07/09/17

Um País, Dois Sistemas, por Tungs Ténio



Pequim é uma cidade indefinida, não tem um traço de personalidade vincado, ao contrário de Xangai. Do ponto vista urbanístico e arquitectónico, Xangai é única. De qualquer sítio desta megametrópole de cerca de 30 milhões de habitantes, vê-se um edifício icónico, seja a torre das telecomunicações, a Xangai Tower (a babel chinesa, o edifício mais alto da China) ou o celebérrimo abre-latas, entre muitos outros. Além disso, Xangai é policêntrica, tem diversas zonas marcantes como o óbvio centro financeiro de Pudong ou o Bund, na margem direita do rio Huang Po, a People Square ou ainda Nanjin Road. 

Pequim não é assim. À excepção de Tianamen, tem muitas zonas indistintas que podiam estar em qualquer outra cidade global, com os seus prédios de verticalidade anónima. Deste ponto de vista, Pequim está mais próxima de Madrid ao passo que Xangai faz lembrar Barcelona, mais icónica e distinta (traduzo, simplificadamente, para a minha própria escala familiar a incomensurabilidade das dimensões chinesas).

Tianamen é o verdadeiro coração de Pequim. A célebre praça dos massacres de 1991 é um símbolo chinês (não por aquela razão, confortavelmente atirada para debaixo do tapete da memória colectiva chinesa recente, vantagens de não haver Google na China…), mas não um ícone cosmopolita, como os edifícios de Xangai. No seu lado Este encontra-se a magnífica Cidade Proibida, local de peregrinação de milhões de visitantes, na sua esmagadora maioria, chineses, parecem-me habitantes do interior que fazem a viagem das suas vidas e se emocionam com toda a iconografia que levaram uma vida a venerar, um pouco como a malta das excursões em Portugal que vai visitar os Jerónimos ou o Mosteiro da Batalha com a emoção de quem vai a Roma ver o Papa.

A Cidade Proibida é um local magnífico, sem dúvida, e dou graças aos deuses comunistas por terem inspirado Mao a poupá-la em vez de, como seria natural nele, mandar destrui-la em nome da obsessão comunista com o apagamento dos vestígios da china imperial. Muitas outras maravilhas do passado, como a muralha histórica de Pequim, por exemplo, que foi praticamente destruída, não tiveram a mesma sorte. Muitos pagodes, templos, túmulos antigos e estátuas foram destruídos. Saquearam-se museus e bibliotecas, queimaram-se livros - tudo o que cheirava a «antigo» foi pilhado. Mas a Cidade Proibida talvez fosse suficientemente poderosa, demasiado imponente e admirável, para que os comunistas sonhassem sequer destruí-la. E mesmo assim só sobreviveu à voracidade predadora da Revolução Cultural graças à lucidez do primeiro ministro Zhou Enlai que mandou o exército guardá-la.

Aquilo é impressionante, mesmo para um comunista supostamente animado de ódio à civilização imperial: a sua escala, a sua dimensão impressionante, os seus pátios gigantescos, as suas esculturas e pavilhões, a sua lógica simbólica (a água, a terra, o ar, o fogo, a madeira - os elementos fundamentais para os chineses), os seus estandartes imperiais (rara excepção na ânsia reset da revolução comunista), os seus pedaços de paisagens metodicamente recortados nos portões enormes, quando passamos de um pátio para outro… E só depois de passarmos pela experiência de deslumbramento que é passear pela Cidade Proibida é que nos apercebemos da imensidão provocadora do retrato de Mao à entrada. O ditador, ao menos tinha sentido de humor... Deixar a sua fotografia na fachada do mais reservado e exclusivo (como se sabe apenas o imperador e o seu séquito podiam transpor os portões da Cidade Proibida) de todos os espaços da milenar China, é uma verdadeira heresia, um escarro na solenidade imperial. O maior apologeta da igualdade faz-se retratar na fachada do mais exclusivo espaço de toda a história da China, Charlot no Olimpo, Bucha e Estica em Vaalhala…

Ou então, pensando melhor, Mao não tinha sentido de humor rigorosamente nenhum e simplesmente levava-se a sério (é sabido que levar-se muito a sério é marca distintiva das pessoas que não têm sentido de humor)... Arauto da igualdade radical entre todos os homens, a verdade é que acabou por se tornar, ele próprio, no senhor absoluto e omnipotente de toda a China,um quase Deus. Mao impôs o culto da personalidade em todo o país: a fidelidade ao Grande Líder tornou-se mais importante que a fidelidade à própria família; preconizou a despersonalização total do indivíduo e a sua fidelidade total ao chefe; impôs um regime de vigilância totalitarista, até aos mais profundos meandros da consciência individual de cada habitante da China, um regime tão panóptico que nem Michel Foucault ousou conceber algo de tão radical nas páginas mais radicais de Vigiar e Punir. Implantou um culto da personalidade (da sua), cujo reverso foi a despersonalização de cada indivíduo (em nome da fidelidade a Mao, deixa de pensar, faz o que te ordenam, morre se preciso for, não existas)… No fundo o regime maoista não foi mais que a continuidade da tradição chinesa do despotismo e do absolutismo que vem das  profundezas das dinastias imperiais. E, por isso, talvez não seja assim tão incoerente, a fotografia de Mao à entrada da Cidade Proibida. No fundo existiram dois Maos: o líder comunista e o imperador, sendo que o segundo acabou sempre por se impor ao primeiro. O último imperador, afinal, não foi Pu-Yi, mas o Grande Timoneiro: sua Majestade Imperial, o Divino Mao Tse Tung.

Em Xangai, um grupo de ocidentais como nós, passa perfeitamente despercebido e ninguém estranha a nossa presença. Percebe-se – é uma cidade cosmopolita. Mas em Pequim, as pessoas entusiasmam-se e vibram connosco, como se fôssemos espécimes raros vindos de outro mundo. Pedem-nos constantemente para que tiremos fotos com eles, são extremamente afáveis e premeiam-nos com sorrisos e gritinhos depois de conseguirem a almejada foto. Nós sentimo-nos um pouco como Marco Polo se deve ter sentido há 800 anos atrás. Os pais trazem os filhos para nos verem, as famílias reúnem-se apressadamente para capturarem a imagem de um de nós entre eles e, quando há um indivíduo a tirar-nos uma foto, olhamos melhor e já estão mais dez atrás a aproveitar a boleia.

Nada disto passa pela cabeça aos habitantes de Xangai para quem somos só mais meia dúzia de estrangeiros entre os muitos que por ali passam. Xangai parece-me uma outra China, mais moderna, mais aberta que a ortodoxa Pequim. E talvez não seja por acaso que a nossa guia em Xangai, Cati (nome ocidental para o podermos fixar melhor que o original chinês) seja notoriamente mais desenvolta e urbana que a sua colega de Pequim, Marta. Esta não só fala um castelhano mais ou menos ininteligível, como, sobretudo, é mais obtusa: tem dificuldade em ouvir-nos e descamba, invariavelmente, em verborreias exasperantes. Tem uma fixação em histórias de doenças e hospitais, mostra-se obcecada com as dificuldades sofridas no passado recente por si e pelos seus pais «camponeses», como faz questão de sublinhar. As suas histórias não são destituídas de interesse, mas tornam-se repetitivas, obsessivas, maçadoras. Marta ignora o humor e respeita a ortodoxia comunista, dela não se ouve uma sílaba crítica da ideologia e do poder dominantes.

Mas Cati, percebi-o imediatamente, assim que nos deu as boas vindas e começou a falar, é mais crítica. Goza com os tiques do regime, tem um sentido de humor e uma ironia que a distanciam da seriedade e da rigidez da sua colega de Pequim. Marta achava natural que o facebook estivesse bloqueado na China, claro, trata-se de uma república socialista; mas Cati falou-nos logo de uma app chinesa que permite desbloquear o FB e o Google e aceder, como ela diz, «à civilização». Fala um excelente castelhano, vivo e fluído –viveu na argentina – tem umas noções de português-brasileiro e, sobretudo, sabe ouvir e passar informação nas doses certas, sem nos assoberbar com excessos. Para mim, ambas as guias passaram a representar as duas chinas, Marta, a China tradicional, comunista, rígida e fechada; Cati, a china moderna e cosmopolita. Um país, dois sistemas, na fórmula de Deng Xiao Ping: Xangai e Pequim, o capitalismo fervilhante e a atrofia comunista.

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