempre pronto a ser lidado de aficción, estava com pressa e optei pela lide de Toureiro.

Quando a pessoa assume a alternativa Toureiro, e vai pela lide directa, tem ainda duas hipóteses, como resulta do senso comum, ou faz uma Pega de Caras, ou faz uma Pega de Sernelha.

Na Pega de Caras, o Toureiro aguenta um máximo de Dez minutos de Bicha (pra ganhar legitimidade) e logo após, sai do seu lugar na Bicha e avança pró Toiro de Balcão, enquanto olha de lado e em geral o Bichedo, para que este saiba que vai haver merda e que não se trata de um paspalho a tentar furar a bicha. Atenção que, se não tiver este cuidado, de olhar e controlar o bichedo, fazendo-o ver que vai haver marranço, de molde a provocar a simpatia deste, o Bichedo é bicho para marrar por detrás, o que é de longe, a coisa pior que pode acontecer, porque o Toiro de Balcão aproveita e marra também. Mas fazendo-se esse olhar e controle, o Bichedo adivinha a merda e adivinhando que vai haver merda, o Bichedo deixa sempre passar à frente.
E vai-se directo ao Toiro. Fazemo-nos brutos e em bruto, à marrada. Com força e cagança. O Toureiro levanta a voz, indigna-se, berra e espaventalha. É dono da razão, ou não fosse a força da sua convicção. Ao mesmo tempo que afronta o Toiro, o Toureiro diz o que quer. Ao mesmo tempo que marra, o Toureiro deve sempre lançar olhares de cumplicidade pró Bichedo, de molde a fazê-los ver que está ali a marrar por eles também.
Como em regra, o Toiro de Balcão é um cornupto manso, a lide frontal rouba-lhe o ímpeto e o impérium e isso leva-o a deixar-se pegar e a resolver rápidamente o problema do Toureiro, de imediato e à frente do Bichedo, que depois lá fica a marrar com o Toiro de Balcão.

Esta lide frontal permite resolver o problema com rapidez, embora dê pouco gozo e no caso de se encontrar um Toiro mais duro, ou maduro, tal lide, poderá mesmo conduzir a maus resultados.

Este tipo de lide, costuma ser usada por exemplo, e também com sucesso diga-se, nas perseguições fiscais do Pilas, que ataca de frente e de peito feito todo o Toiro fiscal que lhe aparece à frente.
Nos meils confradais, tal forma de lide frontal e brutal, é sobretudo usada pelo Animal.


Voltando ao caso concreto, e como já conhecia o Toiro em questão e sabia que o Bicho era tudo menos manso, optei pela PEGA DE SERNELHA, que passo a explicar e a relatar.

Ao contrário do que possa parecer a Pega de Sernelha, é das lides mais difíceis de fazer.

O Toureiro além de ser incisivo, tem que obter a cumplicidade do Bichedo e não pode ficar cá atrás, tem que ir prós cornos do Toiro, embora nunca em posição frontal, mas lateral, sempre educadamente, de flanco e sem se expor demasiado.

Este tipo de pega, não sendo tão rápida como a de Caras, dá muito mais gozo que a de Caras, quase tanto como a de Aficionado e permite resolver sempre o assunto de forma mais rápida que a de Aficionado, sendo que por sua vez e como característica própria e sua, tem a vantagem de permitir que o Toiro seja lidado de Sernelha, tantas vezes quanto as que forem precisas, coisa que a de Caras não permite, porque nessa ou o Toiro se parte todo ou fica queimado e jamais voltará à lide. Na de Sernelha não, o Toiro deixa-se lidar sempre e vem sempre à lide. Melhor ainda, se a pega de Sernelha for bem feita, o Toiro nem sequer se apercebe de que foi lidado.

Assim deixei-me estar 10 minutos na bicha, ainda e sempre para ganhar legitimidade e autoridade moral. Aos 10 minutos comecei a resmungar baixinho e a mexer-me incomodado. E isto tudo feito, sem que o Toiro se apercebesse. Só o Bichedo de flanela e de samarra, é que se apercebeu, no que me deu de imediato a sua cumplicidade total.

Aos 15 minutos, obtida a aprovação do Bichedo, saí da fila e dirigi-me ao Toiro. Com jeitinho.
-Isto não pode ser, ó Sr. Silveira, (este é um nome ficticio, que eu não quero problemas com o Sr. Pereira), estou aqui há quinze minutos e o Sr. só pôde atender (reparem no "pôde", neste tipo de pega é essencial não afrontar o Toiro) uma pessoa, o Sr. não pode estar sózinho, tem que chamar outro colega pró ajudar, eu e estas pessoas todas não podemos e estar aqui a tarde toda!"

Apesar de toda a cortesia, o Toiro reagiu mal como tantas vezes acontece, e procurou marrar de frente. É nesta altura que o Toiro se perde. Porque se o lidador está de Sernelha, jamais o Toiro, de per si, pode mudar a coisa pra Pega de Caras. Só muda pra lide de Caras, se o Toureiro deixar.

-Ó SrDr desculpe lá mas não me pode interromper, que estou a atender uma pessoa!
-Ó Sr. Silveira, desculpe lá interromper, mas não tenho outro remédio, como lhe disse, o Sr. sózinho jamais conseguirá atender esta bicha toda em tempo razoável e não é justo que as Finanças nos exijam tempos de bicha sem fim à vista.

O bichedo picado já começava a levantar a voz, e o Silveira, rato, viu que assim não se safava da carraça, e vai daí:

-Ó SrDr pode ter muita razão, mas isso só com o Chefe de Repartição, que eu sózinho não mando nada.
-Então, o Sr Silveira faça-me o favor de chamar o Chefe de Repartição.
-Eu daqui não posso sair, não posso parar o atendimento.
-Ó Sr. Silveira, não lhe custa nada dar um saltinho lá dentro e agradecia-lhe que não me obrigasse a ficar aqui a insistir (em voz alta e virado pró bichedo) ou a pedir o Livrinho de Reclamações (em surdina e só pra ele).

Cá atrás, o Bichedo já berra. "-Isto é uma pouca vergonha", "Não há direito, fazem o que querem", "Só a tiro".

O Silveira adivinhando a fase seguinte, vai chamar o Chefe.
O Silveira desaparece durante 10 minutos e volta com o Chefe.

O Chefe dos Toiros de Balcão, pergunta qual é o problema, com aquele ar afectado de inglês constipado, a pedir meças a quem o obrigou a incomodar-se.

-O Sr. é que é o Chefe de Repartição?
-Sou, e já lhe perguntei qual era o problema.
-Olhe, é o seguinte, eu estou aqui na bicha à meia hora, e muita desta gente (e volto-me para trás e levanto a voz) até está aqui há mais tempo, e há um único funcionário a atender este sector, ora como demorou meia hora a atender a primeira pesoa, teremos que estar aqui todos até ao fim do dia, e no meu caso eu apenas quero ver um artigo da matriz.

O Toiro Chefe, que viu entretanto o cachucho rubi de imitação, no dedo segundo da talocha esquerda, adianta:

-Mas ó Sr Dr, o Dr passa já à frente e é atendido já.
-Mas eu não quero passar à frente de ninguém (em voz alta e voltando-me para trás).
-Mas como advogado, o Sr Dr tem o privilégio de ser atendido em primeiro, ó Silveira...
-Ó Sr Chefe, (voltando-me prós flanelas e samarras e em voz alta) mas eu estou aqui a falar consigo como contribuinte normal e não quero afrontar estas pessoas que esperam há mais tempo do que eu, e eu tendo esse privilégio não o quer exercer.

A turba aplaude. Se lhes pedisse as filhas naquele momento, davam-mas de certeza.

-Mas é que eu não tenho mais ninguém prá aí meter, ó Sr Dr.
-Ó Sr Chefe, o Chefe de Repartição é o Sr, o Sr é que sabe como deve ser. A nós (virado prá bicha) só nos compete ver que a coisa não está bem e tem que ser corrigida.

O Bichedo delira e espoja-se de gozo. Eu tamém, mas só pra dentro que o toureio é uma arte solitária.

O Chefe, contrariado, vira-se pra trás e chama um bigodaças alto e fininho funcionário, que se atafulhava atrás de uma secretária próxima.

-Ó NãoSeiQuê, vem aqui atender a autárquica.
-Eu não posso, estou aqui a fazer o serviço xptoyzx,
e enterra de imediato e ainda mais, as fuças nos maços de papel, num desrespeito incrível pelo Chefe dos Toiros e numa demonstração clara de que a arte da Pega de Caras, também tem cultores do lado de lá do balcão.

Em desespero de causa, o Chefe agarra o braço de uma avantajada gorda de buço à groucho marx que passava ali,

-Ó NãoSeiQuê, atende aqui as pessoas da Autárquica.

Azar. Outra adepta da Pega de Caras. Vira uma cara de tanque de guerra pró Chefe, num misto de desafio e levas-me uma qaté voas, e vai de lhe virar o cú, descomunal por sinal.

Tanta desfaçatez junta e pública da parte dos inferiores, quebrou o Chefe por completo. O Toiro foi vergado e caíu. Baixou os ombros, põe-se ao lado do Sr Pereira a atender ao balcão, e humilde, diz:

-Ó Sr Dr, então diga lá que artigo é, que eu vou buscar.
-Ó Sr Chefe, assim não, tamém não quero isso, se vai abrir a secção de autárquica em separado, tenho que perguntar aqui atrás se há alguém à minha frente para a autárquica.

Dito e feito, sem dar tempo ao Toiro que ficou de boca aberta.
Azar de novo. Definitivamente não era o dia do Chefe dos Toiros.
Havia de facto alguém que se chegou à frente.
E eu dei-lhe passagem. O Chefe abriu a boca pra dizer algo, mas faltou-lhe a voz, enquanto lhe passavam pela cara todos os tons possíveis de vermilhidão humana. Atendeu o flanela. E depois atendeu-me a mim. Fodido de todo. Se o olhar fulminasse eu caía logo ali.

-Ó Sr Dr, então diga lá que artigo é, que eu vou buscar.
-5000, urbano de Santa Eufémia, Sr Chefe.
-Está no seu nome?

Mau, era o cabrão a tentar escoicear, tás bem fodido estás, pensei eu.

-Não, está no nome de outra pessoa.
-Atão não posso ir buscar, que há reserva e segredo fiscal e só os próprios é que podem consultar a matriz.
-E os advogados.
-Sim, mas o Sr Dr está aqui como contribuinte normal, logo não pode ver a matriz.
-Tem toda a razão, só que isso era há bocado, para resolver o problema da bicha, agora que chegou a minha vez, estou aqui como advogado e quero ver a matriz e para que não haja dúvidas exibo já a minha cédula.
-Podia ter exibido há bocado...
-Há bocado era como contribuinte...
-Eu vou buscar...

Manso, mansinho, lá foi o Toiro buscar a matriz. Mal vi aquela merda, saí prá rua de enfiada e andei o resto da tarde com um sorriso à Manuela Moura Guedes.


AVISO: Por favor não tentem isto em casa ou na vossa Repartição. Este tipo de lide fiscal é feito por profissionais treinados e sua feitura por pessoas impreparadas pode conduzir a que se aleije seriamente.

25/09/08

Deixai Vir a Mim as Criancinhas, por Frederico


Quem pensava que aquela coisa abjecta dos governantes serem fotografados ao lado de criancinhas para lhes apanharem a aura de pureza e bondade era coisa da propaganda do ínício do século passado estava afinal enganado. Ele há Grandes Líderes que ainda recorrem a essas velhas fórmulas. Pinto de Sousa é um desses casos - dando computadores Magalhães aos jovens passa a imagem de um governante apostado no progresso e na tecnologia (entretanto numa grande parte das nossas escolas chove dentro das salas e os edifícios caem de podres, mas isso não interessa nada)... E deixando-se fotografar ao lado das criancinhas para a foto do jornal e para as imagens da TV passa a imagem de um paladino da pureza, tipo anjinho da guarda.

Ele é uma mistura de político pimbalhão e de ratazana da propaganda. Pimbalhão: desses que oferecem frigoríficos e micro-ondas aos eleitores, só que em vez de electrodomésticos oferece computadores Magalhães. É mais moderno. Ratazana da propaganda: porque a mensagem é tão obscenamente primária que chegamos a ter dúvidas de que passe, mas a verdade é que o país é tão mau, tão mau que esta cena das criancinhas funciona mesmo.

Deixo-vos um dos dinossauros especialistas na produção de imagens deste género obsceno: o camarada José, intitulado pelos seus, Friend of the Children. As fotos não são boas mas são as que se puderam arranjar. Descubra as diferenças.

17/09/08

Alguém Quer Ir?, por Marado

Vi a publicidade na TV e chamou-me a atenção. Depois o P. foi ver o filme e disse que era magnífico, imperdível, etc. Anteontem encontrei o J. a cantarolar uma música do Dino Meira e desconfiei:
- Foste ver Aquele Querido Mês de Agosto, pá?
Ele disse que sim e esteve cinco minutos a gabar o filme.
Entretanto o R. que ouviu a conversa também se juntou e confessou-se extasiado. O J. é um apreciador crítico da Cindy Sherman e um leitor atento da obra de Giorgio Agamben. O R. fala muito alto, transpira dos sovacos e aprecia mais o Tony Carreira.
Pensei que um filme que agrada a gente tão diferente deve ser mesmo muito bom. Ou muito mau, não sei bem...

Ontem perguntei ao Mangas se queria ir ver o filme, mas ele disse que já tinha visto uma parte no You Tube (ah bom...) e, claro, foi dormir a sesta. Ainda não fui ver Aquele Querido Mês de Agosto, o segundo filme de Miguel Gomes, filmado em Coja e em Arganil com o recurso a intérpretes locais. O argumento tem como pano de fundo o universo rural do interior de Portugal, a banda sonora é 100% pimba e inclui os ícones Dino Meira e Marante. Lanço aqui o repto: quem é que quer ir ver o filme comigo ao Dolce Vita? Amanhã não, claro, que dá o Benfica na televisão...

O fabulosod Dino Meira em http://www.youtube.com/watch?v=vC06ftidij4

14/09/08

Isto é um Assalto! por Cão

Veja-se o caso dos assaltos às estações de abastecimento de combustíveis. Acontecer, acontecem: mas que é que isso interessa? Ao menos que, quando e se se noticiasse um assalto a umas bombas, que, em “caixa”, se dissesse também quanto é que tal gasolineira tem andado a roubar ao automobilista.

09/09/08

Youth Without Youth - a Segunda Juventude de Coppola, ou o regresso do Mestre, por Mangas

Tapornumporco - De onde lhe surgiu a ideia para fazer Youth Without Youth?

Copola - Foi Wendy Doniger antiga colega de Liceu e que hoje é uma iminente professora de Estudos Asiáticos na Universidade de Chicago que me chamou a atenção para o livro de Mircea Eliade. Li-o e achei que com um baixo orçamento podia transformar o livro num filme interessante sem que, pela primeira vez, dependesse de alguém que não do meu talento.

T - Visualmente, o filme é poderoso. Dá a sensação que emerge de um limbo onde as cores traduzem, mais do que ambiências, sensações e estados de alma. A intemporalidade das imagens, a composição da fotografia que, em alguns planos, é de uma beleza glorificada. A noite em Malta que foi sempre filmada a azul porque era o tempo da maldição; as velas acesas nos Cafés, as ruas de Bucareste em tons pastel, tonalidades de época em plena Grande Guerra. Pode dizer-se que este é o seu projecto mais surrealista?

C - Mas repare, de que outra forma poderia eu filmar tempo, linguagem, consciência? Enquanto objectos do meu interesse, quer pessoal, quer de realizador, tentei que não se reduzissem perante o tema que lhes dava forma e estrutura: uma história de amor. Essa articulação, e o lugar físico onde ela acontecia na Europa, foram as minhas primeiras preocupações, o meu ponto de partida. O resto foi afinação do estilo e trazer de volta o meu sentido experimental. O rejuvenescimento de Dominic e o envelhecimento de Verónica como linhas paralelas, mas em sentidos opostos - a ideia é tão simples como complicada de filmar quando se quer fazer algo que não pareça banal. E eu sou um tipo que não fazia nada há dez anos. Percebe? Outro exemplo: dar visibilidade a várias metempsicoses requer algum trabalho e planificação. Pura e simplesmente, eu não podia filmar a transmigração da mesma alma de um corpo para o outro com dois takes numa sala de montagem como Roger Corman teria feito nos anos sessenta.

T - A morte da dupla identidade de Dominic. O espelho estilhaçado foi um recurso simples.

C - Keep it simple. Nem sempre podemos fazer ópera. Dominic teve duas oportunidades: uma perdeu-a, a outra decidiu abdicar dela para a salvar. E não existem maldições, apenas amaldiçoados.

T - Até as pequenas falhas parecem quebras, minúsculas roturas nesse exercício de estilo…

C - Quais falhas? A que se refere concretamente?

T - Bem, a cena do guarda-chuva a arder à chuva depois de ser atingido por um raio, convirá que é mais metafórica do que original…

C - Então, onde lhe parece aí ter havido a rotura de estilo?

T - É que logo a seguir, a sequência completa-se com as partículas fumegantes a descer no ar, que, a mim pessoalmente, me fez lembrar o fundo baço com gotículas do absinto e glóbulos vermelhos do seu Dracula.

C - Talvez. O mesmo processo, mas com resultados diferentes.

T - Exacto! O que se vê é a antecipação. E esta está escondida. Esta linguagem cinematográfica também subsiste sem palavras.

C - Penso que nas últimas décadas o cinema evoluiu muito mais sustentado por progressos tecnológicos do que por palavras acrescentados ao vocabulário. Já foi tudo inventado. Griffith, Chaplin, Eiseinstein foram os pioneiros e fizeram-no sem som. O que há agora é variações sobre o mesmo tema. No North by Northwest do Hitchcock, a cena de mais profunda dor e sentimento traído não é do Cary Grant, o homem que ama, quando descobre que a Eve Saint Marie o mandou para a morte. Essa cena é aquela em que o James Mason, o homem que possui, porque tem posse sobre a Eve Saint Marie, descobre ter sido traído por ela quando descarregou sobre o Cary Grant uma pistola com pólvora seca. De comum ambas as cenas deste triângulo fatal têm o facto de ter sido a mesma mulher a trair os dois homens – traiu o que amava, por não ter alternativa, e traiu o outro, o que odiava e por quem era possuída, para proteger a vida do que amava. E tudo isto é feito com poucas palavras, muitos planos de câmara em diferentes ângulos e a mão genial do realizador. Repare com atenção na face crispada do James Mason. Em toda aquela raiva contida a morder o punho quando descobre que foi traído.

Silêncio.

T - Não pude deixar de reparar na homenagem explicita que fez ao Maltese Falcon do John Huston quando Veronica perguntou a Dominic quais eram os animais de Malta.

C - Para mim é o melhor filme de detectives de sempre.

T - É também muito interessante que tenha usado a palavra, a linguagem, como personagem intrínseca do filme.

C - Sim, acredito cada vez mais que nos dias de hoje só nos restam as palavras para comunicar a verdade das coisas como as entendemos, dos sentimentos como os vivemos. Ícones, imagens, logótipos, linguagens multimédia, são recursos imediatos, atalhos que servem o propósito. Só as palavras mantêm na sua essência a verdade. A filosofia do filme também passa por esse caminho – na simplicidade rigorosa do que não pode ser alterável. E o fascínio vem daí: quanto mais mergulhamos nesse universo, mais nos apercebemos da complexidade e, ao mesmo tempo, da clareza das palavras, da honestidade dos símbolos. No Japão, dois traços na vertical unidos em cima numa só linha e separados para lados opostos em baixo, cortados a meio por uma linha ligeiramente ondulada na perpendicular, significa perfeição, excelência, estado supremo de apuro. Isso digo-lhe eu que sou americano. Se perguntasse a um cultivador de arroz de Hokkaido, ele dar-lhe-ia uma explicação que demorava meia hora. Foi assim há milhares de anos e ainda é. E são apenas três linhas.

T - Foi por isso que filmou o primeiro beijo de Dominic a Veronica no banco de trás de um táxi, perdido algures numa movimentada rua de uma cidade indiana? Em recurso dessa genuína honestidade…

C - Talvez. (risos)

T - Porque se ri?

C - Bem, é que o primeiro beijo também pode ser uma verdade simples que nem todo o tempo irá alterar. Eu dei o meu primeiro beijo a Wendy Doniger quando tinha 15 anos.

T - Nunca se sentiu na pele de Preston Tucker, como um artista capaz de realizar verdadeiras obras de arte e, ainda assim, ser incompreendido e não conseguir com elas a projecção merecida o retorno financeiro? Estou-me a lembrar do ambicioso desastre que foi One from the Heart, de Rumble Fish e do próprio Tucker - A Man and His Dream.

C - Houve uma altura em que me preocupava com aquilo que as pessoas diziam e escreviam sobre os meus filmes, mas se fizesse a minha carreira dependente das críticas nunca teria tido tomates para seguir o meu caminho. Preston Tucker era um visionário que foi engolido pelos três grandes tubarões da indústria automóvel americana à época, a Ford, a Chrysler e a General Motors. Na realidade tinha imenso talento, mas nunca teve poder. Quando pensei realizar Tucker, achei que poderia fazer uma declaração artística do homem contra o sistema. A cruel ironia é que o filme podia servir para contar a minha história, o meu percurso até ali. One From The Heart levou-me à falência. Tudo que fiz a seguir no cinema, bem como os meus vinhos e os meus hotéis, serviram para pagar essa dívida colossal. Hoje posso dizer que estou imune à política de cifrões dos grandes estúdios. Posso filmar apenas o que me agrada e da forma que bem entender sem que um executivo engravatado me faça sentir empregado de alguém.

T - Para quando Megalopolis?

C - Não sei. Talvez nunca. Há mais de duas décadas que tenho o projecto na cabeça e no papel, avanços e recuos. É um épico imenso. Demasiado, talvez, começo a acreditar.

T - Queria dizer-lhe, para acabar, que o primeiro plano de Patton, com o George C. Scott a discursar às tropas com a bandeira ao fundo, é das melhores sequências de abertura que já vi no cinema. E foi você que escreveu aquilo.

C - Obrigado.

T - Eu é que lhe agradeço.

03/09/08

Hardcore, por Manguelas

O primeiro ministro, pinto de sousa e a inefável ministra da educação, m.l.rodrigues, decidiram sinalizar o «arranque do novo ano lectivo» com mais uma acção de propaganda numa qualquer escola perto de si. Não sei bem qual era a ideia, mais um show of qualquer a respeito da brilhante política educativa do governo. O problema daquelas duas personagens é que nem todos os jornalistas estão lá para lhes fazerem as perguntas que suas eminências querem ouvir. E depois é uma chatice quando os telejornais passam as perguntas incómodas dos jornalistas em vez de reproduzirem, simplesmente, a propaganda desejada. Às vezes acontece...

Aconteceu agora que lembraram-se alguns jornalistas e bem, digo eu, de perguntar a suas sumidades o que tinham a declarar sobre os 40 oo0 docentes que não conseguiram colocação para este ano. E as respostas, irritadas, mal dispostas, coléricas, nervosas, desrespeitosas, são indignas de qualquer governante com um mínimo de decoro.

Milu rodrigues limitou-se a um nervoso «tenha paciência» acompanhado por mais uns ruídos irritados e exclamativos e virou imediatamente as costas à jornalista. Como se aquilo não fosse uma pergunta legítima, como se o país não quisesse ouvir a sua explicação para o facto, como se os 40 000 desempregados, ao menos esses, não merecessem mais que um virar de costas. Repugnante e indigno de um político com um mínimo de decoro...

Quanto ao primeiro, pinto de sousa, o homem resolveu falar. Mas mais valia estar calado. Com a habitual pose de quem não está para ser contrariado, afirmou que «o tempo da facilidade acabou» (sic). Que «o governo não vai contratar mais professores sem precisar deles». Passo por cima da afirmação segundo a qual o país não precisa de mais profes. Eu acho que precisa. Mas a questão não é essa. A questão é que estas declarações são inadmíssiveis!

Ainda que a tese de pinto de sousa seja correcta, mesmo supondo que o mercado de trabalho já não absorve aqueles 40 000 excedentários que engrossam agora as filas do desemprego, ainda assim, nada justifica a total insensibilidade com que o primeiro ministro se lhes referiu. Qualquer desempregado deveria merecer, em primeirísssimo lugar, a total solidariedade de qualquer governante, que digo?, de qualquer pessoa minimamente responsável. Sejam professores, arquitectos, pedreiros, carpinteiros, barbeiros ou pasteleiros, quaisquer pessoas na situação dramática do desemprego, merecem, antes de tudo, o respeito e a solidariedade dos seus concidadãos. Referir-se a desempregados dizendo-lhes que só no tempo da facilidade é que podiam ser integrados é mais que faltar-lhes ao respeito. É tratá-los como calaceiros, como mandriões, como langões, é fazer deles os responsáveis e não as vítimas do problema. Não ouvi uma única palavra de compreensão, nada mais que um seco e arrogante «o tempo da facilidade acabaou» (sic)

Acho estas declarações inadmíssiveis ainda por cima vindas de um indivíduo que tirou («tirar» neste caso é uma palavra apropriada) o curso, como se sabe, usufruindo, ele sim, de facilidades absolutamente inacreditáveis. Quem passou uma vida a estudar para tirar um curso a sério pasma! Um indivíduo que tem no seu curriculum os miseráveis projectos da câmara da Covilhã devia era estar caladinho quando pronuncia a palavra «facilidade». Eu já não esperava nada deste senhor. Nada... Mas ele consegue sempre surpreender-me e descer até níveis que eu não julgava possíveis num primeiro ministro, seja ele quem for, de esquerda ou de direita de um país pobre ou de um país rico.

Pode ser que esses 40 000 manguelas, na sua maioria jovens licenciados em cujas formações o estado investiu dinheiro à toa, sejam só uma pequena parte de muitos outros que, espero, lhe dêem a lição que ele merece nas próximas eleições. E que, de uma vez por todas, ele volte para o anonimato da trupe dos aparelhos partidários de onde ele veio e de onde nunca devia ter saído.

P.S. O pic que ilustra o post é a célebre foto de Dorothea Lange, Migrant Mother, que se tornou num dos ícones mais ilustrativos do drama do desemprego. Duvido que o primeiro ministro e a sua ministra da educação conheçam esta foto. Se a conhecem, a julgar pelas suas reacções, não compreendem minimamente o seu significado. Fica por isso o olhar digno daquela «migrant mother» para os olhar de frente na hipótese improvável de um dia virem ao Porco.

02/09/08

Os Tigres, por Nabo Leão

Em 1808 a corte portuguesa fugiu para o Brasil. Foi a primeira vez que um soberano do Velho Continente se deslocou em carne e osso aos seus territórios ultramarinos. D. João VI, o soberano português, até havia de gostar dos trópicos e, rezam as crónicas, já nem queria sair do Rio de Janeiro depois de lá morar durante uns anos. Compreende-se.

A fuga da corte portuguesa foi uma vergonha nacional, até porque as tropas invasoras napoleónicas que chegaram a Lisboa em 1808, comandadas por Junot, vinham num estado lastimoso e, com o apoio dos Ingleses, podíamos perfeitamente tê-las rechaçado. É espantoso como uma nação que se habituou a combater desde a sua fundação para manter a sua soberania tenha decidido fugir daquela maneira para o outro lado do Atlântico. Mas foi o que foi. A vergonha foi notória. Conta-se que a rainha D. Maria I, mãe de D. João, terá mesmo dito ao cocheiro para que não fosse tão depressa para que não se pensasse que fugiam dos franceses.

Medroso ou cobarde, o certo é que D. João VI foi dos poucos monarcas que conseguiu sobreviver à revolução francesa e a Napoleão. Não acabou decapitado, nem exilado nem preso como os seus semelhantes europeus e governou enquanto monarca do Império de Portugal do Brasil, do Algarve e das Áfricas até ao fim dos seus dias. Pouco antes de morrer no seu exílio em Santa Helena, Bonaparte escreveu mesmo nas suas Memórias, referindo-se a D. João: «Foi o único que me enganou». Ora toma!

A viagem da corte haveria de marcar a história do Brasil e de Portugal. Os Portugueses foram encontrar uma cidade com graves problemas de higiene. No seu livro 1808, Publicações D. Quixote, 2007, o investigador brasileiro Laurentino Gomes conta uma história impressionante a este respeito. E acrescenta uma explicação para o atraso no saneamento no Rio de Janeiro. Trata-se ao mesmo tempo de um testemunho incómodo sobre os níveis de degradação e de humilhação a que o racismo pode conduzir. E isto não se passou assim à tanto tempo... Ora leiam, reproduzo com a devida vénia da página 135 do livro, cuja leitura aconselho vivamente:

«A urina e as fezes dos moradores (do Rio) recolhidas durante a nite eram transportadas de manhã para serem despejadas no mar por escravos que carregavam grandes tonéis de esgoto às costas. Durante o percurso, parte do conteúdo desses tonéis, repleto de amónia e ureia, caía sobre a pele e, com o passar do tempo, deixava listras branca nas suas costas negras. Por isso, estes escravos eram conhecidos como tigres. (...) O sociólogo Gilberto Freyre diz que a facilidade de dispor de «tigres» e o seu baixo custo retardou a criação de redes de saneamento nas cidades e no litoral brasileiro».

01/09/08

www.raspadinha.lete, por Cão

(Crónica nº 65 da série Rosário Breve, in O Ribatejo - www.oribatejo.pt, edição de 22 de Agosto de 2008)
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Não sei quem terá sido o caluniador que me bufou aos remotos “masters” da internet, mas é que todo o santo dia recebo na minha caixa de correio electrónico uma carrada de propostas farmacêuticas para aumento volumétrico do meu, digamos, “coiso”. E não só. A farmacologia da www. teima, ainda, em convencer-me a enveredar pelo azul: ou seja, pelo viagra, como se “isto”, afinal, já não fosse uma irrecuperável miniatura.
Está certo que devo ao Fisco, de momento, coisa de cento e picos euros. Mas também não era caso para isto. É verdade que na Lete do Central tenho um “cão” de quatro ginjas, dois bolos de bacalhau, meia grade de minis e um bilhete de raspadinha. Mas não era coisa que me fizessem.
Antes das novas tecnologias, a vida era muito mais fácil e muito mais gira e muito mais bonita. Era. Antigamente, a história só tinha duas hipóteses: ou era antes de Cristo ou depois dEle. Agora é tudo durante: durante www., que não sei o que quer dizer porque é letra que não aprendi em nenhuma cópia-caligrafia da minha primavera marcelista particular.
Sou um semi-órfão já madurote de 44 anos. Ainda não, portanto, me assaltaram nem o des-hastear da bandeira nem o falso azul do céu químico. Nã-senhor. Tenho feito o meu papel, geralmente nesta página até. Informo-me, oriento-me, frequento bares de gente desquitada, vou a apresentações de livros e a inaugurações de pintura, não me rio alto, quase nunca, sempre que algum presidente de câmara fala ou escreve: tudo na linha, cá comigo. Portanto, não merecia tanto entulho. Como diria talvez Hergé, faço o meu tintim. Não merecia era isto do correio electrónico, nem mereço nova oportunidade alguma para coisa, ou “coiso”, nenhum(a).
Que comigo, raspar por raspar, ou raspadinha por raspadinha, só se for na Lete da Central.