25/09/06

Filhos da Região de Turismo do Oeste: guião para um episódio de uma série juvenil, por Manoel Bacoco

[A acção começa à porta principal da Escola Básica do 2º e 3º Ciclos numa cidade da região Oeste, nos arredores de Lisboa. Personagens: Professora de Biologia, Marta, João, Bernardo e Carolina. As duas raparigas saem do portão escola. Espera-as o Bernardo]

CENA 1

Carolina (para a Marta): Olha, não é o Bernardo?

Marta: Sim, parece. O que é que está ali a fazer? Será que faltou às aulas?

[Aproximam-se do Bernardo]

Carolina e Marta: Olá, Bernardo!

Bernardo (com um ar triste, o capacete debaixo do braço, encostado à mota. Veste roupa de marca. Fala com uma voz baixa]: Olá, Carolina, olá Marta…

Carolina: Passa-se alguma coisa?

Bernardo: Não, nada...

Marta: Faltaste às aulas.

Bernardo: ….

Carolina: E logo hoje que tivemos uma aula muito fixe de Biologia. Estivemos a estudar como se deve prevenir a SIDA.

Marta: Pois foi. A professora de Biologia é muito fixe. Hoje aprendi muita coisa.

Carolina: Deixa lá isso. Ó Bernardo, desculpa lá mas estás com um ar um bocado esquisito. O que é que se passa?

Bernardo: Nada, nada. Olha, tenho que me ir embora. Xau!

[Bernardo sai de cena, de mota. A câmara filma o Bernardo a desaparecer ao fundo da estrada]

Carolina [para a Marta]: Não achaste o Bernardo muito…

Marta: (responde afirmativamente com um aceno de cabeça) Isto é muito estranho…

CENA 2:

[No Centro Comercial, depois de almoço]

Marta: Olha, Carolina, aquele não é o João? É muito giro, não achas?

Carolina: Deixa-te de disparates, Marta, agora não é a altura ideal para esse tipo de comentários. ‘Bora falar com ele. Ele é a pessoa ideal para nos ajudar a descobrir o que anda a atormentar o Bernardo.

Marta: Pois é. João, João, aqui, somos nós…

João: Oi, olá miúdas, que surpresa. Estão porreiras?

Marta e Carolina: Nós estamos, e tu.

João: Eu estou óptimo, vim agora do treino de judo, vou almoçar com o meu pai e depois vou para as aulas de violino.

Marta: Sempre o mesmo João, muito atarefado, de um lado para o outro. Mas, será que nos podias dar um momento?

João: Porquê? Há algum problema?

Carolina: Não…

Marta (interrompendo): Há… pode ser que não, mas achamos que algo se passa com o Bernardo.

João: O Quê? O Bernardo? O que é que lhe aconteceu? Ele é um gajo bué de fixe… Digam-me, por favor, aconteceu alguma coisa?

Marta: Não sei, mas ele estava esquisito hoje ao fim da manhã. Queríamos falar contigo por causa disso.

João: Claro. Deixa-me só dar um toque ao meu pai. (Tira o telemóvel do bolso): ‘tou, pai, olha, passou-se agora aqui uma cena, não vou poder ir almoçar contigo, desculpa lá… eu sei pai… eu sei. Não te importas? De certeza? Pronto, obrigado, és um porreiro.

Carolina: O teu pai é mesmo fixe, quem me dera ter uma relação assim com o meu pai.

Marta: Estas relações constroem-se com base no diálogo e na confiança, Carolina.

João: Vá, meninas, deixem lá a psicologia agora. O que é que se passa com o Bernardo?

CENA 3:

[Na esplanada do Centro Comercial. Marta e Carolina colocam João a par da situação. João baixa a cabeça pensativo à medida que se vai inteirando da situação. De repente, avistam a professora de Biologia]

João: Olha, aquela não é a setôra de Biologia?

Marta: É.

Carolina: A setôra é bué de fixe. Fala connosco sobre todos os problemas que nos afligem. Olha, tive uma ideia, vocês não acham que é a pessoa ideal para nos ajudar a resolver o problema do Bernardo?

João e Marta: Isso, excelente ideia, Carolina. Setôra, setôra…!

Professora de Biologia: Olá, meninos, por aqui? Mas que agradável surpresa… Passa-se alguma coisa?

João: Bom…

Professora de Biologia: Vá, andem lá, já sabem que comigo podem contar sempre.

Marta: É o Bernardo, setôra…

Professora de Biologia: Pois é, então vocês também repararam que ele anda esquisito.

Carolina: Pois foi, setôra. Será que a setôra podia ver o que é que se passa?

Professora de Biologia: Vou tentar, deixem comigo.

CENA 4:

[No outro dia, à entrada da escola]

Bernardo: Olá, Marta. Olá Carolina, olá João.

Marta, Carolina e João: Olá, Bernardo. Estás muito mais alegre do que ontem. O que é que se passou.

Bernardo: Eh pá, vocês nem imaginam. Vocês são mesmo uns amigões. Tenho que vos agradecer.

Carolina: Então? Conta, não nos deixes assim… Vá lá.

Bernardo: Ontem, a professora de Biologia foi a minha casa falar comigo. Ela contou-me tudo. perguntou-me o que é que eu tinha, disse que eu andava estranho e que vocês tinham reparado.

Marta: pois foi…

Bernardo: Fui um palerma.

João: Anda lá, pá, conta

Bernardo: Vocês conhecem o Tó Jó, aquele tipo estranho do 9º H?

Todos: Sim, claro, o gajo é completamente passado.

Bernardo: Pois, ontem o gajo desafiou-me para faltar à aula de Biologia. Eu fui burro e aceitei. Depois fomos para o salão de jogos…

Carolina: Uiii… isso é cá um ambiente

Bernardo: E o Tó Jó desafiou-me a fumar um charro. Eu primeiro disse que não, mas depois…

Marta: Ah! Por isso é que tu estavas com aquele ar meio esquisito?

Bernardo: Pois foi. Mas a professora de Biologia já me explicou os malefícios da droga. E disse-me que eu tinha muita sorte em ter amigos como vocês.

João: Lá isso é verdade.

Bernardo (abraçando todos): Obrigado, meus amigos, vocês são os melhores amigos do Mundo.

João: Tens que vir para o judo comigo, para te manteres afastado desses perigos.

FIM

Foto

24/09/06

Memória de Porco, por Porco Solidário

Dobrei o cabo meridiano da vida. Duvido que viva tanto como já vivi. É altura de pensar nas memórias. Um gajo olha para trás e só vê merda. Por isso, o melhor é continuar a olhar em frente. Isto significa que esta página inaugural é já, também e ainda no primeiro parágrafo, a última página das minhas memórias. Isto traz-me uma grande responsabilidade. É importante que estas memórias, ou melhor, memória, não deixe má impressão. Não pode ser uma memória de merda. Esforçar-me-ei.
Estava aqui a desfolhar os papéis quando me veio à lembrança um confrade que anda arredio. Foi meu colega desde o primeiro do Ciclo Preparatório ao último da Faculdade. Foi um dos confrades mais entusiastas aqui do Porco. Organizava jantares, escrevia reportagens, tirava fotografias, enchia-nos o correio electrónico com mensagens inúteis, telefonava, jantava connosco, etc. Há dois anos que anda desaparecido, ninguém o vê a não ser acidentalmente. A amizade continua inalterada e fortíssima. Ele há-de aparecer. É o Galgo.
Estava aqui a ver uma «licença militar» de 1985 quando fui passar o Verão a Inglaterra. Lembro-me dessas férias. Tirei passaporte, paguei uma taxa de 1000$00 para me poder ausentar do país, levava pesetas, francos e libras e uma licença militar passada pelo DRM a dizer que eu tinha a situação regularizada e me encontrava na «Reserva Territorial». Nunca soube o que era isso. O papel, já amarelado, recordou-me as inspecções, a minha única memória da caserna. Eu fui com o Galgo às inspecções militares. Éramos da mesma idade e vizinhos. Lá fomos ao mosteiro de Santa-Clara-a-Nova. O Galgo tinha metido uma cunha. O pai dele, entenda-se. Tinha um capitão amigo, pagou umas notas, e ia seguro de que não pagaria à Pátria o que ela reclamava. Eu juro que não movi uma palha para evitar o cumprimento dessa obrigação. Não porque tivesse vontade de servir a dita, mas porque acreditava que não me queriam lá para nada. Pobre Pátria que precisa de um gajo como eu para a defender. Quando isso acontecer, quer dizer que já 'tá fodida! Lá fomos. O Galgo ia confiante, eu também. Por razões distintas, como se viu. Fizémos muitos testes. Psicotécnicos com cruzinhas e a contar cubos postos em estruturas de aparência tridimensional, um ditado porque nos esquecemos do diploma de estudos, uma consulta médica em que o doutor nos perguntou se sofríamos de alguma coisa, um raio-X, um teste à audição, mais outro à visão, etc. Foi um dia inteiro a andar daqui para ali e dali para aqui. Intenso. A certa altura, lá para o final da manhã, pedem-nos para mijar para um copinho de plástico. Era para fazer o teste às diabetes. Punham lá uma palhinha que, depois de bem humedecida, se tingia numa gama de cores que indicaria o nosso estado. Eu portei-me bem. O resto da malta mostrou uma secura repentina, intimidada pelo facto de estarmos ali uns à frente dos outros com o copo na mão e a pila de fora da braguilha a fazer shhhhhhh. Quanto mais shhhhhhhh fazíamos, mais inibidos se mostravam todos e mais se retraíam as bexigas. Todos menos eu. Aquilo foi um consolo. Posso dizer que foi o melhor serviço que prestei à Pátria. Orgulho-me disso, devo dizer. Se a Pátria dependesse da minha disponibilidade mictória, a Pátria seria uma Potência. A Pátria pedia-me mijo e eu dava, abundantemente. Não era como aqueles que por ali andavam em círculos com o copo na mão a fazer shhhhh. Vai daí, o Galgo disse-me assim:
- Ó Luís, tu não precisas de tanto, carago. Dá aí um bocado.
E estendeu-me o copo. Eu, fraternalmente, e porque gosto de partilhar, dei-lhe metade da minha colheita. Vendo isto, os circunstantes venceram a timidez e fizeram pedidos idênticos. Não multiplicámos o líquido, mas dividimo-lo por tantas porções quantas as necessárias. Ninguém ficou sem o seu quinhão. Cada um ficou com um golezito, salvo seja, pequenino mas o suficiente para embeber a palhinha da diabetes e para que se pudesse colorir conforme a densidade dos meus açúcares. Claro que, nesse dia, ninguém acusou diabetes. Fiquei satisfeito. Ficámos todos satisfeitos. Todos menos o Galgo que, apesar da cunha, seria chamado para cumprir serviço militar. Eu não, eu passei à reserva territorial.

Foto: http://www.fawley-hants.co.uk/Council/Council-News/November_2003/Imagefurniture/A-Pint-of-Beer.jpg

18/09/06

Somos Todos Católicos?, por Constantino

Há uns meses atrás, um jornal nacionalista dinamarquês, num exercício livre de xenofobia dissimulada e (bem) consentida pelas leis ocidentais de liberdade de expressão e imprensa, publicava uma série de caricaturas que desafiava o maior tabu religioso e cultural das centenas de milhões de crentes islâmicos espalhados por todo o Mundo: dava rosto a Maomé! Todos se recordam do escândalo e das reacções dos fanáticos muçulmanos. Todos se recordam dos excessos e das pressões inimagináveis exercidas sobre o director do jornal e sobre a diplomacia dinamarquesa que se recusou (bem) a pedir desculpa, argumentando que o poder político é separado da imprensa e que a liberdade de expressão é sagrada no Ocidente. Todos se lembram das manipulações das multidões e da guerra de informação. Na altura, nos jornais e na blogosfera houve muitos que se solidarizaram com a diplomacia dinamarquesa e, retomando Kennedy, gritaram inflamados: «Somos todos dinamarqueses!»
Agora, há uns dias atrás, o papa Bento XVI proferiu uma lição numa universidade alemã onde (bem) citou um imperador bizantino para demonstrar, a propósito da recusa deste em se converter ao Islão a pretexto da violência da Jihad, como a guerra é contrária ao sentimento religioso. O papa, não tão inflexível quanto a diplomacia dinamarquesa, até porque o seu múnus assim o determina, esclareceu e pediu desculpas por eventuais ofensas. A verdade é que, apesar disso, as reacções dos fanáticos aí estão. O primeiro-ministro turco reagiu solidarizando-se com o Islão ofendido, contrariamente ao governo dinamarquês que se demarcara de tomar uma posição sobre assunto religioso, na Somália mataram uma freira italiana, na Índia queimam efígies de Bento XVI, apedrejam igrejas e manifestam-se na praça pública. «Somos todos católicos?» - pergunto eu.

foto: http://news.bbc.co.uk/2/hi/europe/4495835.stm

17/09/06

O Que é um burro?, por James William N. Horse III

Ontem, o Sr. Necare publicou no seu blog um textozito inofensivo que intitulou «Etiquetagem». Trata-se de uma brincadeira ingénua pela qual o autor se pretende retratar, manifestando uma série de preferências e aversões. A brincadeira funciona como uma corrente, devendo o autor indicar um conjunto de amigos que continuará a série, sendo que foi ele próprio indicado por outros. Na minha adolescência eu também via os mariquinhas da minha turma com este tipo de jogos. Em princípio, estas brincadeiras são idiotas e inofensivas, em princípio, pelo menos enquanto não maculadas por afirmações despropositadas.

Apresentando as suas etiquetas, o Sr. Necare profere umas banalidades irrelevantes: que gosta da Suécia, gosta de música, cinema, literatura e não gosta de calor. Pelo meio, afirma despudoradamente que não gosta de espanhóis. Sem vergonha e sem justificação plausível, porque a não há, proclama-se xenófobo e argumenta que os espanhóis são expansivos e barulhentos e que andam sempre a lixar-nos. Depois reafirma a convicção: «Pode parecer estúpido mas é a realidade.»

Se o Sr. Necare afirmasse não gostar de pretos porque são muito qualquer-coisa, ou de judeus porque são muito não-sei-o-quê, o sr. Necare seria racista e incorreria em crítica séria e pena grave. Mas o Sr. Necare refere-se aos espanhóis e por isso se acha isento de responsabilidade, deve achar que tem piada e que xenofobia não é acusação grave quando aplicada a um povo inteiro. O Sr. Necare, como se pode ver, é burro.

Comentando esta inanidade, e sob o pseudónimo Pata Negra, eu chamei burro ao Sr. Necare. O Sr. Necare sentiu-se com o epíteto, justíssimo diga-se, e veio aqui ao Tapor verter a sua bílis. E disse:

«@Pata Negra: Se queres insultos, vamos a isso.
Sua besta do caralho, com uma merda de um nick tirado dos presuntos, julgas-te muito esperto, não é? Tiraste algum curso de psicologia por correspondência e queres aplicar os teus conhecimentos, mas é melhor ires para a tua vizinhança de parolos, pois deve ser o único sítio onde fazes um brilharete.
Deves ser descendente de espanhóis, não é cabrão? Andas vestidinho de andaluza, a dançar flamenco e a tocar castanholas. Volta lá para a merda da pocilga de onde saíste que a tua opinião não vale um bocado de merda de porco.»

Como se vê, e como já se havia suspeitado da leitura do post das etiquetas, o estilo não é recomendável, aliás tal como a sintaxe e o conteúdo.

O objectivo deste post é provar que o Sr. Necare é burro. É fácil. Não me dirijo ao Sr. Necare, ele lerá o post porque o post é público, mas ele não é o destinatário. Até porque, como burro que é, não entenderá a argumentação aqui expendida.

Comecemos por perguntar o que é um burro? Não no sentido zoológico, claro está, mas quando a expressão, como ofensa, é aplicada a um indigno representante do género humano. Neste caso, um burro é um indivíduo que, incapaz de interpretar e entender as evidências com que se depara e a partir daí produzir um discurso racional, insiste presunçosamente e com base na ignorância dogmática, em avaliar a realidade que não entende com base nas suas limitações. Isto é um burro. O Mundo visto pelos olhos de um burro é um mundo distorcido. Acho que a definição é boa.

A seguir, trata-se de reputar como completamente falsas as afirmações do sr. Necare relativamente à Espanha. O Sr. Necare não conhece a Espanha. Contrariamente ao que o Sr. Necare diz, a Espanha não está nem nunca esteve preocupada em nos lixar. É errado do ponto de vista histórico e político. É errado, seja qual for o ângulo e a óptica de análise. Revela ignorância completa e gritante. Poupo-me à demonstração, porque a evidência é do tamanho do universo e em sentido contrário.

Em segundo lugar, o Sr. Necare revela uma ignorância total acerca da importância da Espanha, da sua história e da sua cultura. De Goya ao presunto Pata Negra, de Altamira a Tapiés, de Almodovar a Cervantes, de Machado a Lorca, de Alonso ao Real Madrid, de Pau Gasol a Angel Nieto, de Penélope Cruz a Juan Miró, De Stª Teresa de Ávila a Cervantes, podia dar milhões, dezenas de milhões de exemplos em todos os sectores de actividade, do desporto à literatura, da poesia ao cinema, da pintura à política, da religião à sociedade, de figuras e factos marcantes na história da humanidade de origem espanhola. Em face desta evidência esmagadora, merecedora de admiração sincera, o senhor Necare diz que não gosta. Que são barulhentos e expansivos. Tece umas considerações generalistas, racistas, xenófobas e inaceitáveis.

Por outro lado, o senhor Necare fala dos nossos vizinhos como se fossem estranhos. Desconhece que a hispanidade é um pilar essencial, ainda que recalcado pelo discurso de muitos burros, da identidade portuguesa. Falar mal dos espanhóis é falar mal de nós.

Só um burro o não vê, como é o caso do Sr. Neacre. Tal só se explica se dermos por demonstrado que o Sr. Necare é burro. Esta é a etiqueta que melhor o serve, poisde contrário, ter-se-ia que considerar o Sr. Necare como racista e xenófobo. A burrice torna o Sr. Necare inimputável. Ofereço-lhe o direito a usar a coroa que ilustra o post. Mereceu-a!

foto: http://www.1ofakindstuff.com/Shrek-Donkey-Ears.html

11/09/06

A Desgraça Nacional Tem Causa e Tem Nome, por Silver Bullet

Em 1871, o Sr. Antero de Quental, ainda movido pelo desvelo esperançoso de regenerar a nação portuguesa, ilusão que uma vez esvaída contribuiria para o desânimo que faria dele um suicidário simbólico, tentava diagnosticar as Causas da Decadência dos Povos Peninsulares. Como muitos antes dele e muitos outros após, o Sr. Antero de Quental tinha como preocupação a ressurgência da Nação. A contemporaneidade nacional teve esta obsessão: regenerar, ressurgir, ressuscitar, recuperar, modernizar, renascer. Hoje, devemos a Vasco Pulido Valente, o maior analista da portucalidade que tem em Eduardo Lourenço o seu digno anverso, esse favor de nos recordar todos os dias uma verdade evidentíssima: Isto é irregenerável!

Tivesse o Sr. Antero de Quental atingido esta verdade claríssima e muita tragédia se tinha poupado, a começar pela sua. Mas não, o Sr. Antero considerou como causas da miséria ibérica o absolutismo, o jesuitismo, o catolicismo tridentino e mais outras observações próprias do romantismo oitocentista. Sendo as causas comuns ao espaço peninsular, tal justificava a decadência comum, daí que o plural hispânico usado pelo açoriano, sendo relevante, escondesse um equívoco. Antero buscou as causas a partir do presente, em vez de haver estudado as causas como tal. A prová-lo, o facto de, actualmente, a Espanha trilhar um progressivo e continuado rumo, o que não se verifica a Oeste de Vilar Formoso. Daí que, as causas devem ser outras.

Pois bem, caros leitores, 136 anos após a célebre conferência anteriana, cumpro o grato e histórico dever de informar que a decadência nacional tem causa e tem nome: Pedro Machado!

Pedro Machado é o novel presidente da Região de Turismo do Centro. Na edição Local Centro do «Público» de ontem, é-lhe traçado o perfil. Vale a pena recapitular: O Senhor Presidente tem 39 anos. Em miúdo agarrou nas bandeiras laranjas do PSD porque gostava da cor. A precocidade, enfeitada com a futilidade das razões, deixa antever o pior: uma carreira política! Licenciou-se em Filosofia, na Vetusta e nada, absolutamente nada do que seria minimamente exigível a um estudante de Filosofia, mesmo que da Vetusta, transparece no licenciado Machado. Não há vestígio de crítica, reflexão, especulação, cultura ou erudição. O homem é um fenómeno de vacuidade! Durante os tempos da juventude, seguiu a carreira normal: fez parte das listas para a Direcção-Geral. Perdeu, mas enrobusteceu-se na derrota. Dirigiu, a nível distrital, não concelhio note-se, várias campanhas eleitorais e, findo o curso, ei-lo revigorado no outro antro onde se geram estas espécies: as autarquias locais. Foi membro da Comissão Política Concelhia de Montemor-o-Velho, ascendendo à Comissão Distrital de Coimbra. Depois, galgará uma escadaria ascendente que, de membro da Assembleia Municipal de Montemor, passando pelo executivo autárquico onde chegará à vice-presidência, atingirá os cumes olímpicos: vogal da Comissão Política Nacional! Pelo caminho, foi ainda adjunto de um obscuro secretário de estado (a minúscula é de propósito). Este percurso deu-lhe «traquejo» e encheu-lhe o telemóvel de contactos importantes. O homem cita-os: Fernando Nogueira, o Desaparecido; Santana Lopes, o Inefável, Zita, a Convertida, e Cavaco, o austero. Acima de todos, Marques Mendes, que ocupa um lugar especial na lista telefónica do Sr. Pedro Machado.

A docência, essa, exerceu-a durante dois anos e não se mostra disponível para regressar. «Não o seduz», justifica-se. O Sr. Pedro Machado orgulha-se da sua carreira e não lhe passa pela cabeça extinguir a Região de Turismo do Centro para cuja presidência acaba de ser nomeado. Chorem comigo, caros concidadãos! Entendem agora o cinismo do grande Vasco Pulido Valente? Entendem porque razão Antero acabou por dar um tiro nos cornos?

Bebamos, meus caros, bebamos muito, porque o cheiro a pólvora faz-me dores de cabeça e este país faz-me mal à úlcera!


foto: digitalizada a partir da edição do jornal «Público» de 10.Set.2006

05/09/06

Porcos em Cuecas, por Pig Klein

Sacrifíco a modéstia à verdade e afirmo: aqui, entre a malta do Tapornumporco, eu sou o gajo que veste as cuecas mais bonitas. No Sábado, nos balneários de Montebelo, após mais uma jogatana, banho tomado, estava a malta toda nua a esfregar-se nas toalhas de turco. Garanto-vos que o espectáculo é lastimável. Mas pronto, aquilo também não é uma passagem de modelos, a malta está lá é para tomar banho e, embora desagradável, não dói nada e passa depressa. O estranho é que o espectáculo piora quando a nudez se cobre. Devia ser ao contrário, isto é, quanto mais e mais depressa se encobrisse a fealdade, menos desagradável se tornaria a contemplação. Sucede que a inversão desta regra se deve à deplorável qualidade das cuecas usadas. Esteticamente, os trousses confradais são deploráveis e, assim, quando os confrades os vestem o espectáculo deteriora-se.
Eu não, eu joguei com uns modernos boxers Throttleman de puro algodão, com umas cornucópias douradas sobre fundo azul-esverdeado. Depois do banho, optei por uma mudança de estilo, mantendo todavia a classe, vestindo uns slips com meia-perna, de um branco imaculado, cintado com um elástico negro. Assim tipo Calvin Klein. Este modelo acondiciona melhor os aparelhos viris, dando uma maior sensação de segurança e conforto. Está tudo pensado, com categoria. Classe pura.
Agora, o resto da malta ainda não percebeu que a beleza interior também conta. E até dói ver aquelas cuecas antiquadas. Um deles, o Vice, usava umas axadrezadas, com dois tons de verde. Lamentável. Pareciam sobras de um cortinado comprado nos saldos da Moviflor. O outro, o Grunfo, usava umas cuecas azuis, modelo antigo, tipo Jotex ou coisa que o valha, fabricadas no Vale do Ave seguindo modelos de mil-nove-e-cinquenta-e-tal, apertadíssimas e com a fruta mal acondicionada a sufocar. É certo que a cor escura tem sempre a vantagem de disfarçar as distrações. Mas está mal. O Santo Sudário também não era azul escuro. Quando eu esperava que o último elemento do grupo, o Mau, desse o exemplo contrastante, eis que a minha decepção se torna total. O Mau, que é o homem que afirma que os botões de uma camisa devem ser da cor do tecido e insiste para que a regra seja observada, revelava agora o seu lado parolo. O homem veste cuecas negras, banalíssimas, daqueles modelos em V, antiquadíssimos e completamente out.
Há que mudar, inovar e modernizar. Isto não pode continuar assim. Na Europa já não é assim. Vistam-se como deve ser. Ou então, andem nus que não é pior!

01/09/06

Meteorologistas e Coleccionadores, por Pig Colector

O boletim meteorológico em Espanha é a coisa mais ridícula que existe. Não só em matéria meteorológica e não só para um português. Para um espanhol, ou para outro qualquer extrapeninsular que livremente viaje pela Península aproveitando a liberdade, o boletim é inexplicável. Imaginem um belga em Salamanca a lobrigar, acaso sobreviva ao IP5, molhar os pés na praia da Claridade lá pelo fim da tarde. Após as tapas, e já na Plaza Mayor, espreguiça-se e pede um café solo. Abre o jornal, busca a página da meteorologia para saber como está o tempo no litoral atlântico e…

- Merde! Portugal a disparu! Où est-il? – No caso de ser um belga francófono, claro, senão, imaginem merde em valão. A surpresa entende-se, seja qual for a língua. Portugal não é o Titanic, porra! O Copperfield quando fizer desaparecer um país será certamente a Síria, o Irão ou outro qualquer. Não vejo razão para riscar do mapa a Pasmaceira. Isto está mal, é certo que o futuro é cinzento, mas bolas, o Sol quando nasce é para todos. E se há coisa boa que a gente tem é o Sol. Porque não chegamos lá para estragar, nem com escadote. Senão fazíamos lá uma Quarteira, com Tê-zeros em time share e escorrega na piscina para os putos racharem os cornos. E também não custa nada dizer ao belga que na Figueira da Foz está vento como o caraças e a água é fria como o caraças.

Aceito que os luxemburgueses ignorem quem os rodeia. Pegam no zoom, aumentam mil vezes a Paróquia e desfocam a Alemanha, a França e a Bélgica. É ridículo mas compreende-se, pois o Luxemburgo é uma teimosia que nem aos luxemburgueses interessa. No máximo, é um bom local para sedear um banco, para lavar dinheiro, para fugir ao fisco, ou para resolver questões diplomáticas. O maior problema do Luxemburgo é que não tem luxemburgueses. Um país que tem este problema pode fazer tudo. Aceito também que o boletim meteorológico dos franceses ignore a vizinhança. O Hexágono é uma plataforma assoberbada por isso o francocentrismo é estatutário e tudo o mais é periferia. O mesmo se dirá da Alemanha. Já a Bota fá-lo naturalmente, pois logrou impor a lógica geográfica como condição para o desenho fronteiriço apesar de S. Marino e do Vaticano, minudiências tão microscópicas que nem corpo têm para levar com uma nuvem cinzenta em cima. A Inglaterra é um caso à parte. É célebre aquela anedota em que o apresentador da BBC anuncia um nevoeiro cerrado na Mancha e lamenta que o Continente fique isolado da Ilha. Que Portugal mostre o rectângulo destacado do todo peninsular, também se compreende. Portugal é uma exclusão. É como um médico especialista das doenças do pé que não quer saber o que é que se passa no nariz ou atrás da orelha. Exibe a radiografia ao pé enquanto coça o queixo e pensa na solução. Agora, o Todo é um generalista, não pode dizer que o que se passa no fígado não lhe interessa. A Espanha é generalista. Ou melhor, é um colégio de especialidades distintas que, juntas, formam um mosaico generalista. Lá iremos. Mesmo que Portugal seja um filho birrento e ingrato que, vai quase para um milénio, abandonou o lar, à mãe compete o seu dever irrenunciável, o qual é manter a porta aberta. Se um Nobel não se retira, a condição hispânica de Portugal não pode ser ela também sonegada. A Espanha pode não gostar do filho renegado, mas pariu-o e contra isso não há nada a fazer. Pode deserdá-lo e dizer que o não conhece, pode bater-lhe no rabo, pode virar-lhe as costas, não pode é dizer que não existe. É ilegal, em face do tribunal da História. Seria como se uma parturiente exigisse do obstreta a devolução do nado-vivo à condição pré-natalícia. A Espanha não pode fazer isso. Além do mais, fica-lhe mal. Vamos então à raiz do problema.

Recentemente, aquando da discussão e aprovação do estatuto autonómico da Catalunha, discutiu-se se a Espanha era uma Nação ou não. É um pormenor essencial. O Estatuto Autonómico, aprovado e referendado em meados de Junho de 2006, fala em povo, país, diversidade, energia de muitas gerações, tradição histórica, autogoverno, instituições próprias, liberdade colectiva, comunidade, posição singular, bla bla bla… Quanto ao essencial, o preâmbulo diz: «Cataluña, a través del Estado, participa en la construcción del proyecto político de la Unión Europea, cuyos valores y objetivos comparte.» Ou seja, além da Catalunha, declara-se um Estado que é a Espanha, naturalmente, o que faz da Catalunha uma nação subsidiária e dependente do Estado espanhol. Depois, adianta-se que «El Parlamento de Cataluña, recogiendo el sentimiento y la voluntad de la ciudadanía de Cataluña, ha definido de forma ampliamente mayoritaria a Cataluña como nación.» Quer dizer, o Parlamento democrático da Catalunha interpretou a vontade cidadã e votou maioritariamente a Catalunha como Nação, remetendo depois para o artigo 2º da Constituição espanhola que, segundo o estatuto autonómico «reconoce la realidad nacional de Cataluña como nacionalidad.» Leiamos pois o citado artigo 2º : «La Constitución se fundamenta en la indisoluble unidad de la Nación española, patria común e indivisible de todos los españoles, y reconoce y garantiza el derecho a la autonomía de las nacionalidades y regiones que la integran y la solidaridad entre todas ellas.» Atentemos aos pormenores e subtilezas, que é a única coisa que interessa. Em primeiro lugar, evita-se cuidadosamente a palavra Estado para definir a Espanha. Entende-se, pois tal faria da Espanha uma superstrutura estatal aglutinadora de várias nações. O risco é que, como toda a História ilustra, as nações são soberanas, logo, autonomizáveis. A História contemporânea tem milhões de mortos e rios de sangue a comprová-lo. Depois, apresenta-se a Nação espanhola como Pátria Comum. Não o Estado, conceito racional, jurídico-constitucional, fundador de toda a ordem política, base de toda a sociedade organizada e princípio de toda a história narrada. Mas a Pátria, esse vínculo afectivo com o solo telúrico que nos define a condição. É um conceito apolítico por definição, pois remete para a ordem natural. Tem-se uma Pátria como se tem uma mãe. Ama-se. Não se renuncia a ela, morre-se por ela. Ninguém morre pelo Estado. Esfrangalham-se sim pela Pátria. Pois que também eu sou capaz de ir aos cornos ao primeiro filho da puta que falar mal da minha mãe. Que é uma santa. Já do Administrador do Condomínio, ou do próprio Condomínio podem dizer o que quiserem. A mãe é a Pátria, o condomínio é o Estado. Assim posto, o que se diz após é supérfluo: indissolúvel e indivisível. Claro! Com três letrinhas apenas bla bla bla bla. No artigo 2º reconhece-se ainda o direito à autonomia das nacionalidades e regiões. E aqui, que é para onde nos remete o estatuto autonómico da Catalunha, há uma subtileza preciosa, quase cínica, que contrasta com o frustrado «amplamente» com que a lei Catalã qualifica a votação da maioria parlamentar que votou a Catalunha como Nação. A Lei Fundamental usa um plural – nacionalidades e regiões – que equipara em subalternidade todas as nacionalidades e até faz acompanhar o conceito de uma menção apoucadora, mesmo diminutiva, às regiones. Mais valia dizer nacionalidadezinhas, pois que assim dito a Catlunha é uma paróquia, ainda por cima obrigada ao dever de solidariedade com as restantes. A Catalunha até pode ser o coração da Espanha, mas como o coração é importante, mas não é autónomizável. Nenhuma parte renuncia ao Todo. Entende-se pois, e estipula-se, que Nação é a Espanha.

É aliás este o título de uma obra publicada pela Real Academia de la Historia em 2000: La España como Nación. Aqui, para além de nos apercebermos como a História, sob convocatória, é subsidiária da política, os sábios académicos forneceram aos políticos o fundamento teórico para o seu ensejo. Discute-se, discute-se e no fim apresenta-se a Espanha como Nação. Não como uma confederação de nações, ou uma Nação de Nações mas, simplesmente e sem mais, uma Nação. O que faz das partes isso mesmo: partes!

Mas há um mas. Há sempre um mas. E o mas é: Portugal! Os catalães até podiam dizer, queixando-se à mãe espanhola e apontando para o irmão português:

- Se ele pode eu também posso!

O que é dizer, se Portugal é uma Nação, a Catalunha, obviamente, também é. E o País Basco. E a Galiza. E quem não é pode vir a ser, aceitando para tanto a evidência que impossibilita que as nações sejam tidas como factos da Natureza. Se o passado quase milenar alicerça o estatuto português, o futuro sustenta as ambições catalãs. Senão mesmo o presente. Tal equivale a dizer que estes factos são da ordem da política, como é óbvio, apesar de historicamente se haver negado esta evidência. Não há nenhum estatuto natural, nenhum jugo impositivo. Tudo é política e a política radica na vontade dos homens.

Num capítulo interessante dessa obra, D. José Alcalá-Zamora Y Queipo De Llano, catedrático de História Moderna, declara a dificuldade em delimitar o conceito de Nação, chegando a falar de «labirintos intermináveis». Apesar disso, e sem qualquer intuito classificador, seja qual for o fundamento que as baseia, reconhece a existência de nações. Cita-as: Grã-Bretanha, França, Alemanha, Itália, Espanha, Estados Unidos, Rússia, China, Índia, Japão, Brasil, Canadá, México, Grécia, Egipto. Nem perco tempo a questionar a lista com a Tchetchénia e outros que tais. Prossigamos. O autor fala depois de Nações medianas, estabelecendo uma diferença que agora não me calha aprofundar: Bulgária, Roménia, Marrocos, Hungria, Suíça, Equador. Refere ainda países aos quais não cabe a designação de nações, são os pequenos estados: Andorra, San Marino, Mónaco, Vaticano, ou «os estadículos antillhanos» E, no meio de todo o rol, não se menciona Portugal! Não é um estadículo, convenhamos. É até uma nação, e um Estado, um dos mais antigos do Mundo, muitíssimo mais influente, considerando a linha diacrónica da História, do que a Bulgária ou o Equador, para só citar dois. O Real Académico, cita Portugal, algumas linhas após, apenas para ilustrar, baseado num dicionário de 1732, como se falava de «nação portuguesa» ou «nação andaluza» para referir o lugar de origem e nascimento. Ora, há aqui um equívoco inaceitável num catedrático e ainda por cima membro da Academia. Qualquer estudante de História argumentará que houve uma evolução semântica óbvia de forma tal que onde o dicionário de 1732 dizia «Nação», nós hoje diremos «Pátria». Porque Nação é um conceito romântico e oitocentista. Quando em 1812 a Constituição de Cádiz, que depois foi copiada pelos liberais portugueses de 1822, referia que a «soberania reside na Nação», atribuía ao conceito um significado diametralmente distinto do de 1732. Como é óbvio. Ora, se o catedrático não é ignorante, que não é, denuncia assim que a Academia iniciou uma investigação histórica comprometida ab initio, procurando fundamento para uma ambição política que consiste em declarar constitucionalmente a unidade da Espanha, submetendo para isso o rigor ao desejo. Em verdade, a conclusão estava estabelecida a priori. Isso mesmo o autor declara, com toda a razão do Mundo é certo, quando sentencia que Espanha é o todo Peninsular. Tudo o resto são partes, com Estado ou sem ele. E inclui Portugal. Naturalmente. Além das Astúrias, País Basco, Catalunha, os arquipélagos, Valência, Andaluzia, Estremadura, Navarra, Aragão, Madrid, Galiza, Múrcia, Leão, as Castelas e Rioja. Francisco Franco, o Caudillo, assim o entendia também. Pedro Teotónio Pereira, no prelúdio da Guerra Civil embaixador em Madrid, chegou a protestar diplomaticamente contra um cartaz da propaganda falangista que apresentava a Península sob a águia imperial de Carlos V sem o desenho da fronteira. E Salazar sabia, como revela Franco Nogueira, que o Caudillo, enquanto cadete da Academia de Toledo havia defendido uma tese que propunha uma estratégia para anexar militarmente Portugal em duas ou três semanas. Mas, voltando à questão das partes, caberia perguntar ao catedrático se, ao incluir Portugal e os arquipélagos (suponho que as Canárias e as Baleares), inclui também os Açores e a Madeira? E Melilla? Ceuta? E, já agora, Timor? Goa? Cabinda? A colónia de Sacramento? Macau? Dadrá e Nagar-Aveli? Enfim, tantas perguntas. Irresolúveis todas, porque a resposta será sempre escrava da condição, a qual é: defender aprioristicamente a unicidade da Espanha. Mas o rol anexador do catedrático, apesar de teoricamente intocável, não é declarável com facilidade. Pois se até Franco se viu forçado a assinar um Pacto Ibérico com Salazar no qual reconhecia a paridade estatutária! Só Filipe o logrou, pois que até os Reis Católicos, naturalmente, sempre se escusaram ao uso do título de reis de Espanha.

Por isso, se a declaração da unicidade é inconveniente, resta fazer como os meteorologistas, despreza-se Portugal. Não existe e pronto! Querem saber se chove, comprem o «Diário de Notícias». Esta via, a que chamo «meteorológica», é a seguida pelas universidades, pelos Estados, pelos governos, pelos estudiosos de ambos os países ao desprezarem-se mutuamente. Há, é certo, intelectuais como Eduardo Lourenço ou Valentín Cabero Diéguez, catedrático salamantino, que vêem a questão de forma descomplexada, sem que a hispanidade das partes conduza ao monolitismo do todo. A unidade hispânica deve ser granítica, devendo associar-se ao simbolismo robusto da rocha, a sua natureza compósita. Mas, apesar destes, e outros, o facto é que não há uma única história da Península Ibérica. Não há muitas mais regiões da Europa que tenham uma tão rica e tão vasta história comum, que participem de um passado tão próximo, que comunguem de uma identidade tão afim e, todavia, ainda ninguém se lembrou de escrever uma História Geral das Nações Ibéricas! Isto é incrível. A única obra que eu conheço é do grande historiador, Hipólito de la Torre Gómez que em 1998 coordenou uma obra em 400 páginas com a participação de diversos historiadores de diversas proveniências, intitulada España y Portugal. Siglos IX-XX. Vivências Históricas. Curiosamente, quase dez anos volvidos, ainda não há tradução portuguesa. Muito significativo é que o título mencione a expressão «Vivências históricas» É esta a condição para se escrever uma história da Península. Ver a história como uma vivência e como uma memória construída, partilhada, cheia de conflitos explicáveis e enquadráveis, repleta de desentendimentos igualmente explicáveis e enquadráveis. Sem qualquer reserva apriorística, livre de todos os propósitos político-ideológicos, sem subserviências e sem proselitismos, entendendo que a identidade se funda em interpretações históricas e elaborações culturais e que a história se constrói e reconstrói conforme a vontade dos homens e não conforme os condicionalismos da Natureza. Assim, entender-se-á a Península como um todo, mas como um todo que é um mosaico com várias tonalidades. Sendo que o passado é plural, as Espanhas como se dizia nos tempos suevo-góticos, e a unidade exigirá sempre o respeito pelas especificidades locais, regionais e nacionais. Assim nos declararemos, como Fernando Savater, contra todas as pátrias, decretando falido o modelo a que Fernando Catroga alude e pelo qual o Estado-Nação impôs um «conceito unicitário de soberania» sintetizável na forma do regalismo francês: «une foi, une loi, un roi», supondo-se que qualquer divisão era uma rebelião contra o Estado, constituindo esse o crime supremo, mais do que qualquer blasfémia.

A solução está pois em renegar esta «mentalidade excludente», usando a expressão de Savater para qualificar os fanáticos que achavam que não se pode ser basco e espanhol e basco e francês ao mesmo tempo. Contra isto, Savater escreve: «Pode-se e deve-se ser não duas coisas, mas muitas outras, todas as que nos permitirem conviver em harmonia e liberdade com o maior número possível de seres humanos. Abaixo os regimentos e a sua uniformidade idêntica! Criemos sociedades civis, onde as pessoas vistam à civil e sentindo-se bem, onde não haja nenhuma obrigação de nos parecermos a nenhum estereótipo de identidade nacional e onde as efectivas similitudes, que sem dúvida continuarão a verificar-se, sejam afinidades electivas do coração e não imposições burocráticas dos sargentos que se propõem administrá-las». Concordo! Letra por letra. Assim, veremos como desnecessária é a presunção da lei autonómica da Catalunha, da constituição espanhola, das conclusões das academias ou das verdades dos académicos comprometidos. Tudo é vão. Enriqueçamo-nos. Coleccionemos identidades como uma criança colecciona cromos de uma colecção interminável.